Nota do blog: Por ocasião dos 90 anos da Conferência de Tsunyi, episódio de grande significado histórico e importância decisiva para o triunfo da Grande Revolução Chinesa (GRC), publicamos tradução do relato “Memórias da Longa Marcha: O esplendor irradiado da Conferência de Tsunyi”, de Chang Nan-sheng,1 veiculado na revista Pequim Informa nº 47, em 21 de novembro de 1975.2 Para um breve histórico da Longa Marcha, consulte o artigo “Contexto Histórico: A Grande Longa Marcha”.

Memórias da Longa Marcha
O esplendor irradiado da Conferência de Tsunyi
Chang Nan-sheng
Logo após a Conferência de Tsunyi de janeiro de 1935, o Camarada Teng Fa, diretor do Departamento de Segurança Política do Estado, nos informou que o Comitê Central do Partido Comunista havia decidido que o nosso regimento, que estava cumprindo tarefas de segurança, seria dissolvido e seus três batalhões seriam reagrupados no I e III Corpos do Exército da I Frente (Exército Vermelho Central).
Reorganização
O Comitê Central do Partido havia decidido que o Exército da I Frente deveria seguir para o norte e estabelecer uma base para combater os invasores japoneses. Essa decisão foi crucial para mudar o curso da revolução chinesa.
“Para executar esta decisão, devemos usar táticas flexíveis”, disse o Camarada Teng Fa. “Isso tornou-se evidente nos últimos dois meses, desde que deixamos a Base de Apoio Revolucionária Central em Kiangsi. Para sermos altamente móveis, precisamos simplificar a nossa organização e fortalecer as nossas unidades de combate. É essa a razão por trás dessa reorganização. Assim, poderemos golpear duramente o inimigo e derrotá-lo assim que surgir uma oportunidade. Ou, se a situação não nos for favorável, poderemos nos mover rapidamente e despistá-lo. Essa é a única maneira de frustrar as tentativas do inimigo de nos bloquear ou perseguir e preservar as nossas forças.”
As palavras do Camarada Teng Fa tocaram um ponto sensível em nossos corações. Ouvimos atentamente e sentimos como se um fardo tivesse sido tirado de nós, à medida que começávamos a ver as coisas mais claramente. Em nossas mentes, revivemos as batalhas e a vida que havíamos levado antes. Pensei na Base de Apoio Revolucionária Central que acabávamos de deixar. Sempre que lutávamos, as massas, por vontade própria, nos transmitiam informações sobre os movimentos do inimigo, atuavam como carregadores de macas ou participavam das batalhas com lanças e espadas longas. Um chamado do Partido ou do Governo Democrático de Operários e Camponeses na base, não importava quando ou para quê, sempre gerava uma resposta imediata das massas. Mas, desde que deixamos a base, ficamos sem essa assistência do povo, éramos como crianças sem mãe. Na batalha, não havia mais coordenação organizada com as massas para nos ajudar, e nossos camaradas feridos ou doentes não recebiam o tratamento e cuidado adequados. Não se podia mais contar com o fornecimento de alimentos, munições e outros materiais. Nos últimos dois meses, havíamos percorrido 2.500 quilômetros pelas províncias de Kiangsi, Kwangsi, Hunan e Kueichau. Com as tropas inimigas sempre nos confrontando ou perseguindo, sequer havíamos tido a oportunidade de descansar e consolidar nossas forças.
Revendo essa experiência, começamos a entender melhor por que o Presidente Mao sempre insistiu que, nas regiões rurais onde o domínio inimigo era relativamente fraco, deveríamos estabelecer bases de apoio. Sentíamos intensa nostalgia pela Base de Apoio Revolucionária Central, tão arduamente construída sob a direção pessoal do Presidente Mao. Ansiávamos por ter outra base como aquela. Antes da chegada do Camarada Teng Fa, nós, dirigentes, não conseguíamos responder às perguntas dos soldados: “Para onde vamos agora?” “Qual será o nosso próximo passo?” “Onde será estabelecida a nova base de apoio?” E não havíamos pensado sobre esses mesmos problemas nós mesmos? Dia após dia, marchávamos e, todos os dias, realizávamos mobilização, repetindo incessantemente até nossos lábios ficarem finos: “Sigam resolutamente o Partido e há uma saída!” Agora, a orientação e as tarefas estavam claras para nós. Sabíamos o que dizer aos soldados, o que devíamos fazer e o que se esperava de nós. Nossa confiança estava mais firme e nossos espíritos mais elevados.
