Viva os 80 anos da Guerrilha de Porecatu!

Nota do blog: A Guerrilha de Porecatu (1944-1951) foi um grandioso episódio de luta armada dos camponeses no norte do Paraná que, desfraldando a consigna de “Terra para quem nela vive e trabalha!”, enfrentaram diretamente bandos armados de jagunços e forças policiais e militares a soldo de grileiros da região. A luta armada em Porecatu consistiu na primeira experiência concreta do Partido Comunista do Brasil – P.C.B. “de organização da luta armada no campo, avançando de forma concreta a construção da aliança operário-camponesa” (Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo, Problemas da história do Partido Comunista do Brasil). Em celebração aos 80 anos desta importante luta, iniciada com a fundação das Associações de Lavradores em 1944, publicamos um compilado de textos que consideramos fundamentais para compreendê-la, como trechos da obra Porecatu: A guerrilha que os comunistas esqueceram, fruto da extensa pesquisa de Marcelo Oikawa. Ao final, também disponibilizamos a letra da música Paraná Vermelho da banda Terravante.


A experiência da luta armada em Porecatu

Excertos de Problemas da história do Partido Comunista do Brasil
(Capítulo IV: Do Manifesto de Agosto de 1950 ao IV Congresso)
Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo

O PCB havia iniciado o processo autocrítico das ilusões constitucionais com a Declaração de Janeiro de 1948, que se aprofundou com o Manifesto de Agosto de 1950. A bandeira da revolução é novamente levantada e a questão da luta armada, como caminho para a conquista do poder, é retomada e posta na ordem do dia. O PCB inicia um rico período de sua existência, em que a luta contra o revisionismo, pela primeira vez, surgia no interior do Partido. E esta, ainda que não se desse de forma mais patente e organizada, ganhará maior dimensão. Uma demarcação mais nítida entre esquerda e direita, entre a linha revolucionária e reformista, será a base das futuras rupturas entre marxistas-leninistas e revisionistas.

Ascenso de lutas camponesas

Entre os anos de 1948 e 1950 há um ascenso de lutas camponesas dirigidas pelo PCB. Greves de colonos de café, assalariados agrícolas, lutas combativas de arrendatários e meeiros. Destacam-se as lutas de Fernandópolis, de Canápolis, de Santo Anastácio e das usinas de açúcar na Bahia.

“No ano de 1953 o PCB realiza a I Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas e Camponeses Pobres. A Conferência de Assalariados Agrícolas e Camponeses Pobres do Nordeste e a Conferência dos Flagelados no Ceará. Foram organizados Sindicatos Rurais de Colonos e de Assalariados Agrícolas e Associações de Camponeses.”

“No mesmo ano é realizada a II Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas e Camponeses, como as conferências de sitiantes, posseiros, parceiros, meeiros e arrendatários, de colonos de café, de assalariados agrícolas da lavoura canavieira, do arroz e do cacau, etc. A Conferência tomou resoluções de alta relevância, tais como a elaboração da Carta dos Direitos e a fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, ULTAB.”1

Desde janeiro de 1948, a questão agrário-camponesa passa a tomar crescente importância nos debates e ações do PCB. A experiência mais avançada e mais profunda do período será em Porecatu, no norte do Paraná. Esta será a primeira experiência concreta do PCB de organização da luta armada no campo, avançando de forma concreta a construção da aliança operário-camponesa.

A experiência da luta armada em Porecatu

Nesta região do norte paranaense, em uma área de cerca de 4 mil hectares, desde o início dos anos de 1940, centenas de posseiros lutavam por suas terras de armas nas mãos contra grileiros, pistoleiros e a polícia. Assim como em outras regiões do país, com a valorização da terra a luta recrudesce e se radicaliza. A luta dos posseiros havia fundado duas associações de lavradores em 1944, as mais antigas organizações camponesas do país. A de Porecatu, com 270 famílias, e a de Guaraci, com 268 famílias. Em 1947, 1500 posseiros realizam uma manifestação armada em Guaraci e bloqueiam por cinco dias a estrada que liga Centenário do Sul a Porecatu.

Sob clara influência da “Declaração de Janeiro de 1948”, os comitês regionais do PCB de Londrina e Curitiba tomam conhecimento dos acontecimentos e, através do dirigente comunista Manoel Jacinto Correia, preparam relatório detalhado para a direção do PCB. O Comitê Central, após receber o relatório, decide se integrar à luta dos posseiros e envia quadros (principalmente militares) e armas para a região. Os posseiros são amplamente receptivos à direção do PCB. Em novembro de 1948, formalmente os posseiros decidem pela luta armada para defender suas terras.

