Nota do blog: Publicamos a quarta e última parte (confira a primeira, a segunda e a terceira) de uma seleção de escritos políticos do grande dirigente marxista-leninista italiano Antonio Gramsci. Em Contra o pessimismo (1924), Gramsci ressalta a necessidade de “reagir energicamente contra o pessimismo de alguns grupos do nosso Partido, mesmo dos mais responsáveis e qualificados” e que enfrentar grandes lutas requer “a máxima energia dos nossos dirigentes, a máxima organização e centralização da massa do Partido, um grande espírito de iniciativa e uma grande presteza na decisão.” Em A escola de Partido (1925), ressalta que a formação de autênticos comunistas difere-se daquelas “levadas a efeito… na direção das ‘Universidades’ proletárias sem cor partidária… frequentemente veículo da influência, sobre a classe operária, de esforço e ideologias antiproletárias“, pois “nas nossas fileiras estuda-se para aumentar… as capacidades de luta de cada um e de toda a organização…” e que sem integrar a arma da consciência teórica e a doutrina revolucionária à prática revolucionária “o Partido não existe e sem Partido nenhuma vitória é possível.“
CONTRA O PESSIMISMO
Antonio Gramsci – Escritos Políticos vol. III (1977, Seara Nova)
Não assinado, L’Ordine Nuovo, 15/03/1924
Não pode existir modo melhor para comemorar o quinto aniversário da Internacional Comunista, da grande associação mundial de que nos sentimos, nós revolucionários italianos, mais do que nunca parte ativa e integrante, do que fazer um exame de consciência, um exame do pouquíssimo que fizemos e do imenso trabalho que ainda devemos desenvolver, contribuindo assim para classificar a nossa situação, contribuindo especialmente para dissipar esta obscura e grave nuvem de pessimismo que oprime os militantes mais qualificados e responsáveis e que representa um grande perigo, o maior talvez do momento atual, pelas suas consequências de passividade política, de torpor intelectual, de ceticismo em relação ao futuro.
Este pessimismo está estreitamente ligado à situação geral do nosso país; a situação explica-o mas não o justifica, naturalmente. Que diferença existiria entre nós e o Partido Socialista, entre a nossa vontade e a tradição do Partido Socialista, se também nós soubéssemos trabalhar e fossemos ativamente otimistas só nos períodos das vacas gordas, quando a situação é propícia, quando as massas trabalhadoras se movem espontaneamente, por impulso irresistível e os partidos proletários só podem acomodar na brilhante posição da mosca de cavalariça? Que diferença existiria entre nós e o Partido Socialista, se também nós, embora partindo de outras considerações, de outros pontos de vista, tendo embora um maior sentido de responsabilidade e demonstrando tê-lo com a preocupação ativa de preparar forças organizativas e materiais idôneas para defender qualquer eventualidade, nos abandonássemos ao fatalismo, nos abanássemos na doce ilusão que os acontecimentos só se podem desenvolver segundo uma determinada linha de desenvolvimento, a por nós prevista, na qual encontrarão infalivelmente o sistema de diques e canais por nós predisposto, nele se canalizando e tomando forma e potência histórica? É este o nó do problema que se apresenta confusamente embrulhado porque a passividade parece exteriormente trabalho entusiasta, porque parece existir uma linha de desenvolvimento, um filão em que operários suam e se afadigam a cavar meritoriamente.