A decisão de reorganizar foi absolutamente correta. Sob a linha oportunista de “esquerda”, deixamos nossa base às pressas, com a ideia de que era uma “mudança de casa”, e sem nos prepararmos para uma longa marcha. A Coluna Central certamente não estava organizada para o combate. Da frente a retaguarda da marcha, a linha das tropas se estendia por dezenas de quilômetros. Era o caso do segundo escalão da Coluna Central, que estava sob a escolta do primeiro batalhão do nosso regimento. Levávamos equipamentos pesados para fazer armas, máquinas de impressão e todo tipo de suprimentos que trazíamos conosco da Base de Apoio Central. Um grande número de camponeses foi contratado para transportá-los. Uma dúzia de jovens fortes era necessária para carregar a placa base de uma só máquina. Toda vez que subíamos uma encosta, atravessávamos um rio ou esgueirávamo-nos por caminhos estreitos e íngremes, levávamos mais de uma hora para percorrer 250 metros, com balas zunindo, armas rugindo e bombas explodindo ao nosso redor. Apenas a disciplina férrea impedia que os soldados que escoltavam as unidades de transporte abandonassem a formação e se juntassem às unidades de combate para lutar.
Lembrávamo-nos dos dias na Base de Apoio Central, quando havíamos derrotado quatro campanhas de “cerco e aniquilamento” do Kuomintang. As nossas tropas naqueles dias avançavam ou recuavam com rapidez e facilidade, conforme quiséssemos, e que grandes vitórias conquistamos! Mas agora estávamos sobrecarregados com equipamentos pesados, sempre em movimento e continuamente rompendo as linhas de cerco inimigas, o que custava caro às principais forças de escolta. Recordar o passado e pensar no que estava a ocorrer fez-nos ver que a decisão do Comitê Central do Partido de reorganizar e simplificar não poderia ter sido mais oportuna.
No dia seguinte, o Camarada Teng Fa explicou a decisão em uma reunião de quados de nível de companhia para cima, e rapidamente começamos a implementá-la. Pouco após a reunião, com exceção de uma companhia dirigida pelo Camarada Wu Lie que foi incorporada à Guarda Central de Segurança Interna, todo o regimento foi dividido e incorporado ao I e III Corpos. Fui transferido de volta ao 37º Regimento do V Corpo. Despedi-me dos comandantes da Coluna Central e parti com o espírito elevado para juntar-me à minha unidade. Em ambos os lados do caminho, as encostas estavam cobertas de verde e os campos em socalcos eram degraus gigantescos de flores amarelas de colza.
Atraindo o inimigo
A decisão da Conferência de Tsunyi trouxe novas esperanças e inspirou todo o exército. Também infundiu uma nova dinâmica no V Corpo. A reorganização do V Corpo eliminou o nível divisional, reduziu os órgãos administrativos e realocou muitos quadros às unidades de combate, que foram tremendamente fortalecidas. O trabalho dos Comitês do Partido e todo o trabalho político também foram impulsionados. Durante a marcha, nossa pequena unidade regimental de propaganda encorajava os combatentes, entoando canções e tocando gongos e tambores. Nos acampamentos, eles escreviam e espalhavam vigorosas consignas e cartazes. Havia uma atmosfera inteiramente nova.
Logo após me reunir ao 37º Regimento, nossa unidade foi designada para a retaguarda. O Exército Vermelho deixou Tsunyi e seguiu para o norte para cruzar o Rio Yangtzé. Entretanto, ao sairmos da vila de Kuantuho, a cerca de 10 km a leste do Rio Kuantu, a leste do Rio Chishui, o Camarada Chang Chi-chun, responsável pelo departamento de propaganda do V Corpo, trouxe-nos ordens da Comissão Militar para parar e preparar-nos para o combate. Isso nos surpreendeu, pois não avistávamos qualquer movimento inimigo há dois dias. Mas, quando o Camarada Chang chegou com um rádio transmissor, soubemos que provavelmente estávamos prestes a realizar uma ação independente.
