Nota do blog: Publicamos a terceira de quatro partes (confira a primeira e a segunda) de uma seleção de escritos políticos do grande dirigente marxista-leninista italiano Antonio Gramsci. Nos artigos que seguem abaixo, A disciplina internacional (1920) e O Partido Comunista (1920), Gramsci defende a máxima disciplina e centralização exigidas pela Internacional Comunista para que “seja um potente aparelho de luta, capaz de pedir e obter de cada partido aderente toda a disciplina e todo o espírito de sacrifício que pode ser solicitado e obtido”, e aponta que “os traços característicos da revolução proletária só podem ser procurados no partido da classe operária, no Partido Comunista, que existe e se desenvolve porque é a organização disciplinada…”. Encabeçando a luta contra o revisionismo e pela constituição de um autêntico Partido Comunista na Itália, Gramsci destaca: “Os comunistas sinceros e desinteressados… devem desenvolver o trabalho necessário para que… seja constituída a fração comunista do Partido Socialista Italiano, a qual… deve tornar-se… de nome e de fato, no Partido Comunista Italiano, seção da III Internacional Comunista; para que a fração comunista se constitua em um aparelho diretivo orgânico e fortemente centralizado, com articulações próprias e disciplinadas em todos os ambientes onde atua,… como um verdadeiro e próprio partido.”
A DISCIPLINA INTERNACIONAL
Antonio Gramsci – Escritos Políticos vol. II (1977, Seara Nova)
Não assinado, L’Ordine Nuovo, 16-23/10/1920, seção “La settimana politica”
A III Internacional Comunista, diferentemente da II, quer que sejam atuadas entre os partidos que entram na sua organização o máximo de disciplina e o máximo de centralização: esta é uma necessidade histórica absoluta, especialmente para os revolucionários italianos. Nenhum Estado operário, mais do que o Estado operário italiano, terá necessidade da solidariedade do proletário mundial: é para nós condição existencial a instauração de uma férrea disciplina e de uma centralização do movimento revolucionário internacional; devemos querer que a Internacional Comunista seja um potente aparelho de luta, capaz de pedir e obter de cada partido aderente toda a disciplina e todo o espírito de sacrifício que pode ser solicitado e obtido. Naturalmente que temos o direito de pedir só o que demonstramos desejar que nos concedam, voluntariamente, e o direito de desejar conceder porque retemos que é absolutamente necessário de um ponto de vista geral, porque vemos e explicamos a nossa posição histórica num quadro internacional, porque a nossa ação e a nossa vontade aderem ao processo histórico que conduz todas as classes operarias do mundo à reorganização da economia mundial, com bases comunistas e à escala mundial.
A Itália é já bloqueada antes da revolução. O bloqueio da Itália é dependente não tanto da vontade reacionária como do fato de a Itália não ter uma grande propriedade nacional. A Itália é bloqueada porque não tem meios, do ponto de vista nacional, para pagar as importações necessárias à vida das suas indústrias e à vida dos seus habitantes; a Itália não tem reservas áureas nos bancos, não tem minas, não tem grandes bosques, não tem qualquer matéria-prima no seu solo e subsolo; a Itália é como um limão espremido, foi reduzida pelo regime de exploração intensiva do capitalismo às mesmas condições (ou quase) da Palestina com o aflorar dos betumes e dos miasmas. Quando um burguês ou um reformista afirmam “Se em Itália rebenta a revolução operária, a Itália será bloqueada e morrerá de fome”, o burguês ou o reformista raciocinam como uma mula vendada; de fato a Itália está bloqueada; o bloqueio começou, como para a Rússia, a partir do dia em que rebentou a guerra; o bloqueio foi-se intensificando à medida que se esgotava o crédito, à medida que se iam esgotando as riquezas comerciais e consumíveis existentes no território nacional. Esta condição de bloqueio efetivo, de bloqueio implacável, tanto mais tremendo quanto mais depende de causas econômicas gerais, da pobreza absoluta do país, foi agravada pela tática reformista de desencadear movimentos revolucionários sem uma conclusão revolucionária; calcula-se que o movimento metalúrgico tenha determinado um êxodo de trinta mil milhões de capital comerciável; com medo do bloqueio, o movimento foi travado; este medo “neomaltusiano”, agravou o bloqueio efetivo, a razão de trinta mil milhões, da nova pobreza italiana.