A direção do PCB orienta a formação de Ligas Camponesas para ampliar o movimento e impedir o isolamento. Ao longo da resistência, doze Ligas são fundadas. Comitês de apoio à luta dos posseiros são formados em diversas capitais. A luta se desenvolve e diversos grupos armados de posseiros são formados. Com o Manifesto de Agosto de 1950, a luta ganha mais força e também influencia a luta no interior da direção do PCB, que chega a levantar fundos para aquisição de armas para a formação do Exército Popular da FDLN. No início, os grupos armados realizavam apenas ações de defesa das posses ameaçadas. Com o maior desenvolvimento da luta, os grupos armados de posseiros destroem as instalações do latifúndio, justiçam pistoleiros e expulsam latifundiários, chegando a controlar uma região de cerca de 40 km2.

A luta armada resiste a diversas campanhas da polícia militar e dura até 1951. A polícia não consegue derrotar a guerrilha. A direção do PCB comete erros no manejo da tática e aos poucos a luta se desmobiliza de forma organizada, sem que as principais lideranças sejam presas. Com a luta, centenas de famílias obtêm o título da terra, sendo esta a primeira vez no país que terras são desapropriadas pelo governo para “fins sociais”.

O exemplo de Porecatu frutifica. Em junho de 1951, 200 camponeses do sul da Bahia resistem armados em suas terras contra a tentativa de expulsão pelo latifúndio. Em 1957, no sudoeste do Paraná ocorre outro levantamento armado de posseiros. Em 1954, a luta armada de Trombas e Formoso em Goiás, à qual o PCB também vai se integrar, encontra seu auge. A luta no interior de Goiás foi dirigida por José Porfírio e ocorreu quando os povoados de Trombas e Formoso foram atacados por pistoleiros e pela polícia militar. No final da década de 1950, toda a região estava organizada e dominada pelos posseiros, que resistiram armados à ação dos pistoleiros e policiais, derrotando suas campanhas e expulsando-os. Os posseiros se organizaram na Associação dos Trabalhadores de Trombas e Formoso, presidida por Porfírio. Devido à luta organizada dos camponeses, 20 mil títulos de terra são concedidos.2

A experiência da luta armada de Porecatu, além de ser a primeira de luta armada no campo dirigida pelo PCB, dera-se sob o impacto direto da declaração de 1948 e o manifesto de 1950. E, ainda que de forma parcial, representara a incorporação pelas massas da linha revolucionária estabelecida pelo PCB. Entretanto, em seu curso, e após sua derrota, essa experiência é profundamente subestimada. A direita na direção do PCB passará do silenciamento ao ataque à experiência de Porecatu, funcionando como arcabouço para sustentar suas posições reformistas.

O balanço profundo dos acertos e erros no movimento armado de Porecatu e suas lições serviriam para aprofundar a luta de duas linhas no interior da direção sobre o caminho da luta armada em nosso país. Combateria frontalmente as posições reformistas e fortaleceria as posições de esquerda, corrigindo os erros e limitações nas formulações desenvolvidas pelo partido.

Vejamos como a própria experiência de Porecatu fornecia importantes indicações sobre o caminho para a construção do Exército Guerrilheiro Popular com a rica experiência militar3 adquirida com a formação dos grupos armados; e sobre a própria questão da construção da Frente Única, com a formação das Ligas Camponesas e comitês de apoio a luta armada dos posseiros que foram criados nas pequenas e grandes cidades.

O erro de buscar o caminho da legalização da luta dos camponeses era o de buscar um fim institucionalizado, dentro do velho Estado. Isto se verificou tanto em Porecatu quanto em Trombas. Prevaleceu o oportunismo reformista de integrar a luta das massas ao Estado, quando dever-se-ia aproveitar a excelente oportunidade para formular a estratégia da generalização destas lutas nas vastas zonas rurais do país, combinando-as com a resistência popular nos grandes centros, onde a luta reivindicativa seria fortalecida com ações armadas da revolução. Isto seguramente teria aberto um novo caminho para a revolução não só no Brasil, mas em toda América Latina, onde fenômenos semelhantes estavam se gestando, inclusive fora dos partidos comunistas.


Porecatu e a Revolução Democrática

Fausto Arruda
A Nova Democracia
Edição Impressa: Ano X, nº 89, maio de 2012

Somente alguém imbuído de um elevado nível de autodisciplina poderia realizar o trabalho de fôlego que foi a elaboração do livro Porecatu – A guerrilha que os comunistas esqueceram. Alia-se a esta autodisciplina o grande senso de oportunidade de Oikawa, pois a narrativa, além de ser um resgate histórico, constitui-se, pela sua atualidade, num verdadeiro libelo a denunciar a dominação do latifúndio e seus maléficos efeitos sobre a vida dos brasileiros nos dias de hoje.