Ele reuniu os comandantes regimentais e explicou que, enquanto o nosso exército dirigia-se a oeste, para Chahsi (hoje Weihsin), no nordeste da província de Yunnan, os batedores descobriram que as tropas do Kuomintang em Sichuan estavam erguendo fortificações na margem sul do Rio Yangtzé, antecipando a nossa chegada. Para evitar um confronto, o Presidente Mao ordenou que o exército desse meia-volta e voltasse rapidamente para Tungtzu, ao norte de Tsunyi, a fim de despistar o inimigo.
“O 37º Regimento é conhecido por travar vigorosas batalhas defensivas”, disse o Camarada Chang Chi-chun. “Desta vez, vocês devem permanecer na retaguarda e conter o inimigo pelo maior tempo possível, a fim de dar tempo à força principal para retomar Tungtzu, Loushankuan e Tsunyi. O inimigo pode não aparecer, mas, se o fizer, virá com força total. Esta é uma tarefa árdua. A Comissão Militar espera que adotemos uma defesa móvel e resistamos ao inimigo por ao menos três dias. De agora em diante estamos sob o comando direto da Comissão Militar.”
O nosso exército começou do zero, crescendo de pequeno para grande e de débil para forte, desenvolvendo toda uma série de estratégias e táticas para conduzir corretamente a guerra revolucionária – tal é a linha militar do Presidente Mao. No período em que o Exército Vermelho foi fundado, quando o inimigo era poderoso e nós éramos fracos, quando o inimigo era grande e nós éramos pequenos, o Presidente Mao estabeleceu brilhantemente os princípios da guerra de guerrilhas, que consistem nos seguintes pontos:
“Dividir nossas forças para mobilizar as massas, concentrar nossas forças para lidar com o inimigo.”
“O inimigo avança, nós recuamos; o inimigo acampa, nós fustigamos; o inimigo se cansa, nós atacamos; o inimigo recua, nós perseguimos.”
“Para expandir bases de apoio estáveis, empregamos a tática de avançar em ondas; quando perseguidos por um inimigo poderoso, descrevemos um círculo sem nos afastarmos da base.”3
Esses princípios foram ainda mais desenvolvidos nas três primeiras contracampanhas ao “cerco e aniquilamento” do inimigo na província de Kiangsi. Naquele tempo, não tínhamos linhas de batalha fixas. Lutávamos onde as condições eram favoráveis e, embora o inimigo fosse mais forte e numericamente superior, derrotávamo-lo em todas as batalhas. Na quinta contracampanha, falhamos em romper o cerco porque o Presidente Mao havia sido afastado do comando do exército pelos oportunistas de “esquerda”. Mas seus princípios táticos já eram compreendidos e assumidos pelos soldados.
Usando essas táticas, conseguimos despistar o inimigo com movimentos móveis, e nossa força principal estava prestes a travar uma grande batalha em Loushankuan e Tsunyi. A mudança de tática nos indicava inequivocamente que o Presidente Mao havia reassumido o comando do exército. Ficamos exultantes.
“Ótimo!”, disse o Camarada Li Ping-jen, comandante do nosso regimento, que havia se juntado ao Exército Vermelho durante a Revolta de Ningtu,4 em Kiangsi, e conhecia bem as fraquezas das tropas do Kuomintang: “Vamos dar neles outra surra daquelas!”
Após analisar a situação, decidimos voltar para Kuantuho. Lá o terreno era favorável, com cadeias de altas montanhas em ambos os lados e um pequeno riacho à frente. E era a rota que o inimigo teria de atravessar. Lutaríamos um dia ali e, passo a passo, atrairíamos o inimigo em direção a Liangtsun e Wenshui, conforme as diretrizes da Comissão Militar.
Imediatamente ordenamos às nossas tropas que dessem meia-volta, explicando o motivo da manobra enquanto marchávamos. A simples menção de ação, com táticas que os soldados compreendiam, deixava-os vibrantes.
