Antonio Gramsci: Disciplina e liberdade (1917) | Individualismo e coletivismo (1918)

Nota do blog: Publicamos a segunda de quatro partes de uma seleção de escritos políticos do grande dirigente marxista-leninista italiano Antonio Gramsci. Nos artigos que seguem abaixo, Disciplina e liberdade (1921) e Individualismo e coletivismo (1924), Gramsci discute o problema da disciplina política, que “dá ao espírito o seu melhor metal, à vida uma finalidade, sem a qual não valeria a pena ser vivida.”, bem como o princípio da organização e do coletivismo, pois o “individualismo burguês produz assim necessariamente no proletariado, a tendência para o coletivismo.” Confira também a primeira parte com os artigos As massas e os chefes (1921) e “Chefe” (1924).


DISCIPLINA E LIBERDADE

Antonio Gramsci – Escritos Políticos vol. I (1976, Seara Nova)
Não assinado, La Città Futura, 11/02/1917, p. 2

Associar-se a um movimento significa assumir uma parte das responsabilidades dos acontecimentos que se preparam, tornar-se destes acontecimentos os artífices diretos. Um jovem que se inscreve no movimento juvenil socialista cumpre um ato de independência e de libertação. Disciplinar-se é tornar-se independente e livre. A água é água pura e livre quando corre entre as duas margens de um riacho ou de um rio, não quando se espalha caoticamente no solo ou, rarefacta, paira na atmosfera. Quem não segue uma disciplina política é por isso matéria em estado gasoso ou matéria contaminada por elementos estranhos: portanto inútil e danosa. A disciplina política faz precipitar estas sujidades e dá ao espírito o seu melhor metal, à vida uma finalidade, sem a qual não valeria a pena ser vivida. Cada jovem proletário que sinta quanto é pesado o fardo da sua escravidão de classe, deve cumprir o ato inicial da sua liberdade, inscrevendo-se no Centro Juvenil Socialista mais próximo de sua casa.


INDIVIDUALISMO E COLETIVISMO

Antônio Gramsci – Escritos Políticos vol. I (1976, Seara Nova)
Não assinado, Il Grido del Popolo, 09/03/1918

A classe burguesa redimiu-se da escravidão feudal, afirmando os direitos do indivíduo à liberdade e à iniciativa. A classe proletária luta pela sua redenção, afirmando os direitos da coletividade, do trabalho coletivo, contrapondo à liberdade individual, à iniciativa individual, a organização das iniciativas, a organização das liberdades.

Logicamente, o princípio da organização é superior ao da liberdade pura e simples. É a maturidade em confronto com a juventude; mas, historicamente, a maturidade precisa da juventude para se desenvolver e o coletivismo pressupõe necessariamente o período individualista, durante o qual os indivíduos adquirem as capacidades necessárias para produzir independentemente de todas as pressões do mundo exterior, aprendendo à sua custa como nada existe de mais real e de mais concreto do que o dever do trabalho, e como o desejo da opressão, a concorrência brutal e desenfreada, devem ser substituídos, para o bem de todos, pela organização, pelo método que atribui a todos uma função específica a desempenhar e a todos assegura a liberdade e os meios de subsistência.

A classe burguesa, sucedendo à classe feudal na ditadura da produção, introduziu uma modificação no regime da propriedade privada. Esta era inalienável, transmitia-se apenas por linha direta, de pai a filho, era vinculada por laços antieconômicos que impediam o caminho aos rápidos incrementos, tornando por isso necessária a exploração iníqua da enorme maioria, com exclusão absoluta da concorrência em relação à mão-de-obra, obtida com os servos da gleba e com as corporações de ofícios.

A burguesia dissolveu o privilégio feudal de casta, tornou comerciáveis os instrumentos de produção, terras, máquinas e mão-de-obra. Chamou a si a propriedade dos instrumentos naturais e mecânicos, a liberdade de produzir e assegurou à mão-de-obra a liberdade da concorrência, da qual podia servir-se para melhorar as suas condições.

A propriedade, tornada comerciável, começou a circular, passando dos menos capazes aos mais capazes. A técnica desenvolveu-se sob o estímulo da concorrência; a sociedade definiu as suas bases no individualismo, que teve o seu maior defensor filosófico em Herbert Spencer e os seus defensores econômicos nos liberalistas da escola inglesa.