Ao analisar a luta daquelas famílias de camponeses, na busca por um pedaço de terra para sobreviver e criar seus filhos, pela ótica da luta de classes e relacioná-la com o movimento comunista em nosso país e no mundo, o livro de Oikawa alcança a dimensão de uma obra de valor e alcance internacional.

Os fatos narrados em Porecatu… são prova insofismável da condição semifeudal e semicolonial do Brasil, contradição que persiste até hoje e que, embora desprezada pela Academia, segue gritante a varar o tempo na briga por sua solução.

A burguesia não fez e nem fará

Não são poucos os intelectuais e mesmo dirigentes da esquerda oportunista que enxergam no golpe da proclamação da República e no golpe de Getúlio Vargas (Aliança Liberal) em 1930, elementos de comprovação de uma revolução burguesa realizada no Brasil. Estas interpretações desconhecem completamente a condição em que o Brasil se inseriu no mundo capitalista através de uma versão burocrática na qual o latifúndio e a burguesia, seja compradora, seja burocrática (industrial), desempenharam desde o início o papel de sustentáculo interno do colonialismo e do imperialismo, primeiramente inglês e posteriormente ianque. Ora, como poderíamos ter realizado uma revolução burguesa sem que a questão agrária fosse resolvida?

O líder dos posseiros Francisco Bernardes, assassinado em Jaguapitã, em ilustração da época.

Historicamente, esta questão figurou no centro do modelo revolucionário burguês. Foi assim na Inglaterra, na França, na Alemanha, no USA, ou seja, onde a burguesia assumiu o poder de Estado, ela distribuiu a terra para os camponeses, criando e ampliando o mercado interno e implantando relações capitalistas no campo onde antes prevaleciam as relações feudais. A verdade é que com o advento do imperialismo e a divisão do mundo entre um punhado de países opressores e uma imensa maioria de países oprimidos, a exploração imperialista só poderia acontecer se contasse nos países dominados com o suporte de uma burguesia lacaia e do latifúndio feudal ou semifeudal.

Esta relação foi válida para a China, o Brasil e todos os países colocados na condição semicolonial. Daí que, no nosso caso, tanto a proclamação da República quanto o golpe de 1930 e o de 1964, assim como os períodos chamados indevidamente de redemocratização, tiveram o respaldo do latifúndio, da grande burguesia e do imperialismo.

Ilustração do jornal comunista Hoje de São Paulo.

Nos anos do episódio de Porecatu, a burguesia compradora, composta principalmente pelos grandes comerciantes vinculados ao comércio exterior e por banqueiros, estava filiada, em sua maioria, ao partido da UDN (União Democrática Nacional), enquanto Getulio Vargas manobrava o PSD (Partido Social Democrático), partido de composição entre parte da burguesia industrial nascente e a oligarquia latifundiária. O mesmo Getúlio havia criado também o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), em busca de cooptar o proletariado e as camadas urbanas da população, disputando apoio dos mesmos. No Parlamento, estas correntes no fundamental, cooperavam no sentido da manutenção do Estado burguês-latifundiario, serviçal do imperialismo. Mais que uma inapetência para a construção de um país soberano, a grande burguesia brasileira só poderia integrar-se numa condição submissa com o imperialismo.

Os atores envolvidos na trama de Porecatu, sejam os Lupion ou Lunardelli, pelas classes dominantes, ou as milhares de famílias de camponeses pobres, pelas classes exploradas, mais do que antagonistas, foram testemunhas vivas de uma época e de uma formação sócio-econômica que Marcelo Oikawa transporta no tempo para que cotejemos, por exemplo, com Canaã, uma terra tomada por 200 famílias há mais de nove anos, na cidade de Jaru, estado de Rondônia, numa área da União cedida a latifundiários na década de 1970. Depois de 9 anos de duro trabalho e sem ajuda qualquer do Estado, com que conseguiram transformar pastos abandonados numa área de grande produção de alimentos, tal como em Porecatu, o latifúndio consegue com sua “justiça” a ordem de despejo dessas famílias.

Ligas Camponesas.

Este não é um caso isolado. Na Amazônia, principalmente, o judiciário age a todo vapor com solicitação de força policial para a realização de despejo de milhares de famílias de camponeses pobres que empenharam suas vidas por quatro, seis ou até quinze anos na formação de suas pequenas glebas e agora se vêem na condição de ficar no olho da rua. Tal como em Porecatu, este é o pano de fundo para a rebelião das massas camponesas. Hoje, como ontem, os atores são os mesmos: latifúndio, burguesia e imperialismo, pelos dominantes, e camponeses pobres, pelos dominados.