“Vejam essas colinas altas e encostas íngremes”, disse um deles, analisando o terreno. “Podemos imobilizar o inimigo por um dia inteiro em qualquer lugar aqui.”
“Não temos medo de lutar ações defensivas”, outro acrescentou. “Nosso único temor é que o inimigo não apareça. Podemos detê-los por quantos dias nosso comando ordenar.”
Assim que chegamos a Kuantuho, começamos a cavar trincheiras. Foi só na manhã seguinte que a força principal de um senhor da guerra de Sichuan, Liu Hsiang, uma divisão de elite bem equipada, chegou apressadamente ao local. Assim que a batalha começou, o inimigo lançou ataques ferozes de quatro ou cinco direções. Os comandantes e combatentes em posições avançadas montaram uma defesa sólida e mantiveram-se firmes. Cada investida custava ao inimigo dezenas de mortos e as suas baixas ultrapassaram uma centena no primeiro dia, conseguindo avançar não mais do que alguns quilômetros. Nossas baixas foram mínimas e gastamos alguma munição. Ao anoitecer, duas colunas inimigas começaram a escalar as encostas na tentativa de nos flanquear. Mas, sob o véu da noite, recuamos silenciosamente cerca de cinco quilômetros, começamos a cavar novas trincheiras e, enquanto isso, preparamos uma refeição. Após montar as defesas, comer e posicionar sentinelas, todo o regimento teve uma boa noite de sono, pronto para a batalha do dia seguinte.
Mantivemos nossas posições durante todo o terceiro dia. Perdemos um líder de pelotão, mas matamos ou ferimos quase cem soldados inimigos. De um prisioneiro capturado, soubemos que o inimigo havia erguido fortificações que iam desde Lushien (atual Luchow), no sul de Sichuan, até Ipin, e esperava, com a ajuda de outras tropas de senhores da guerra, nos eliminar antes que pudéssemos cruzar para a margem norte do Rio Yangtzé. Eles nunca imaginaram que voltaríamos e atacaríamos pelo leste e, então, enviaram às pressas três brigadas (compostas por nove regimentos) para nos perseguir.
Um prisioneiro disse ressentido: “Se vocês tivessem tentado atravessar o rio ali, nós teríamos acabado com vocês todos.” Nós respondemos: “Você é nosso prisioneiro e ainda assim não aprendeu nada. A China é um país grande e há muitas estradas. Poderíamos pegar qualquer uma delas. Por que deveríamos bater de frente com as suas fortificações?”
Nossa retaguarda recuou ainda mas até chegarmos a uma encruzilhada. Havia ali uma trilha a sudeste, levando diretamente a Tungtzu, por onde nossa força principal havia passado recentemente. Uma longa estrada a nordeste passava por Wenshui até Sungkan. De acordo com as ordens da Comissão Militar, deveríamos “simular no leste enquanto atacávamos no oeste” e atrair o inimigo em direção a Wenshui. Naquela noite, educamos politicamente nossos prisioneiros, explicamos a nossa “intenção” e depois os libertamos para que atuassem como nossos mensageiros e fizessem o inimigo morder a isca.
E funcionou. As tropas inimigas nos alcançaram ao amanhecer do quinto dia. Travamos uma batalha feroz o dia inteiro e, ao cair da noite, enviamos um pequeno destacamento para atacar a cidade de Liangtsun, onde as tropas inimigas dormiam em casas de ambos os lados da rua principal, que se estendia por cerca de 1,5 km. Nossos homens infiltraram-se furtivamente no centro da cidade à meia-noite e, correndo pela rua, jogaram granadas para os lados, retirando-se rapidamente. Despertados de seu sono, os soldados dos senhores da guerra começaram a atacar uns aos outros com metralhadoras, rifles e granadas. Os tiros se intensificaram a cada hora, durando a noite toda. Só ao amanhecer perceberam que estavam batalhando entre si. Nosso destacamento nos alcançou na manhã seguinte e nos regalou com o que haviam testemunhado. Foram recebidos com altos aplausos e gargalhadas.