A Internacional Comunista foi fundada em 5 de março de 1919, mas a sua formação ideológica e orgânica verificou-se só no II Congresso, em julho-agosto de 1920, com a aprovação do Estatuto e das 21 condições. A partir do II Congresso, começa em Itália a campanha para o saneamento do Partido Socialista, começa à escala nacional porque tinha já sido iniciada em março precedente pela seção de Turim com a moção a apresentar na iminente Conferência Nacional do Partido, que de fato se devia realizar em Turim, mas não tinha encontrado repercussões notáveis (na Conferencia de Florença da fração abstencionista, realizada em julho de 1920,1 antes do II Congresso, foi rejeitada a proposta feita por um representante de Ordine Nuovo2 para alargar a base da fração, tornando-a comunista, sem a condição abstencionista que praticamente tinha perdido a sua razão de ser). O Congresso de Livorno e a cisão ocorrida no Congresso de Livorno foram extensivos ao II Congresso, às suas 21 condições, foram apresentados como uma conclusão necessária das deliberações “formais” do II Congresso. Este foi um erro e hoje podemos avaliar-lhe toda a extensão pelas consequências que teve. Na verdade, as deliberações do II Congresso eram a interpretação viva da situação italiana, como de toda a situação mundial, mas nós, por uma série de razões, não partimos, para a nossa ação, do que sucedia em Itália, dos fatos italianos que davam razão ao II Congresso, que eram uma parte, e das mais importantes, da substância política que animava as decisões e as medidas organizativas tomadas pelo II Congresso: nós, porém, limitamo-nos a bater sobre as questões formais, de lógica pura, de coerência pura, e fomos derrotados porque a maioria do proletariado organizado politicamente não nos deu razão, não veio conosco, embora tivéssemos da nossa parte a autoridade e o prestígio da Internacional, que eram enormes e sobre os quais nos tínhamos fiado. Não tínhamos sabido conduzir uma campanha sistemática capaz de alcançar e obrigar à reflexão todos os núcleos e os elementos constitutivos do Partido Socialista, não tínhamos sabido traduzir em linguagem compreensível a todos os operários e camponeses italianos o significado de cada um dos acontecimentos italianos dos anos 1919-20: não soubemos, depois de Livorno, pôr o problema da razão pela qual o Congresso teve aquela conclusão, não soubemos pôr o problema praticamente de modo a encontrar-lhe a solução, de modo a continuar a nossa especifica missão que era a de conquistar a maioria do proletariado. Fomos – é preciso dizê-lo – arrastados pelos acontecimentos, fomos, sem o querer, um aspecto da dissolução geral da sociedade italiana, tornada uma mistura incandescente onde se fundiam todas as tradições, todas as formações históricas, todas as ideias prevalentes, algumas vezes sem resíduo: tínhamos uma consolação à qual nos agarramos tenazmente, a de que ninguém se salvava, a de que nós podíamos afirmar ter previsto matematicamente o cataclismo, quando os outros se abandonavam na mais feliz e idiota das ilusões.
Depois da cisão de Livorno, entramos num estado de necessidade. Só esta justificação podemos dar às nossas posições, à nossa atividade depois da cisão de Livorno: a necessidade que se punha cruamente, na forma mais exasperada, no dilema de vida ou morte. Tivemos que nos organizar em partido no fogo da guerra civil, cimentando as nossas seções com o sangue dos mais devotos militantes; tivemos que transformar, no próprio ato da sua constituição, da sua inscrição, os nossos grupos em destacamentos para a guerrilha, da mais atroz e difícil guerrilha que nunca uma classe operária teve que combater. Conseguiu-se todavia: o Partido foi constituído e fortemente constituído; é uma falange de aço, muito pequena certamente para entrar numa luta contra as forças adversárias mas suficiente para se tornar a armadura de uma mais vasta formação, de um exército que, para nos servirmos da linguagem histórica italiana, possa fazer suceder a batalha do Piave à rota de Caporetto.