O jornalista Marcelo Oikawa, com sua narrativa, dá mais uma importante contribuição ao debate sobre o papel do Partido Comunista na direção da luta camponesa. Em Porecatu fica evidente a existência dos elementos fundamentais para que o campesinato leve adiante a Revolução Agrária: a existência do Partido Comunista, da Frente Única representada pelas Ligas Camponesas e pelos comitês de apoio nas cidades e o exército popular representado pelos camponeses em armas, dirigidos pelo partido comunista.

Os posseiros votam pela execução do jagunço Celestino.

Com base tanto nos fatos da época em que situa a guerrilha de Porecatu, quanto na justa interpretação da história do Partido Comunista do Brasil, pode-se verificar que a luta por um caminho autenticamente revolucionário no partido nunca foi devidamente resolvida. É notório que a guerrilha camponesa de Porecatu foi impulsionada pela atuação do PCB, particularmente por seu manifesto de “Agosto de 1950”. As investigações de Oikawa também são reveladoras de que a viragem à esquerda na direção do PCB no final dos anos de 1940 e início de 1950, longe de ser um “desvio esquerdista”, como avaliaram posteriormente tanto o grupo revisionista liderado por Prestes quanto os que romperam com ele e reconstruíram o partido em 1962.

A posição expressa no “Manifesto de 1950” indicava uma viragem para o caminho da tomada do poder pela via armada e ao mesmo tempo a freava com a ilusão pequeno-burguesa de se obter um exército popular através da “depuração dos elementos fascistas das FFAA”. Tal linha expressava um ecletismo e uma composição na direção do partido. Além de eclética era, sem dúvida, uma posição frágil e vacilante, tanto que quando se apresentou pela via da vida a hora de levar a luta armada através da aliança operário-camponesa a direção do partido tergiversou e recuou.

Quando a guerrilha de Porecatu necessitava ser apoiada com a generalização da luta armada no campo em outras partes do país, o que o partido fez foi virar as costas. Tanto que no sul da Bahia e no Triângulo Mineiro, onde massas camponesas também já enfrentavam de armas na mão os latifundiários, o partido não apoiou. Também na luta dos camponeses de Trombas e Formoso, apoiada pelo Comitê Regional de Goiás do PCB, a direção nacional do partido logo buscou a solução negociada para o conflito de forma a institucionalizar a solução de regularização da propriedade da terra para os camponeses num acordo com o governador Mauro Borges.

Longe de ser obscurecida pelo “esquecimento” dos comunistas, a guerrilha de Porecatu prova por um lado que, embora cometendo erros, o Partido Comunista do Brasil tal como na Guerrilha do Araguaia, aproximou-se como em poucos momentos de sua existência da realidade brasileira e do caminho para solução de suas contradições. Por outro lado, o que Oikawa chama de esquecimento é, na verdade, mais do que isso, trata-se da expressão do mesmo oportunismo de direita que vigorou no seio da esquerda brasileira nos últimos trinta anos, entregue ao mais descarado cretinismo parlamentar e servindo de coadjuvante na manutenção das putrefatas instituições do velho e genocida Estado brasileiro.

Aos que pensam o caminho revolucionário, a obra de Marcelo Oikawa se torna consulta obrigatória. A Revolução Democrática no Brasil precisa aprender com as lições de Porecatu.


Trechos da pesquisa de Marcelo Oikawa

Excertos de Porecatu: A guerrilha que os comunistas esqueceram
Marcelo Oikawa

Introdução

Porecatu é um exemplo típico de como se formou a propriedade da terra no Brasil. Essa região paranaense foi palco de disputas pela posse da terra desde o tempo do Tratado de Tordesilhas, no século 16, entre portugueses e espanhóis. Derrotados os espanhóis, a região torna-se domínio lusitano no século 17 e pelo desinteresse português permanece como território guarani. No século 18, pelo Tratado de Madri, a região é parte das terras cedidas pela Espanha a Portugal.

Com a proclamação da República, a nova Constituição brasileira passa o domínio das terras devolutas para os Estados e deixa uma brecha ao reconhecer a legitimidade das posses concedidas por sesmarias ou outros tipos de concessões. (…)

O Estado Novo de Getúlio Vargas estabelece como prioridade a ocupação do território nacional e lança o programa Marcha para o Oeste. No Paraná, o interventor Manoel Ribas, inspirado no Homestead Act, de Abraham Lincoln, conclama quem estiver interessado em ocupar terras devolutas para vir para a região de Porecatu (…). Ali, o posseiro deve derrubar a floresta, plantar, produzir e viver por seis anos. No final desse prazo poderá requerer a posse definitiva da terra. Milhares acorreram.