Os reformistas e os burgueses, que acusam os revolucionários de ver a Rússia como modelo histórico, caem assim num estúpido paralelismo entre a Itália e a Rússia a propósito do bloqueio. A verdade é que a Itália se encontra em condições diversas e em condições enormemente piores do que a Rússia, se estas condições são apreciadas do ponto de vista da propriedade privada e nacional. A Rússia possui ouro e platina (os bancos russos, come é sabido, possuíam as mais ingentes massas áureas do mundo); a Rússia possui algumas provisões de trigo e de peles, possui muitas madeiras e muito mineral. A Rússia poderia comerciar esta riqueza; é realmente o bloqueio que a impede de comerciar a sua riqueza, o capitalismo mundial sustenta que a riqueza existente na Rússia é propriedade dos burgueses não dos operários e não quer permitir que os operários russos cumpram atos de comércio internacional. Se a Rússia dos Sovietes não fosse obrigada a defender-se das agressões da reação internacional, o povo russo poderia dirigir toda a sua energia criativa para reproduzir a riqueza destruída pela guerra, para produzir novos instrumentos e nova organização econômica; ele pode fazer isso porque a Rússia é rica como solo e como subsolo, porque a Rússia tem uma população escassíssima para um território interminável.
A Itália é pobre “nacionalmente”; o operário italiano só pode salvar-se, o povo italiano só pode salvar-se quando se realizar a Internacional Comunista, isto é, só quando for abolida, além da propriedade privada, também a propriedade nacional, só quando se atuar uma organização internacional das economias nacionais que ponha o produtor italiano em pé de igualdade com o produtor inglês, americano, russo, indiano, etc… A burguesia imperialista atuou qualquer coisa de semelhante durante a guerra, com vista às suas finalidades; obtida a vitória, caiu a organização econômica que dava o pão, o arroz, o ferro e o carvão ao povo italiano para que resistisse até a vitória; o povo reentrou nos quadros da propriedade e da possibilidade nacionais: a ajuda dada, uma vez alcançada a finalidade, tornou-se em débito, tornou-se uma pedra sobre o pescoço. Trata-se de reconstruir esta organização para um fim não transitório, não episódico, mas que represente uma necessidade permanente que se identifique com o processo de desenvolvimento histórico da civilização mundial. Este fim pode ser atuado pela Internacional Comunista se ela conseguir obter do proletariado o rendimento histórico que ele é capaz de dar: o proletariado italiano, pela sua riqueza demográfica, pela sua riqueza de energia revolucionária, pode ser a determinante da revolução mundial, pode ser a força vulcânica capaz de fazer saltar os últimos baluartes da reação mundial. Mas para cumprir esta missão, cheia de dificuldades, plena de sacrifícios e de dores sem fim, o proletariado italiano deve submeter-se a uma disciplina de ferro, nacional e internacional. Só em tais condições se salvará o povo italiano do abismo para onde o atiraram os seus dirigentes burgueses, cegos, ignorantes, vaidosos, que ainda continuam a raciocinar como se a Guerra Mundial se tivesse deixado vestígios na ordem do sentimento e da política.
O PARTIDO COMUNISTA
Antonio Gramsci – Escritos Políticos vol. II (1977, Seara Nova)
Não assinado, L’Ordine Nuovo, 04/09 e 09/10/19201
I
Depois de Sorel, tornou-se um lugar-comum a referência às primitivas comunidades cristãs para julgar o movimento proletário moderno. Ocorre desde já dizer que Sorel não é de modo nenhum responsável pela mesquinhez e pela grosseria espiritual dos seus admiradores italianos, como Karl Marx não é responsável pelas absurdas pretensões ideológicas dos “marxistas”. Sorel é, no campo da análise histórica, um “inventor”, não pode ser imitado, não põe ao serviço dos seus aspirantes a discípulos um método que possa aplicar-se mecanicamente, sempre e por todos, com resultados de descobertas inteligentes. Para Sorel, como para a doutrina marxista, o cristianismo representa uma revolução na plenitude do seu desenvolvimento, isto é, uma revolução que chegou às suas extremas consequências, a criação de um novo e original sistema de relações morais, jurídicas, filosóficas, artísticas. Assumir estes resultados como esquemas ideológicos de qualquer revolução, eis a grosseira e desinteligente traição da intuição histórica soreliana, a qual só pode dar origem a uma série de análises históricas sobre os “germes” que devem existir de uma civilização proletária, se é verdade (come o é para Sorel) que a revolução proletária é imanente no cerne da sociedade industrial moderna, se é verdade que também dela resultará a uma regra de vida original e um sistema de relações absolutamente novos, característicos da classe revolucionária. Que significado pode ter, pois, a afirmação de que, diferentemente dos primeiros cristãos, os operários não são castos, não são temperantes, não são originais no seu método de vida? À parte a generalização diletante, pela qual os “operários metalúrgicos de Purim” se tornam uma mixórdia de brutos que todos os dias comem frango assado, que todas as noites se embebedam nos prostíbulos, que não amam a família, que procuram no cinema e na imitação simiesca dos hábitos burgueses a satisfação dos seus ideais de beleza e de vida moral