No sexto dia, as enfurecidas tropas inimigas, provocadas na noite anterior, atacaram nossas posições perto de Wenshui, mas lutamos obstinadamente e melhor. Só então se deram conta que, durante seis dias, haviam sido feitas de marionetes por um único regimento nosso. Apressadamente, voltaram para tentar alcançar nossa força principal, mas já era tarde demais. Nossa força principal já havia aniquilado várias divisões inimigas na região de Loushankuan e Tsunyi.
Completada a nossa missão de contenção, reunimo-nos com a força principal do V Corpo em Panchiao, ao sul de Loushankuan. Lá, recebemos um comunicado da Comissão Militar saudando o nosso regimento por cumprir exitosamente a sua missão com perdas mínimas.
“O verdadeiro mérito pertence à linha militar do Presidente Mao, que serviu-nos como guia”, disse o comandante Li Ping-jen com grande emoção. “Sem a sua brilhante direção, sem estratégia e táticas flexíveis e sem a reorganização das nossas tropas, não teríamos conseguido.”
Fornecendo cobertura à força principal
Nossa esmagadora vitória em Loushankuan e Tsunyi abalou o inimigo. Eles apressadamente ergueram fortificações e construíram casamatas ao longo da fronteira entre as províncias de Yunnan, Kueichau e Sichuan, e estavam cautelosos em nos confrontar. Para manter o inimigo em movimento e encontrar a melhor rota para avançar ao norte, em direção a Sichuan, no final de março, fomos repentinamente ordenados a cruzar novamente o Rio Wuchiang.
Continuando na retaguarda e seguindo nossa força principal, contornamos Kweiyang, atravessamos o sul de Kueichau e depois nos dirigimos a oeste, em direção a Kunming. Mantivemo-nos entusiasmados durante todo o trajeto. Desde que deixamos a Base de Apoio Central, nosso regimento foi frequentemente chamado para lutar em ações de retaguarda, mas nunca estivemos tão alegres e exultantes como agora. No início da marcha, lutávamos durante o dia e marchávamos à noite, sempre um passo à frente de nossos perseguidores. Muitas vezes, não tínhamos tempo para parar e comer ou dormir. Todas as noites, marchávamos aos trancos e barrancos, às vezes cobrindo meros quatro ou cinco quilômetros, embora tivéssemos apenas breves descansos. Ao amanhecer, as tropas inimigas bem alimentadas e descansadas, que haviam tomado as estradas principais, começavam a nos alcançar. Tínhamos que combatê-las à nossa esquerda, direita e na retaguarda.
Agora, ainda éramos a retaguarda, mas estávamos tão à frente de nossos perseguidores que, após cobrir cerca de 40 quilômetros durante a noite, podíamos parar ao amanhecer e descansar. Aproveitávamos esse tempo para ir às vilas mais próximas e explicar as políticas do Partido Comunista e os objetivos da luta do Exército Vermelho. Depois de investigar os crimes cometidos pelos tiranos latifundiários locais, convocávamos reuniões de massa e mobilizávamos os trabalhadores para invadir os armazéns e distribuir entre si os grãos dos latifundiários.
As novas vitórias inspiraram maior coragem e confiança em nossos comandantes e combatentes. Esse espírito era evidente em todos. Até aqueles levemente doentes ou feridos insistiam em carregar os seus próprios pertences. Certo dia, um soldado começou a ficar para trás de sua unidade. Vi que ele estava ferido e perguntei se ele achava que conseguiria nos acompanhar.
“Se fosse há alguns meses, eu já teria desabado”, disse ele com um sorriso. “Naquela época, eu não sabia para onde estávamos indo ou quais eram as nossas tarefas. Mas agora está tudo claro. Onde o Partido for, eu irei, com a certeza de que é o caminho correto. O que é um pequeno ferimento? Vou chegar bem à nova base de apoio.”
No final de abril, alcançamos a fronteira entre Yunnan e Kueichau e fingimos estar indo para Kunming, aproveitando o enfraquecimento das defesas inimigas. Então, repentinamente, o Exército Vermelho virou a noroeste, chegou a Chiaochetu, no Rio Chinsha (no Alto Yangtzé), e começou a cruzar para a margem norte na Balsa de Chiaoche. O V Corpo foi designado pela Comissão Militar para bloquear o inimigo nas proximidades do Rio Shihpan e detê-lo até que o exército completasse a travessia do Chinsha.