A guerrilha de Porecatu concentrou-se na área compreendida entre os ribeirões Centenário e do Tenente, até as barrancas do rio Paranapanema ao norte e a estrada Paralelo 38 ao sul, entre Guaraci e Centenário do Sul.

Em outubro de 1945 Getúlio Vargas cai e leva junto com ele Manoel Ribas. Com isto, a ideia de colonização, inspirada no modelo norte-americano vira letra morta. A valorização das terras desbravadas, com todas as benfeitorias feitas pelos posseiros, incluindo-se estradas e portos no rio Paranapanema e o bom preço do café, desperta a cobiça dos políticos em Curitiba e grandes fazendeiros do interior de São Paulo. No período entre 1945 e 1947, em que quatro interventores se sucedem no governo do Paraná, os litígios entre posseiros e grileiros, que já vinham ocorrendo desde o início da década, se agravam. Grandes áreas de terras são vendidas para a formação de fazendas de café com a cláusula contratual de serem entregues desocupadas de invasores. Quando Moisés Lupion assume o governo, no verão de 1947, a violência está estabelecida e há posseiros reagindo e se defendendo como podem. Com o governador o Departamento de Terras e Colonização do Paraná transforma-se em um balcão de negócios. Grupos vivem à sombra do governo com o poder de mudar a geografia, falsificando mapas e documentos. Aos posseiros vai ficando claro que terão que passar a reagir de maneira organizada.

Os conflitos armados pela posse da terra eclodiram entre meados da década de 1940 e início da década de 1950, no perímetro formado pelos municípios de Jaguapitã, Guaraci, Centenário do Sul e Porecatu, no centro do norte do Paraná. O epicentro da luta foi Porecatu, em uma área de 4 mil hectares conhecida como Barra do Tibagi, delimitada pelos rios Paranapanema, Centenário, Ribeirão do Tenente e a rodovia Porecatu-Centenário do Sul. Na época, o município contava 20 mil habitantes e sua única via de acesso levava a Londrina. Ali, centenas de posseiros desbravaram a floresta tropical e lutaram de armas nas mãos contra grileiros, jagunços e a polícia.

A luta dos posseiros por suas terras registrou em 1944 a fundação de duas Associações de Lavradores, as mais antigas organizações de camponeses do país, precursoras das Ligas Camponesas de Francisco Julião, de meados da década de 1950 em Pernambuco. A de Porecatu reuniu 270 famílias e a de Guaraci outras 268 famílias. Sempre se teve em conta que a Liga Camponesa Dumont, em Ribeirão Preto, fundada pelo líder camponês e comunista Irineu Luis de Moraes, o Índio, era a mais antiga, mas foi fundada em 1945. Nada menos do que 12 Ligas Camponesas foram criadas na região de Porecatu durante a resistência. O trabalho de organização camponesa prosseguiu mesmo depois de encerrados os conflitos armados. Dezenas de sindicatos de trabalhadores rurais foram fundados por comunistas naqueles anos em todo o norte, noroeste e oeste do Paraná. Em 1964 contava-se 67 sindicatos. Eles certamente figuram entre os primeiros do Brasil.

Foi nessa região que o PCB exerceu pela primeira vez em sua história, a prática da aliança operário-camponesa, constante de seus documentos desde os primórdios de sua existência. Foi também ali que se usou pela primeira vez a palavra camponês para designar o trabalhador rural sem terra, arrendatário, colono, ou pequeno proprietário – uma apropriação dos termos “paysant” e “campesino”, utilizados na Internacional Comunista. Porecatu foi um importante fator da equação sempre definida pelos dirigentes comunistas como os problemas da revolução brasileira. Porecatu também levou ao primeiro decreto de desapropriação de terras para fins sociais do país.