– à parte esta generalização diletante e pueril, a afirmação não pode de fato tornar-se pressuposto de um juízo histórico; equivaleria, na ordem da inteligência histórica, a estoutra: visto que os cristãos modernos comem frango, frequentam as prostitutas, se embebedam, dizem falsos testemunhos, são adúlteros, etc., etc., é uma lenda que tenham existido os ascetas, os mártires, os santos. Cada fenômeno histórico, em suma, deve ser estudado pelos seus caracteres peculiares, no quadro da atualidade real, como desenvolvimento da liberdade que se manifesta em finalidade, em instituições, em formas que não podem ser absolutamente confundidas e comparadas (além de metaforicamente) com as finalidades, as instituições, as formas dos fenômenos históricos passados. Cada revolução, a qual, como a cristã e como a comunista, se atua e se pode atuar-se com um movimento das mais profundas e vastas massas populares, não pode deixar de despedaçar e destruir todo o sistema existente de organização social; quem pode imaginar e prever as consequências imediatas que provocará a aparição, no campo da destruição e da criação histórica, das imensas multidões que hoje não têm vontade e poder? Estes, porque nunca “quiseram e puderam”, pretenderão ver materializados em cada ato público e privado a vontade e o poder conquistados, estas acharão misteriosamente hostil todo o existente e quererão destruí-lo desde os alicerces; mas justamente por esta imensidade da revolução, por este seu caráter de imprevisibilidade e de imensa liberdade, quem pode arriscar uma única hipótese definitiva sobre os sentimentos, as paixões, as iniciativas, as virtudes que se forjarão numa tal forja incandescente? O que hoje existe, o que hoje vemos, fora da nossa força de vontade e da nossa força de caráter, que mudanças poderá sofrer? Cada dia de uma tal intensa vida não será uma revolução? Cada mudança nas consciências individuais, porque obtida simultaneamente por toda amplitude da massa popular, não tem resultados criativos inimagináveis?
Nada pode ser previsto, na ordem da vida moral e dos sentimentos, partindo das constatações atuais. Um só sentimento, tornado já constante, capaz de caracterizar a classe operária, nos é dado hoje verificar: o da solidariedade. Mas a intensidade e a força deste sentimento só podem ser avaliadas como base da vontade de resistir e de sacrificar-se por um período de tempo que mesmo a escassa capacidade popular de previsão histórica consegue medir com uma certa aproximação; não podem ser avaliadas e, portanto, assumidas como base da vontade histórica para o período da criação revolucionária e da fundação da sociedade nova, quando for impossível fixar cada limite temporal na resistência e no sacrifício, visto que o inimigo a combater e a vencer deixa de estar fora do proletariado, já não será uma potência física externa, limitada e controlável, mas estará no próprio proletariado, na sua ignorância, na sua preguiça, na sua maciça impenetrabilidade às rápidas intuições, quando a dialética da luta de classes se tiver interiorizado e em cada consciência o homem novo tiver que combater, em cada ato, o “burguês” que espera o seu momento. Por isso o sindicato operário, organismo que realiza e disciplina a solidariedade proletária, não pode ser motivo e base de previsões para o futuro da civilização; ele não contém elementos de desenvolvimento para a liberdade; ele está destinado a sofrer mudanças radicais em consequência do desenvolvimento geral: é determinado, não determinante.
O movimento proletário, na sue fase atual, tende a atuar uma revolução na organização das coisas materiais e das forças físicas; os seus traços característicos não podem ser os sentimentos e as paixões difusas nas massas e que sustentam a vontade das massas; os traços característicos da revolução proletária só podem ser procurados no partido da classe operária, no Partido Comunista, que existe e se desenvolve porque é a organização disciplinada da vontade de fundar um Estado, da vontade de dar uma sistematização proletária à ordem das forças físicas existentes e de lançar as bases da liberdade popular.
