Nota do blog: Em celebração do Dia dos Heróis do Povo Brasileiro (9 de abril) e dos 53 anos da gloriosa Guerrilha do Araguaia (12 de abril), reproduzimos documento publicado no jornal A Classe Operária – órgão do Partido Comunista do Brasil (então sob a sigla PCdoB) – nº 95, de março de 1975. Com o título “Não arriaremos nossa bandeira”, o texto consiste em: “Carta remetida a destacada personalidade do sul do Pará pelos moradores de um sítio às margens do rio Araguaia, nas primeiras semanas de luta guerrilheira naquela região. Seu conteúdo permite aquilatar os motivos e propósitos que animam os que empunharam armas para resistir ao ataque das forças da ditadura.”
A bandeira da heroica e gloriosa Guerrilha do Araguaia – erguida pelo Partido Comunista do Brasil, os heroicos combatentes guerrilheiros e as profundas massas camponesas da região do Bico do Papagaio – é a bandeira da Guerra Popular, caminho verdadeiro e único para a libertação do povo brasileiro que hoje os autênticos comunistas revolucionários, marxistas-leninistas-maoistas, sustentam e lutam por retomar. A rubra bandeira do Araguaia, tingida com o precioso sangue dos heróis e heroínas do povo brasileiro, estampada com a foice e o martelo, estandarte do caminho da Guerra Popular, da Revolução Democrática, Agrária e Anti-imperialista ininterrupta ao Socialismo, jamais será arriada.
Para melhor compreensão da grandiosa experiência de luta armada revolucionária do Araguaia, recomendamos a leitura do documento “Viva a heroica e gloriosa Guerrilha do Araguaia”, datado de abril de 1999, de autoria da Frente Revolucionária de Defesa dos Direitos do Povo (FRDDP), o qual consiste no primeiro balanço marxista-leninista-maoista da guerrilha na história do movimento comunista em nosso país. Também é de singular importância o histórico documento do Partido Comunista do Brasil “Guerra Popular: O Caminho da Luta Armada no Brasil”, de janeiro de 1969.
“Não arriaremos nossa bandeira”
Ilustríssimo senhor.
Por considerá-lo uma personalidade independente que não se atemoriza diante da força bruta, nem se deixa abalar por pressões políticas, e um homem de bem, atrevemo-nos a escrever-lhe a fim de que V. S. avalie, com isenção de ânimo, os motivos da luta em que estamos envolvidos. Com esta carta não objetivamos pedir-lhe apoio e, muito menos, fazer proselitismo. Mas esperamos compreensão e justiça em relação à nossa resistência aos desmandos e arbitrariedades de um regime autoritário, imposto pela violência à Nação pelo golpe militar de abril de 1964. Passemos, pois, aos fatos para que se configure o quadro verdadeiro da situação.
Como é sabido, no curso do mês de abril deste ano, contingentes do Exército, apoiados pela Marinha, Aeronáutica e Política Militar do Pará, numa aparatosa operação de guerra, atacaram, inesperada e brutalmente, inúmeros moradores do Araguaia, que se localizavam em áreas compreendidas entre São Domingos das Latas e São Geraldo. Os agredidos viviam há muito tempo em roças e sítios, tendo alguns deles mais de quatro anos de residência no mesmo local, a exemplo de nossa família, que mantinha pequeno comércio às margens do Araguaia na propriedade chamada Faveira.
Naquele lugar, éramos úteis à população, tanto do Pará como de Goiás, na sua quase totalidade – como V. S. sabe – pobre e desprotegida. Comprávamos os produtos da terra com mínima margem de lucro e vendíamos mercadorias mais indispensáveis à vida do povo a preço baixo. Além disso, comerciávamos com remédios, também a preço baixo e duas pessoas, enfermeiras de profissão, receitavam, faziam partos e realizavam pequenas intervenções cirúrgicas. Tudo gratuitamente. Éramos, assim, estimados por centenas de famílias de lavradores e por inúmeros moradores de Marabá, São Domingos das Latas e Araguantina. Jamais tivemos desavença com qualquer habitante da região, não molestamos nem prejudicamos ninguém.
Ultimamente, com a construção da Transamazônica, apareceram vorazes grileiros que tentavam expulsar de seus locais, com a ajuda da polícia e pistoleiros, velhos e novos moradores. Não podíamos deixar de ficar ao lado das vítimas e dos perseguidos. Condenamos com energia os ladrões de terra. Não concordamos com o esbulho de honestos lavradores que desbravam matas e criam riquezas na região. Também não nos conformamos com os pesados tributos cobrados ilegalmente pelo INCRA. Camponeses que vivem abandonados e na miséria são obrigados a pagar, a título de taxas, quantias elevadas, muito acima de suas possibilidades, sem nada receberem em troca. Igualmente, sempre estigmatizamos a exploração e a opressão a que estão sujeitos os castanheiros, os trabalhadores das companhias de extração de madeira e os peões das grandes fazendas, cuja situação pode ser comparada à dos párias ou escravos.