Em 1947, a família comunista Gajardoni, de Jaguapitã, iniciou uma aproximação com os posseiros. Miguel era dono de farmácia, ganhando a simpatia dos posseiros com sua atitude sempre solidária e atenciosa, especialmente com os doentes. Esse trabalho culminou, ainda nesse ano, com uma grande manifestação que reuniu 1.500 posseiros armados em Guaraci. A partir dali, a família vendeu a farmácia, comprou 10 alqueires de terras na área em litígio e passou a organizar a resistência. É Miguel Gajardoni quem convidou o vereador comunista de Londrina, Manoel Jacinto Correia, para ir conhecer de perto o drama dos posseiros em 1948. E é Jacinto quem escreveu e enviou um relatório ao Comitê Central do PCB. A partir dali o PCB decidiu se envolver diretamente nos conflitos, passando a liderar a resistência, que chegou a controlar uma área de 40 km2 até junho de 1951. É clara a influência do Manifesto de Janeiro de 1948 nessa decisão. Nele, o PCB fez uma autocrítica dos tempos da sua legalidade, que qualificou como um desvio de direita. A rigor a resistência de Porecatu, com a presença dos comunistas, perdurou por cinco anos. O Manifesto de Agosto de 1950, que pregou a via revolucionária para o poder, foi lançado nesse contexto.

A história da resistência dos posseiros em Porecatu é desconhecida pela maioria. E entre os poucos que ouviram falar algo sobre ela ou que a conheceram um pouco mais, a ideia corrente é a de que foi algo efêmero, errático, espontâneo, insignificante. Essa é a ideia que as autoridades – governo e polícia – difundiram pela imprensa da época e que, curiosamente, muitos setores da esquerda aceitaram.

Na verdade, para o registro da história, ela começou em 1944, com a criação das Associações de Lavradores, passou pela fundação do Comitê Regional do PCB de Londrina em 1945, ganhou força em 1947 com a grande manifestação de 1.500 posseiros armados em Guaraci, passou pela oficialização da entronização do PCB em Porecatu em 1948, pela estruturação do teatro da luta em 1949 – que levou os combatentes a dominar uma área de 40 km2 em 1950/1951 –, até seu controvertido desfecho em junho de 1951. Se considerada a fase de retirada organizada dos combatentes dispersados na mata – que nunca foram capturados –, de busca, recolhimento e devolução dos armamentos para o Comitê Central do PCB, o calendário alcança o final desse ano. Foram sete anos de luta. (…)

Encerrado o conflito, os comandantes de dois dos três grupos de combate dos posseiros, Hilário Gonçalves Pinha, o Itagiba, e Arildo Gajardoni, o Strogof, foram incumbidos pelo Comitê Central do PCB da tarefa de fazer um balanço crítico da experiência, reconstituir o diário da luta e recapitular as ações. O trabalho foi realizado e resultou em 500 páginas que foram encaminhadas a Carlos Marighella. A partir disso não há notícias desse material e de seus desdobramentos. (…)

Em cena o PCB

Dia 22 de fevereiro de 1948, domingo – Ao amanhecer um caminhão começa o trabalho de transporte para quase 300 pessoas até a chácara do vereador e médico Newton Camara, 31. É o Comitê Zonal do PCB de Londrina que procura organizar-se regionalmente. São militantes de todo o norte do Paraná que chegam para uma reunião ampliada. (…)

De Porecatu, uma comissão de posseiros viaja até o Rio de Janeiro para pedir o apoio dos deputados federais. (…) Antes, o grupo passa por São Paulo onde Hilário tem um irmão que não é militante, mas tem ligação com o PCB. (…)

– Mais ou menos em 1948 seguimos daqui de trem para São Paulo, onde nos hospedamos com Antônio Gonçalves Padilha, na Lapa. Ele convenceu a gente que no Rio de Janeiro devíamos procurar o então deputado Pedro Pomar, 34 anos, que era amigo do povo e zelava pelos interesses dos trabalhadores… Fomos recebidos por Pomar e ele nos disse que precisávamos contratar um advogado comunista porque só os comunistas lutavam pelos interesses dos trabalhadores, uma vez que os demais advogados deixavam-se arrastar pelos interesses da classe dominante… (Declarações de Herculano Alves de Barros, como testemunha no inquérito policial de Porecatu. No arquivo do Dops.)

Antonio Gonçalves Padilha, José Billar e Hilário Gonçaves Padilha, de passagem por São Paulo, a caminho do Rio de Janeiro para procurar Pedro Pomar.

Ali os posseiros ganharam o apoio formal do Partido no Paraná. A viagem ao Rio fracassa em seu objetivo principal, mas estabelece relações estreitas entre as lideranças dos posseiros e do PCB.

– Quando decidimos formar a organização do Partido na região nos ligamos a Jaguapitã e vimos que estávamos juntos em 1947 na interdição da estrada em Guaraci sem saber. (Hilário Gonçalves Pinha a Angelo Aparecido Priori.)