O Partido Comunista é, no atual período, a única instituição que pode seriamente confrontar-se com as comunidades religiosas do cristianismo primitivo; nos limites em que já existe o Partido, à escala internacional, pode tentar-se uma comparação e estabelecer-se uma ordem de juízos entre os militantes pela Cidade de Deus e os militantes pela Cidade do Homem; o comunista não é decerto inferior ao cristão das catacumbas. Pelo contrário! O fim inefável que o cristianismo punha aos seus modelos é, pelo seu mistério sugestivo, uma justificação plena de heroísmo, da sede de martírio, da santidade; não é necessário que entrem em jogo as grandes forças humanas do caráter e da vontade para suscitar o espírito de sacrifício de quem crê no prêmio celeste e na eterna felicidade. O operário comunista que durante semanas, meses, anos, desinteressadamente, depois de oito horas de trabalho na fábrica, trabalha outras oito horas para o Partido, para o sindicato, para a cooperativa é, do ponto de vista da história do homem, maior do que o escravo e o artesão que desafiavam todos os perigos para comparecerem no convênio clandestino da oração. Do mesmo modo, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht são maiores do que os maiores santos de Cristo. Precisamente porque a finalidade da sua milícia é concreta, humana, limitada, os lutadores da classe operária são maiores do que os lutadores de Deus: as forças morais que sustentam a sua vontade são tanto mais desmedidas quanto mais é definido o fim proposto pela vontade. Que forças de expansão poderão conquistar os sentimentos do operário, o qual, dobrado sobre a máquina, repete por oito horas ao dia o gesto profissional, monótono como o rezar do círculo fechado da oração, quando for “dominador”, quando for a medida dos valores sociais? O próprio fato de o operário conseguir ainda pensar, embora sendo reduzido a operar sem saber o como e o porquê da sua atividade prática, não é um milagre? Este milagre do operário que cotidianamente conquista a própria autonomia espiritual e a própria liberdade de construir na ordem das ideias, lutando contra a fadiga, contra o enfado, contra a monotonia do gesto que tende a mecanizar e, portanto, a matar a vida interior, este milagre organiza-se no Partido Comunista, na vontade de luta e de criação revolucionárias que se exprime no Partido Comunista.
O operário, na fábrica, tem encargos meramente executivos. Não segue o processo geral do trabalho e da produção; não é um ponto que se move para criar uma linha; é um alfinete cravado num local determinado e a linha resulta da sequência de alfinetes que uma vontade estranha dispôs para os seus fins. O operário tende a transportar este seu modo de ser a todos os ambientes da sua vida; acomoda-se facilmente, por toda a parte, ao ofício de executor material, de “massa” guiada por uma vontade estranha à sua; é preguiçoso intelectualmente, não sabe e não quer prever para além do imediato, por isso lhe falta qualquer critério na escolha dos seus dirigentes e deixa-se iludir facilmente pelas promessas; quer acreditar que pode obter sem um grande esforço da sua parte e sem ter que pensar muito. O Partido Comunista é o instrumento e a forma histórica do processo de íntima libertação pela qual o operário passa de executor a iniciador, passa de massa a dirigente e guia, passa de braço a cérebro e vontade; na formação do Partido Comunista pode-se colher o germe de liberdade que terá o seu desenvolvimento e a sua plena expansão quando o Estado operário tiver organizado as condições materiais necessárias. O escravo ou o artesão do mundo clássico “conheciam-se a si próprios”, atuavam a sua libertação entrando para a comunidade cristã onde concretamente sentiam ser iguais, serem irmãos porque filhos do mesmo pai; assim acontece com o operário, entrando para o Partido Comunista, onde colabora para “descobrir” e para “inventar” modos de vida originais, onde colabora voluntariamente na atividade do mundo, onde pensa, prevê, tem uma responsabilidade, onde é organizador para além de ser organizado, onde sente constituir uma vanguarda que marcha em frente arrastando consigo toda a massa popular.