O Rio Shihpan corria ao sopé de uma alta montanha com uma subida de 30 km e uma descida de 25 km pelo outro lado; mais além deste estava o turbulento Rio Chinsha. O Camarada Tung Chen-tang, comandante do corpo, inspecionou o terreno e virou-se para nós, dizendo com entusiasmo: “Esta montanha será de grande ajuda. Com ela, podemos repelir ataques e resistir mesmo que o inimigo envie sua força principal para cá.”
Recebemos ordens para dispersar nossas forças pela montanha, controlar os terrenos mais elevados à frente e além dela, aproveitar ao máximo a cobertura disponível e repelir quaisquer investidas do inimigo. Se as condições permitissem, também deveríamos fustigá-lo à noite. Ademais, teríamos que cumprir nossa missão com o mínimo de baixas.
As forças de Wu Chi-wei, uma força principal das tropas pessoais de Chiang Kai-shek, só chegaram três dias depois. Desta vez, elas avançaram com cautela, pois nossos I e III Corpos haviam aniquilado duas de suas divisões em Tsunyi. Sob a cobertura de um pesado bombardeio, as tropas inimigas espalharam-se em frente às nossas posições e avançaram passo a passo, conforme prescrito em seus manuais de campo. Olhando para baixo, podíamos observá-las do nosso posto de comando operacional. Assim que o bombardeio cessou, elas atacaram. Recebemo-las com rajadas de granadas que fizeram-nas recuar em completa desordem ladeira abaixo. Tentaram atacar uma segunda e uma terceira vez. Nossas posições avançadas ficaram envoltas em fumaça, impossibilitando-nos de enxergar qualquer coisa.
De repente, um mensageiro apareceu para relatar a situação: “Sofremos apenas baixas leves devido às nossas posições dispersas (cerca de 10 a 20 homens por elevação). O bombardeio do inimigo é muito intenso, mas podemos resistir e aniquilá-lo”, disse ele. O relatório fez-nos compreender plenamente o quão correto era o comando de nossos superiores.
Os ataques continuaram. Estávamos ganhando tempo conforme planejado. Nosso plano era primeiro infligir o máximo possível de baixas ao inimigo e depois recuar um pouco. Nossas táticas de retardamento, obstinadas e flexíveis, detiveram o avanço do inimigo para não mais que três ou quatro quilômetros por dia.
No quinto dia, duas colunas inimigas concentraram-se no sopé da montanha. A situação parecia ameaçadora. Justo quando recuávamos para nossa última linha de defesa, o Camarada Li Fu-chun chegou. Ele havia sido enviado pelo Comitê Central do Partido e pelo Presidente Mao para nos informar que dois terços das 30 mil tropas já haviam cruzado o Chinsha usando os poucos barcos que conseguiram reunir. Se pudéssemos resistir por mais três dias e noites, ele disse, a campanha de Chiang Kai-shek, que mobilizara várias centenas de milhares de tropas para cercar, perseguir, obstruir, interceptar e aniquilar o Exército Vermelho, seria derrotada.
“O Presidente Mao ordenou-me dizer a vocês, camaradas”, disse Li Fu-chun, “que o Comitê Central do Partido está confiante de que o V Corpo completará esta grande e árdua tarefa!”
Imediatamente os Comitês do Partido em vários níveis e organizações políticas enviaram quadros para transmitir a diretiva do Presidente Mao ao longo das nossas linhas. Onde quer que se espalhasse a notícia de que o Presidente Mao havia enviado o Camarada Li Fu-chun à linha de frente, o espírito de luta dos soldados ardia ainda mais intensamente. A resposta de todos foi unânime: “Enquanto restar um combatente, a nossa posição será mantida. Diga ao Presidente Mao e ao Comitê Central do Partido que o V Corpo lutará até o último homem para garantir que a força principal conclua a travessia. Três dias e noites? Se necessário, resistiremos por mais dez!”