O PCB decide agir com os posseiros que resistem no norte do Paraná. O Partido, como “direção revolucionária das massas”, toma a frente da mobilização. Não se trata de um apoio desinteressado. Os comunistas lideram a resistência. Em Porecatu, o clima é francamente hostil aos comunistas, mas os posseiros se mostram receptivos ao PCB. Em contrapartida ao governo do Paraná, que está indiferente à sua sorte, o PCB oferece uma possibilidade de solução para os seus problemas. (…)

O dirigente comunista Pedro Pomar, em foto no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

A Polícia faz uma investigação de dois meses para realizar um levantamento da estrutura do PCB na região e identificar seus militantes. (…) identifica 173 pessoas nas cidades de Arapongas, Rolândia, Cambé, Ibiporã, Jaguapitã e Londrina. Dois são médicos, um é advogado. Dez são comerciantes, nove veterinários. Há um alfaiate, um farmacêutico, um contador, um açougueiro. Há 39 lavradores. Todos os demais 108 são pedreiros, domésticas, eletricistas, escriturários, serradores, carpinteiros, carroceiros, cambistas, motoristas, pintores, bancários.

A cidade de Porecatu merece um tratamento em separado. (…) A Polícia de Porecatu não sabe, mas é com o apoio e sob a influência do PCB que (…) dezenas de posseiros ingressam na justiça com pedido de vistoria e avaliação das benfeitorias em suas posses. (…) com o PCB ao lado, os posseiros sentem que há esperança de um futuro melhor. (…)

São sempre vistos em Porecatu (…) [militantes] que levam roupas, mantimentos, remédios e dinheiro. Esse trabalho ajuda a conquistar a confiança e a simpatia dos posseiros. (…) Trazem jornais e boletins e ensinam que a terra pertence a quem nela trabalha, que é preciso promover a união para defender as posses, identificando os fazendeiros como a fonte de todos os males e que é preciso resistir até ao governo se fosse preciso. Formam grupos de estudos e debates. (…) Foram enviados para dar cursos. (…)

O dirigente comunista João Saldanha.

Até ali as refregas aconteceram de maneira desorganizada. É uma horda de rebeldes reagindo de maneira instintiva, defendendo-se das agressões e usando algumas poucas armas e os instrumentos de trabalho. Nenhuma decisão é coletiva, não há comandos.

As Ligas Camponesas

Novembro de 1948 – Os posseiros aceitam a organização da luta armada. (…) Os posseiros concordam que o recurso às armas é o que resta para defender suas terras. (…)

O início traz algumas dificuldades. (…) Ninguém tinha qualquer experiência nesse tipo de luta.

(…) a luta é desigual. Ainda mais agora, quando os posseiros estão desarmados porque a polícia invadiu suas casas e apreendeu as armas que encontraram. Muita gente deixa de comer carne de caça porque perdeu a sua espingarda. Os resistentes pressentem que será suicídio se o movimento ficar isolado. Alguém sugere então que se formem as Ligas Camponesas.4 Elas são sucessoras das primeiras Associações de Lavradores fundadas em 1944.5 A partir disto chegarão a organizar várias Ligas em toda a região para arregimentar apoio à resistência desencadeada. Imprimem uma proposta de estatuto para as Ligas, que circula em todo o norte do Paraná. O volante sugere as seguintes atividades para as Ligas: lutar pela educação e cultura dos trabalhadores da região e de suas famílias, por meio de criação de escolas primárias para todas as crianças em idade escolar; criação de uma biblioteca circulante, contendo livros instrutivos, principalmente no que se refere à agricultura, criação, organização dos moradores da zona rural e demais assuntos de interesse dos trabalhadores; promoção de festas populares nas ocasiões oportunas, como São João, São Pedro, Santo Antônio, Natal, Sete de Setembro, Primeiro de Maio e outras, a fim de manter vivas as tradições populares das danças, músicas etc.; lutar quando for preciso, para a obtenção de créditos bancários, para financiamento das plantações e preços compensadores para as colheitas; conseguir abatimento nas consultas médicas e nos medicamentos, mediante entendimento com o médico e a farmácia; conseguir salários compensadores para os trabalhadores rurais na derrubada, na apanha de café etc.; conseguir estradas.