O Partido Comunista, mesmo como mera organização, revelou-se forma particular da revolução proletária. Nenhuma revolução do passado conheceu os partidos; estes nasceram depois da revolução burguesa e decompuseram-se no terreno da democracia parlamentar. Também neste campo se verificou a ideia marxista de que o capitalismo cria forças que depois não consegue dominar. Os partidos democráticos serviam para indicar homens políticos de valor e para fazê-lo triunfar na concorrência politica; hoje, os homens de governo são impostos pelos bancos, pelos grandes jornais, pelas associações industriais; os partidos decompuseram-se numa multiplicidade de camarilhas pessoais. O Partido Comunista, surgindo das cinzas dos partidos socialistas, repudia as suas origens democráticas e parlamentares e revela os seus caracteres essenciais que são originais na história: a revolução russa é revolução executada pelos homens organizados no Partido Comunista, que plasmaram no partido uma personalidade nova, conquistaram novos sentimentos, realizaram uma vida moral que tende a tornar-se consciência universal e finalidade para todos os homens.
II
Os partidos políticos são o reflexo e a nomenclatura das classes sociais. Surgem, desenvolvem-se, decompõem-se, renovam-se conforme os diversos estratos das classes sociais em luta, sofrem mudanças de real interesse histórico, veem radicalmente mudadas as suas condições de existência e de desenvolvimento, conquistam uma maior e mais clara consciência de si e dos seus vitais interesses. No atual período histórico, e como consequência da guerra imperialista que mudou profundamente a estrutura do aparelho nacional e internacional de produção e de colocação, tornou-se característica a rapidez com que se desenvolve o processo de dissociação dos partidos políticos tradicionais, nascidos no terreno da democracia parlamentar, e o surgir de novas organizações políticas: este processo geral obedece a uma íntima lógica implacável, substanciada pela decomposição das velhas classes e dos velhos setores e pelas vertiginosas passagens de uma condição a outra de completos estratos da população em todo o território do Estado e, frequentemente, em todo o território do domínio capitalista.
Também as classes sociais historicamente mais preguiçosas e tardias a diferenciarem-se, como a classe dos camponeses, não fogem à ação enérgica dos reagentes que dissolvem o corpo social; parece até que estas classes, quanto mais preguiçosas e tardias foram no passado, tanto mais querem hoje alcançar aceleradamente as consequências dialeticamente extremas da luta de classes, a guerra civil e a violação das relações econômicas.
Vimos, em Itália, no espaço de dois anos, surgir como que do nada um potente partido da classe camponesa, o Partido Popular, que com o seu nascimento presumia representar os interesses econômicos e as aspirações políticas de todos os estratos sociais do campo, desde o barão latifundiário ao médio proprietário de terras, do pequeno proprietário ao arrendatário, do meeiro ao camponês pobre. Vimos o Partido Popular conquistar quase cem lugares no Parlamento com listas unitárias nas quais tinham absoluta prevalência os representantes do barão latifundiário, do grande proprietário dos bosques, do grande e médio proprietário e exígua minoria da população camponesa. Vimos iniciar-se imediata e rapidamente, tornando-se espasmódicas, as lutas internas de tendências no Partido Popular, reflexo da diferenciação que se atuava na primitiva massa eleitoral; as grandes massas dos pequenos proprietários e dos camponeses pobres não quiseram continuar a ser a passiva massa de manobra para a atuação dos interesses dos médios e grandes proprietários; sob a sua enérgica pressão, o Partido Popular dividiu-se numa fração de direita, num centro e numa esquerda, e vimos, portanto, sob a pressão dos camponeses pobres, a extrema esquerda exprimir-se como revolucionária, entrar em concorrência com o Partido Socialista, tornado também ele representante de vastíssimas massas camponesas; observamos já a decomposição do Partido Popular, cuja fração parlamentar e cujo Comitê Central já não representam os interesses e a conquistada consciência das massas eleitorais e das forças organizadas nos sindicatos brancos, representadas, pelo contrário, pelos extremistas, os quais não querem perder o controle delas, não podem iludi-las com uma ação legal no Parlamento e são portanto levados a recorrer à luta violenta e a desejar novas instituições políticas de governo. O mesmo processo de rápida organização e rapidíssima dissociação se verificou na outra corrente política que quis representar os interesses dos camponeses, a associação dos ex-combatentes; isso é o reflexo da formidável crise interna que atormenta o território rural italiano e manifesta-se nas gigantescas greves da Itália setentrional e central, na invasão e repartição dos latifúndios da Puglia, nos assaltos a castelos feudais e na aparição, nas cidades da Sicília, de centenas e milhares de camponeses armados.