As instruções e a preocupação do Presidente Mao e do Comitê Central do Partido revigoraram ainda mais a nossa força de combate. Comandantes regimentais, comissários políticos e quadros administrativos foram às posições avançadas para lutar ombro a ombro com os soldados. O terreno nos favorecia. Cada colina ocupada por uma de nossas companhias ou até mesmo um pelotão conseguia deter um regimento inimigo inteiro. Eu estava com meus homens no topo de uma encosta íngreme, onde o único acesso era por um caminho em zigue-zague. Quando o bombardeio inimigo começava, nos abrigávamos atrás da colina e descansávamos. Alguns camaradas, calmamente, contavam o número de projéteis, todos caindo na ravina bem atrás de nós. Assim que o bombardeio cessava, subíamos até o topo da colina e começávamos a lançar granadas e empurrar pedras encosta abaixo. As explosões provocavam uma chuva de rochas e pedregulhos sobre as tropas inimigas, que ficavam aterrorizadas e recuavam em fuga desordenada. Um prisioneiro admitiu, tremendo: “Esses pedregulhos despencando não são brincadeira. Se eu tiver que morrer, quero morrer inteiro.”
Embora o inimigo estivesse em número muito superior, dez para um, lutamos obstinadamente. O sétimo, o oitavo e o nono dia passaram e nós ainda mantínhamos nossas posições. Então, ao anoitecer do nono dia, recebemos ordens para cruzar à margem norte do Chinsha e estabelecer defesas lá. Já havíamos transferido todos os nossos feridos para a retaguarda ainda durante a batalha, então, assim que a ordem chegou, conseguimos cobrir os 25 km até o rio em uma só marcha. Atravessamos o Chinsha na escuridão e depois incendiamos todos os barcos que haviam transportado os nossos homens e equipamentos do Exército Vermelho. No dia seguinte, as tropas inimigas chegaram ofegantes à margem sul do rio. Tudo o que puderam fazer foi ficar olhando para as águas turbulentas. A feroz e implacável campanha de Chiang Kai-shek, com várias centenas de milhares de tropas para cercar, perseguir, obstruir e interceptar-nos, provou-se um fiasco. Testemunha da história, o Rio Chinsha segue seu curso.
Três dias após a travessia, reunimo-nos com o I e III Corpos em Huili, na província de Sichuan, onde pudemos descansar e consolidar nossas forças. Huang Chen e outros camaradas escreveram uma peça de ato único para que o Grupo de Teatro Mengchin do V Corpo encenasse naquela noite. O nome da peça era “Uma sandália surrada”. Ela reencenava as experiências que acabávamos de vivenciar e contava como o Exército Vermelho, armado com o pensamento do Presidente Mao, derrotara o cerco do inimigo sob as condições mais difíceis, e zombava do inimigo comandado por Chiang Kai-shek. Suas tropas do Kuomintang perseguiram-nos por milhares de quilômetros e, ao chegar ao Rio Chinsha, encontraram tão somente uma sandália de palha jogada fora por um de nossos homens.
A primavera de 1935 permanecerá como um capítulo glorioso na história da revolução chinesa. O farol erguido na Conferência de Tsunyi tem guiado o nosso caminho de avanço desde então. Sob a direção do Presidente Mao e do Comitê Central do Partido, seguimos marchando de vitória em vitória.
Notas do Tradutor (N.T.):
1 À época da publicação deste relato de memórias, em 1975, Chang Nan-sheng era um comandante das Unidades de Pequim do Exército Popular de Libertação da China. – N.T.
2 Outra versão deste mesmo artigo foi veiculada na revista China Reconstructs, vol. XXV, nº 4, abril de 1976, com o título “Memórias da Longa Marcha: Após a Conferência de Tsunyi” e mais alterações na tradução para o inglês. A tradução para português do Brasil que publicamos em Servir ao Povo mescla trechos de ambas versões, mantendo o título e os intertítulos daquela disponível em Pequim Informa nº 47, 21 de novembro de 1975. – N.T.
3 Mao Tsetung, “Uma faísca pode incendiar toda a pradaria”, 1930. – N.T.
4 A Revolta de Ningtu foi uma rebelião do 26º Exército de Rota do Exército Nacional Revolucionário da República da China, no condado de Ningtu, província de Kiangsi, em 14 de dezembro de 1931, na qual 17 mil soldados desertaram do Kuomintang para o Exército Vermelho de Operários e Camponeses do Partido Comunista da China. – N.T.