Eis o problema atual que se põe inexoravelmente: constituir um grande exército para as próximas batalhas, constitui-lo enquadrando-o nas forças que de Livorno até hoje demonstraram saber resistir sem hesitações e sem recuos ao ataque vibrado violentamente pelo fascismo. O desenvolvimento da Internacional Comunista, depois do II Congresso, oferece-nos o terreno próprio para isso, interpreta – com as deliberações do III e do IV Congressos, deliberações integradas pelas dos Executivos alargados3 de fevereiro e junho de 1922 e de junho de 1923 – mais uma vez, a situação e as necessidades da situação italiana. A verdade é que nós, como Partido, já demos alguns passos em frente nesta direção: só nos resta avaliá-los e continuar com ousadia. Que significado tem, de fato, os acontecimentos desenvolvidos no seio do Partido Socialista com a cisão dos reformistas num primeiro momento, com a exclusão do grupo de redatores de Pagine Rosse num segundo momento e com a tentativa de excluir toda a fração aderente à III Internacional num terceiro e último momento?4 Têm este preciso significado: que, enquanto o nosso Partido era obrigado, como seção italiana, a limitar a sua atividade à luta física de defesa contra o fascismo e à conservação da sua estrutura primordial, ele, como partido internacional, operava, continuava a operar para abrir novas perspectivas para o futuro, para alargar o seu círculo de influência política, para fazer sair da neutralidade uma parte das massas que primeiro estava a olhar, indiferente ou titubeante. A ação da Internacional, por algum tempo, foi a única que permitiu ao nosso Partido ter um contato eficaz com as grandes massas, que conservou um fermento de discussão e um princípio de movimento em estratos conspícuos da classe operária que nos seria impossível, na situação dada, alcançar de outro modo. Foi sem dúvida um grande sucesso ter arrancado blocos do bando do Partido Socialista, ter obtido, quando a situação parecia pior, que da amorfa gelatina socialista se constituíssem núcleos, os quais, não obstante tudo, afirmavam ter fé na revolução mundial, os quais, com os fatos, quando não com as palavras que parecem queimar mais do que os fatos, reconheciam ter errado em 1920-21-22. Esta foi uma derrota do fascismo e da reação: se quisermos ser sinceros, foi a única derrota física e ideológica do fascismo e da reação nestes três anos de história italiana.
Ocorre reagir energicamente contra o pessimismo de alguns grupos do nosso Partido, mesmo dos mais responsáveis e qualificados. Ele representa, neste momento, o mais grave perigo, na situação nova que se está formando no nosso país e que encontrará a sua sanção e a sua clarificação na primeira legislatura fascista. Aproximam-se grandes lutas, talvez mais sanguinosas e pesadas do que as dos anos passados: é necessária por isso a máxima energia dos nossos dirigentes, a máxima organização e centralização da massa do Partido, um grande espírito de iniciativa e uma grande presteza na decisão. O pessimismo toma prevalentemente este tom: voltamos a uma situação pré-Livorno, teremos que refazer o mesmo trabalho que fizemos antes de Livorno e que pensávamos definitivo. É preciso demonstrar a cada camarada como é errada, política e teoricamente, esta posição. Será preciso, decerto, lutar ainda fortemente: a tarefa do núcleo fundamental do nosso Partido que se constituiu em Livorno não acabou decerto ainda e não terminará por um certo período (será ainda vivo e atual mesmo depois da revolução vitoriosa). Mas já não nos encontraremos numa situação pré-Livorno porque a situação mundial e italiana não é, em 1924, a de 1920, porque nós próprios já não somos os de 1920 e nunca mais quereríamos voltar a esse tempo. Porque a classe operária italiana mudou muito e já não será a coisa mais simples deste mundo fazê-la reocupar as fábricas, tendo, como canhões, tubos de estufa, depois de lhe ter enchido as orelhas e removido o sangue com a torpe demagogia das feiras maximalistas. Porque existe o nosso Partido, que é alguma coisa, que demonstrou ser alguma coisa e no qual nós temos uma confiança ilimitada, como na parte melhor, mais sã e mais honesta do proletariado italiano.
A ESCOLA DE PARTIDO
Antonio Gramsci – Escritos Políticos vol. IV (1978, Seara Nova)
Não assinado, L’Ordine Nuovo, 01/04/1925, rubrica “Editoriale”
Enquanto se inicia o primeiro curso de uma escola de Partido, não podemos deixar de pensar nas numerosas tentativas que se fizeram neste campo, no interno do movimento operário italiano, e na singular sorte que elas tiveram. Deixemos de parte as tentativas levadas a efeito numa direção que não é a nossa, na direção das “Universidades” proletárias sem cor partidária, academias oratórias privadas de qualquer interno princípio de coesão unitária nos seus melhores elementos, frequentemente veículo da influência, sobre a classe operária, de esforço e ideologias antiproletárias. Tiveram o destino que lhes convinha, de sucessão e cruzamento sem deixar nenhum traço profundo. Mas nem sequer a propósito das tentativas feitas no nosso campo, e sob a nossa direção, se pode dizer muito de diverso. Tiveram, acima de tudo, sempre caráter esporádico e, além disso, nunca conduziram a resultados satisfatórios. Recordemos, por exemplo, os anos 1919-20. A escola então iniciada em Turim, entre um grande fervor de entusiasmo e em condições assaz favoráveis, nem sequer durou o tempo necessário para desenvolver o programa traçado no início. Não obstante isto, teve uma repercussão bastante favorável no nosso movimento, porém não aquele que esperavam os promotores e os alunos. Das outras tentativas, por aquilo que conhecemos, nenhuma teve o sucesso e a repercussão daquela. Nunca se saiu do grupo limitado, do pequeno círculo, do esforço de poucos isolados. Não se conseguiu combater e superar a aridez e a infecundidade dos restritos movimentos “culturais” burgueses.