Este profundo movimento das classes camponesas abana os alicerces da estrutura do Estado parlamentar democrático. O capitalismo, como força politica, é reduzido às associações sindicais dos proprietários de fábricas; já não tem um partido político cuja ideologia abranja também os estratos pequeno-burgueses da cidade e do campo e permita portanto, a permanência de um Estado legal com largas bases. O capitalismo vê-se reduzido a uma representação política só nos grandes jornais (400 mil exemplares de tiragem, mil eleitores) e no Senado, imune, como formação, às ações e reações das grandes massas populares, mas sem autoridade e prestígio no país; por isso a força política do capitalismo tende a identificar-se cada vez mais com a alta hierarquia militar, com a guarda real, com os múltiplos aventureiros, pululando depois do armistício e aspirantes a tornarem-se, cada um contra os outros, o Kornilov2 e o Napoleão italianos e, por isso, a força política do capitalismo não pode hoje atuar-se senão num golpe de estado militar e na tentativa de impor uma férrea ditadura nacionalista que leve as embrutecidas massas italianas a restaurarem a economia com o saque à mão armada dos países vizinhos.
Esgotada e consumida a burguesia como classe dirigente, com o esgotamento do capitalismo como modo de produção e de venda, não existindo na classe camponesa uma força política homogênea capaz de criar um Estado, a classe operária é inelutavelmente chamada pela história a assumir a responsabilidade de classe dirigente. Só o proletariado é capaz de criar um Estado forte e temido, porque tem um programa de reconstrução econômica, o comunismo, que encontra as suas necessárias premissas e condições na fase de desenvolvimento alcançada pelo capitalismo com a guerra imperialista de 1914-18; só o proletariado, criando um novo órgão de direito público, o sistema dos Sovietes, pode dar uma forma dinâmica à fluida e incandescente massa social e restaurar uma ordem na geral perturbação das forças produtivas. É natural e historicamente justificado que, precisamente num período como este, se ponha o problema da formação do Partido Comunista, expressão de vanguarda proletária que tem exata consciência da sua missão histórica, que fundará as novas ordens, que será o iniciador e o protagonista do novo e original período histórico.
Até o tradicional partido político da classe operária italiana, o Partido Socialista, não fugiu ao processo de decomposição de todas as formas associativas, processo que é característico do período que atravessamos. O ter acreditado que podia salvar a velha unidade do partido da sua íntima dissolução foi o colossal erro histórico dos homens que, desde o rebentar da guerra mundial até hoje, controlam os órgãos de governo da nossa associação. Na verdade, o Partido Socialista Italiano, pelas suas tradições, pelas origens históricas das várias correntes que o constituíram, pelo pacto de aliança, tácito ou explícito, com a Confederação Geral do Trabalho (pacto que nos congressos, nos conselhos e em todas as reuniões deliberativas serve para dar um poder e um influxo injustificado aos funcionários sindicais), pela autonomia ilimitada concedida ao grupo parlamentar (que dá, mesmo aos deputados nos congressos, nos conselhos e nas deliberações da mais alta importância, um poder e um influxo semelhante ao dos funcionários sindicais e do mesmo modo injustificado), o Partido Socialista Italiano não difere, em nada, do Labour Party inglês e só é revolucionário pelas afirmações gerais do seu programa. E um conglomerado de partidos; move-se e não pode deixar de mover-se preguiçosa e tardiamente; é exposto continuamente a tornar-se o fácil país de conquista de aventureiros, de carreiristas, de ambiciosos sem seriedade e capacidade política; pela sua heterogeneidade, pelos atritos inumeráveis das sues engrenagens, gastas e sabotadas poles servos-patrões,3 já não é capaz de assumir o peso e a responsabilidade das iniciativas e das ações revolucionárias que os acontecimentos prementes incessantemente lhe impõem. Isso explica o paradoxo histórico pelo qual em Itália são as massas que impulsionam e “educam” o partido da classe operária e não o Partido que guia e educa as massas.