Nosso inconformismo deve ter chegado aos ouvidos das autoridades ditatoriais. Por isso, tais autoridades voltaram-se contra nós. Agrediram-nos brutalmente, queimaram casas, danificaram plantações, apoderaram-se indevidamente de bens e objetos de uso pessoal. Mas resolvemos reagir e resistir por todos os meios ao governo despótico e antipopular. Decidimos enfrentar a ditadura com força, embrenhamo-nos nas matas e armando-nos com o que podíamos. Inspira-nos a ideia de emancipar o Brasil do opróbrio do regime ditatorial ou morrer lutando pela liberdade e a felicidade de nosso povo. Não queremos ser cúmplices, pela omissão, de um governo que escraviza a Nação, entrega as riquezas do país aos trustes estrangeiros, prende, espanca, tortura e assassina patriotas de todas as convicções políticas, religiosas ou filosóficas.
Assim, articulamo-nos com outros elementos descontentes da região para defender nossas vidas, acabar com a grilagem, lutar pela democracia, por uma nação livre e independente. Diante de tal atitude, o governo dos generais, o governo mais tirânico que o Brasil já teve, propala cinicamente que somos marginais, contrabandistas, assassinos e assaltantes de bancos. Mas todos sabem que isto não passa de grosseira calúnia. Inúmeras pessoas nos conhecem e estão inteiradas de que não cometemos nenhum crime, nem fizemos qualquer mal. A ditadura também espalha que somos terroristas. É outra mentira. Jamais recorremos ao terrorismo, método de luta que condenamos, embora reconheçamos como patriotas e democratas os inúmeros jovens brasileiros que são compelidos a apelar para ações isoladas a fim de combater o terror negro implantado pelos militares em todo o país.
Muitos dos que estão de armas nas mãos têm instrução superior ou são universitários e estudantes secundários. Ao nosso lado estão os operários e camponeses esclarecidos. Há pessoas de diferentes matizes políticos e religiosos, inclusive católicos. Todos eles poderiam viver comodamente e desfrutar da paz, o conforto e o bem-estar em seus lares. Fiéis, porém, à sua consciência, escolheram o caminho da luta, preferiram morar na selva, passar fome, dormir ao relento e, se necessário, sacrificar a vida, a se calar diante de um regime que infelicita o país há mais de oito anos. Os que se portam deste modo agem como milhares e milhares de brasileiros que, nas cidades, combatem o jugo dos generais e de um punhado de ricaços nacionais e estrangeiros. Vão ao encontro dos mais legítimos anseios do nosso povo que aspira à liberdade e não quer viver sob o tacão da ditadura.
Com este pensamento, os combatentes que empunham armas na selva amazônica organizaram um movimento para dirigir a resistência armada contra a ditadura e para conquistar um governo verdadeiramente popular, autenticamente democrático e livre da tutela dos monopólios internacionais, principalmente norte-americanos. Fundaram a União pela Liberdade e Direitos do Povo, cujo programa é a sua bandeira de luta. Permitimo-nos enviar-lhe o manifesto que lança este movimento para que V. S. se inteire plenamente de nossos objetivos ao enfrentarmos, com decisão e coragem, as forças repressivas do governo.
Estamos convencidos de que nossa causa é justa e certos de que a simpatia da esmagadora maioria da população está ao nosso lado. Não é ocasional, o fato de a ditadura baixar pesada cortina de silêncio, através de férrea censura à imprensa, ao rádio e à televisão, sobre os acontecimentos que ora se verificam no sul do Pará. É o temor de que o exemplo frutifique. Nada, porém, poderá deter a avalanche da revolta popular contra a tirania. A chama da rebelião para pôr abaixo a ditadura foi acesa no Araguaia e, como o decorrer do tempo, alastrar-se-á por todo o Brasil.
Sejam quais forem as vicissitudes que teremos de passar – a fome e o cansaço; os ferimentos, as doenças e a morte; a prisão e a tortura – não arriaremos nossa bandeira. Ninguém poderá abafar as profundas e arraigadas aspirações de liberdade do povo brasileiro, do qual somos legítimos representantes. Onde há opressão sempre há de existir resistência e luta. As causas justas, mais dia menos dia, triunfam. Hoje, em nosso país combate-se e morre-se pela liberdade. Por tudo isso, não será em vão o sacrifício e o sangue derramado por milhares de jovens desprendidos e abnegados para conquistar a democracia e para instaurar um regime que ampare todos os brasileiros.
Queira aceitas as nossas mais respeitosas saudações.
De algum lugar das matas amazônicas, 20 de julho de 1972.
José Carlos, João Borges (Joca), Roberto Peti (Beto) e Luís.
(Moradores do sítio FAVEIRA às margens do Araguaia.)