A liberdade de concorrência veio-se intensificando cada vez mais pelos contínuos aperfeiçoamentos da técnica industrial e agrícola. A classe burguesa fragmentou-se em setores e grupos que entraram em luta para o predomínio politico; estes representam estágios mais ou menos desenvolvidos da produção; alguns, seguros do êxito da concorrência, querem a liberdade para eliminar os adversários; outros, fracas e incertos no amanhã, defendem a conservação das leis restritivas das liberdades politicas e econômicas, querem ser protegidos, querem um mínimo de segurança para não sucumbirem, para não serem eliminados do campo das competições.

O capitalismo desenvolveu-se deste modo, mais ou menos intensamente conforme as nações, as condições naturais e históricas dos vários países. Onde é mais antigo e alcançou o máximo de produção, conseguiu, no plano político, a redução ao mínimo das funções do Estado, uma ampla liberdade de reunião, de imprensa, de propaganda, a segurança dos cidadãos em relação ao poder, a difusão dos ideais de paz e de fraternidade internacional. É preciso não acreditar que estes princípios se tenham afirmado por razões sentimentais. Eles são a necessária garantia da atividade individual em regime de livre concorrência. Nos seus negócios, o indivíduo tem necessidade da rapidez administrativa e judiciária, portanto, é necessário que o Estado renuncie a uma grande parte dos seus atributos em benefício das autonomias locais que tornam expedita a máquina burocrática e facilitam o controle. O indivíduo tem necessidade de confiar na suta atividade futura para os contratos e venda de trabalho; deve existir naturalmente a mais ampla liberdade, a maior segurança contra as privações arbitrárias e ilimitadas da liberdade pessoal; o código penal simplifica-se, diminui a importância dos delitos e das penas. A concorrência das classes, conservando a possibilidade de regresso ao poder dos atrasados e parasitários, justifica que seja garantida a maior liberdade de imprensa, de reunião, de propaganda, através da qual se pode educar a opinião pública e rejeitar os assaltos do passado.

A liberdade econômica demonstrou-se logo doutrina de classe; os instrumentos de produção, embora circulando, permaneceram propriedade de uma minoria social; o capitalismo foi, também ele, um privilégio de poucos, que tendem a reduzir-se cada vez mais, centralizando a riqueza para se subtraírem assim à concorrência do monopólio. A maioria dos deserdados procura então na associação o meio de resistência e de defesa dos seus próprios interesses. As liberdades, concebidas apenas para o indivíduo capitalista, devem estender-se a todos. A concorrência amplia-se: para além de indivíduos e setores burgueses, é também de classes. As associações proletárias ensinam os indivíduos a encontrar na solidariedade o maior desenvolvimento do próprio eu, das próprias capacidades para a produção. A organização, para o proletariado, no campo da sua classe, substitui já necessariamente o individualismo, absorvendo deste o que contém de eterno e de racional: o sentido da própria responsabilidade, o espírito de iniciativa, o respeito pelos outros; a convicção de que a liberdade para todos é a única garantia das liberdades individuais, de que a observância dos contratos é condição indispensável de convivência civil, de que as piruetas, as fraudes e os ilusionismos acabam por danificar também os que deles se serviram. Mas a associação tem o fim principal de educar para o desinteresse: a honestidade, o trabalho e a iniciativa são os seus fins, procuram apenas satisfação intelectual, alegria moral nos indivíduos, não privilégios materiais. A riqueza que cada um pode produzir em medidas superiores às necessidades da vida imediata é da coletividade, é patrimônio social: já não é necessária a comercialização dos instrumentos de trabalho para suscitar as capacidades e as iniciativas, porque o trabalho se transformou um dever moral, a atividade é alegria, não batalha cruel.

O individualismo burguês produz assim necessariamente no proletariado, a tendência para o coletivismo. Ao indivíduo-capitalista contrapõe-se o indivíduo-associação, ao comerciante a cooperativa; o sindicato torna-se num indivíduo coletivo que renova a livre concorrência, condu-la para formas novas de liberdade e de atividade. A maioria dos indivíduos organiza-se, desenvolve as suas leis próprias de convivência nova, cria as competências, cria hábitos de responsabilidade, de desinteresse, de iniciativa sem fins imediatos de lucro pessoal. Difundem-se assim as condições ideais e morais para o nascimento do coletivismo, para a organização da sociedade; afirma-se aquela atmosfera moral pela qual o novo regime não é o triunfo dos poltrões e dos irresponsáveis mas seguro progresso histórico, realização de uma vida superior a todas as já passadas.