O Partido Socialista diz-se defensor das doutrinas marxistas; o partido deveria portanto ter nestas doutrinas uma bússola para se orientar no enredo dos acontecimentos, deveria possuir aquela capacidade de previsão histórica que caracteriza os sequazes inteligentes da dialética marxista, deveria ter um plano geral de ação baseado nesta previsão histórica, ser capaz de lançar à classe operária em luta palavras de ordem claras e precisas; em vez disso, o Partido Socialista, o partido defensor do marxismo em Itália, como o Partido Popular, como o partido das classes mais atrasadas da população italiana, está exposto a todas as pressões das massas, move-se e diferencia-se quando as massas já se deslocaram e diferenciaram. Na verdade, este Partido Socialista, que se proclama guia e mestre das massas, não é mais do que um pobre notário que registra as operações cumpridas espontaneamente pelas massas; este pobre Partido Socialista, que se proclama dirigente da classe operária, não é mais do que impedimenta do exército proletário.
Se este estranho proceder do Partido Socialista, se esta bizarra condição do partido político da classe operária não provocaram até agora uma catástrofe, o fato deve-se a que no interior da classe operária, nas seções urbanas do partido, nos sindicatos, nas fábricas, nas aldeias, existem grupos enérgicos de comunistas conscientes do seu trabalho histórico, enérgicos e prevenidos para a ação, capazes de guiarem e de educarem as massas locais do proletariado; o fato deve-se à existência potencial, no interior do Partido Socialista, de um Partido Comunista, ao qual só falta a organização explícita, a centralização e uma sua disciplina para se desenvolver rapidamente, para conquistar e renovar o conjunto do partido da classe operária, para dar uma nova orientação à Confederação Geral do Trabalho e ao movimento cooperativo.
O problema imediato deste período, que sucede a luta dos operários metalúrgicos e precede o congresso em que partido deve assumir uma posição séria e precisa perante a Internacional Comunista, é precisamente o de organizar e centralizar estas forças comunistas já existentes e operantes. O Partido Socialista, dia após dia, com uma rapidez fulminante, decompõe-se e caminha para a ruína; as tendências, num brevíssimo espaço de tempo, conquistaram já uma nova configuração; postos perante as responsabilidades de ação histórica e os compromissos assumidos ao aderirem à Internacional Comunista, os homens e os grupos confundiram-se, deslocaram-se; o equívoco centrista e oportunista ganhou uma parte da direção do partido, lançou a perturbação e a confusão nas seções. O dever dos comunistas, neste geral abaixamento das consciências, da fé, da vontade, neste enfurecer de baixezas, de covardias, de derrotismo, é o de apertar-se fortemente em grupos, de ajustar-se, de estarem prontos para as palavras de ordem que serão lançadas. Os comunistas sinceros e desinteressados, com base nas teses aprovadas no II Congresso da III Internacional, com base na leal disciplina e na suprema autoridade do movimento operário mundial, devem desenvolver o trabalho necessário para que, no mais breve espaço de tempo possível, seja constituída a fração comunista do Partido Socialista Italiano, a qual, para o bom nome do proletariado italiano, deve tornar-se, no Congresso de Florença,4 de nome e de fato, no Partido Comunista Italiano, seção da III Internacional Comunista; para que a fração comunista se constitua em um aparelho diretivo orgânico e fortemente centralizado, com articulações próprias e disciplinadas em todos os ambientes onde atua, reúne-se e luta a classe operaria com um conjunto de serviços e de instrumentos para o controle, para a ação, para que ponham a propaganda em condições de funcionar e de desenvolver-se, a partir de agora, como um verdadeiro e próprio partido.
Os comunistas, que na luta metalúrgica, com a sua energia e o seu espírito de iniciativa, salvaram a classe operária de um desastre, devem chegar ate às últimas conclusões da sua posição e da sua ação: salvar a unidade primordial (reconstruindo-a) do Partido da classe operária, dar ao proletariado italiano o Partido Comunista que seja capaz de organizar o Estado operário e as condições para o advento da sociedade comunista.
- O largo intervalo entre a publicação da primeira e da segunda partes do artigo é determinado pela ocupação das fábricas, que teve lugar no mês de setembro, durante a qual Ordine Nuovo suspendeu a publicação. ↩︎
- O general russo Kornilov moveu-se, em setembro de 1917, contra Petrogrado, para expulsar o Governo Provisório e reconduzir o czar ao poder. O golpe de mão faliu dada a resistência oposta pelos soldados e operários de Petrogrado, organizados pelos bolchevistas. ↩︎
- Que se creem patrões mas que, na realidade, não passam de servos. – (N. do T.) ↩︎
- A sede do congresso foi depois mudada para Livorno, por motivos de segurança: em Florença já se assanhavam os fascistas, enquanto em Livorno os trabalhadores tinham ainda a situação nas mãos. ↩︎