Motivo fundamental destes insucessos foi a ausência de uma ligação entre as “escolas” projetadas ou iniciadas e um movimento de caráter objetivo. 0 único caso em que existe esta ligação é o da escola de Ordine Nuovo de que falamos no início. Neste caso, porém, o movimento de caráter objetivo – o movimento de fábrica e de partido, em Turim – é de tal amplitude que excede e quase anula completamente a tentativa de criar uma escola na qual se afinem as capacidades técnicas dos militantes. Uma escola adequada a importância daquele, movimento requereria, não a atividade de poucos, mas o esforço sistemático e ordenado de todo um partido.
Considerada deste modo a pouca sorte que tocou até agora às tentativas para criar escolas para os militantes do proletariado, em relação com a sua causa fundamental, ela aparece não tanto como um mal mas como sinal de inatacabilidade do movimento operário por parte do que seria, para ele, efetivamente um mal. (Mal seria se o movimento operário se tornasse campo de saque ou instrumento de experiência para a suficiência de mal formados pedagogos, se ele perdesse o seu caráter de apaixonada milícia para assumir os de estudo objetivo e de “cultura” desinteressada.) Nem um “estudo objetivo” nem uma “cultura desinteressada” podem ter lugar nas nossas fileiras, nada que se assemelhe ao que é considerado como objetivo normal de ensino, segundo a concepção humanista, burguesa, da escola.
Somos uma organização de luta e nas nossas fileiras estuda-se para aumentar, para afinar as capacidades de luta de cada um e de toda a organização, para compreender melhor quais são as posições do inimigo e as nossas, para melhor poder adequar, a partir delas, a nossa ação de cada dia. Estudo e cultura não são, para nós, outra coisa senão consciência teórica dos nossos fins imediatos e supremos e do modo como poderemos conseguir traduzi-los na prática.
Até que ponto esta consciência existe hoje no nosso Partido, se difundiu nas suas fileiras, penetrou nos camaradas que têm funções de direção e nos simples militantes que devem por quotidianamente em contato com as massas as palavras do Partido, tornar eficazes as suas ordens, realizar as suas diretivas? Ainda não, segundo cremos, na medida necessária para nos tornar aptos a cumprir em cheio o nosso trabalho de guia do proletariado. Ainda não na medida adequada ao nosso desenvolvimento numérico, aos nossos recursos organizativos, às possibilidades políticas que a situação nos oferece. A escola de Partido deve propor-se preencher o vazio que existe entre o que deveria ser e o que é. Está estreitamente ligada com um movimento de forças que nós temos o direito de considerar como as melhores que a classe operária italiana desenvolveu no seu interior. É a vanguarda do proletariado, a qual forma e instrui os seus quadros, que junta uma arma – a sua consciência teórica e a doutrina revolucionária – àquelas com as quais se prepara para enfrentar os seus inimigos ou as suas batalhas. Sem esta arma o Partido não existe e sem Partido nenhuma vitória é possível.
- A conferência realizou-se em maio. ↩︎
- O próprio Gramsci, que nele tomou parte como observador. ↩︎
- Sessões especiais plenárias do Comitê Executivo, “alargadas” porque nelas tomavam parte representantes comunistas que não eram membros do Comitê. ↩︎
- A revista Pagine Rosse publicava-se em Milão desde junho de 1923 e representava as posições da corrente dita precisamente “terzinternazionalista” ou “terzina” porque propugnava o regresso do PSI às filas da Internacional Comunista. ↩︎