Tudo começa com o convite de um amigo ou vizinho para participar de uma reunião. Elas acontecem sempre na casa de algum posseiro, onde são debatidas as propostas para a formação de uma associação ou liga camponesa, assunto que desperta muito interesse. O trabalho de conscientização corre junto – terra para quem trabalha nela, resistência contra a expulsão, união para acumular forças – culminando com outro convite: integrar-se ao Partido Comunista. (…) a Liga tem o objetivo de socorrer seus sócios com remédios, gêneros, roupas, dinheiro, sempre que for necessário e sempre a preço de custo. Mais: tudo que for colhido pelos sócios poderá ficar depositado para ser vendido pelo melhor preço, devendo os sócios contribuir com uma mensalidade de apenas cinco cruzeiros. A ideia é abraçada com entusiasmo e uma diretoria é constituída. (…)

Durante todo o período dos conflitos em Porecatu elas chegarão a 12: Água de Pelotas, Centenário do Sul, Água do Palmitalzinho, Guaraci, Andirá, Bandeirantes, Maringá, Água do Monjolo de Cornélio Procópio, Água de Mandacaru, Colombo, Cambará e Xapecó.6 Elas se encarregarão de cumprir o papel legal da resistência. Os primeiros manifestos contra a violência sobre os posseiros saem das Ligas.

Lista de contribuições da Comissão Piratininga de Auxílio aos Presos Políticos para os Camponeses de Porecatu.

Outro método para a acumulação de forças é o mutirão que reúne sempre um grupo maior de trabalhadores para ajudar os trabalhos nas posses de alguém necessitado de ajuda. Muitas vezes o mutirão acontece em posses de combatentes que estão na mata. Ao final do dia, o mutirão se reúne para avaliar os resultados, engrandecer o valor do trabalho conjunto e chamar voluntários para a luta armada. Uma terceira forma de luta é adotada: o embargo do trabalho nas fazendas e em outras atividades como na construção das estradas e nos portos do rio Paranapanema. Nas fazendas, os posseiros armados vão impedir a derrubada das matas para que não seja possível o início de qualquer cultivo ou criação. E uma de suas mais ousadas ações é o impedimento dos serviços de construção e adaptação do porto Itaparica no rio Paranapanema. Por ali se faria a ligação com as estradas de rodagem para Presidente Prudente e Regente Feijó. E um último método adotado é o de expulsar os trabalhadores das fazendas em litígio.

O principal ponto de apoio dos resistentes é a cidade de Londrina. (…) Com os jornais comunistas que circulam em outros centros, fazem a divulgação da doutrina marxista-leninista. A região adquire importância diante da nova estratégia do PCB (…). Também é em Londrina que os panfletos, abaixo-assinados, proclamações e manifestos são impressos.

Liga Camponesa Água do Monjolo, de Cornélio Procópio.

Apesar de suas características urbanas, o PCB de Londrina exerce sua atividade no meio rural. Funda um Comitê de Apoio e sua maioria é constituída de profissionais liberais. O único operário é Manoel Jacinto. O Comitê em Londrina e as Ligas Camponesas na região fazem as campanhas de arrecadação de doações. O Comitê também organiza comícios de solidariedade e faz a propaganda com pichações de muros. A cidade transforma-se no centro irradiador da implantação do Partido no Paraná.

Concentração das Ligas Camponesas do norte do Paraná na cidade de Cornélio Procópio, em 1949.

A Liga Camponesa de Porecatu, presidida por Hilário Gonçalves Pinha, chegará a 140 posseiros. A de Centenário do Sul, 200, e a de Jaguapitã perto de 400. As mulheres têm um papel importante nas Ligas. Elas tratam de dividir suas casas com famílias de posseiros que precisam de amparo. Promovem campanhas de doação de roupas, remédios e dinheiro. Helena, esposa do engenheiro Milcíades, destaca-se na retaguarda angariando alimentos. Em Londrina surge a Comissão de Solidariedade aos Camponeses de Porecatu, filiada à Comissão Piratininga de Auxílio aos Presos Políticos. Ela organiza uma rede de solidariedade no Paraná e em São Paulo, para arrecadar ajuda de todo tipo. A lista de utilidades e gêneros alimentícios de que as famílias dos camponeses têm necessidade urgente abrange cobertores, sapatos, roupas em geral, brins e tecidos, meias, paletós, gorduras comestíveis, latarias, charque, leite em pó ou condensado, medicamentos e sacos vazios. (…)

Quando algum posseiro é assassinado a campanha se volta para ajudar sua família, como no caso de Francisco Bernardes, assassinado em Jaguapitã. As mulheres também cuidam da troca de informações com estafetas. Algumas pessoas sabem datilografia e copiam boletins. Eles são produzidos tanto dentro quanto fora da área de conflito e as Ligas se encarregam de fazer a distribuição. O trabalho de propaganda garante que a luta não fique isolada do mundo. O trabalho das Ligas mobiliza trabalhadores em vários pontos do país. (…)

A companheira de Manoel Jacinto Correia, Ana Pereira Cezar, a Anita.

O PCB está praticando a sua guinada à esquerda. Se a virada surpreende muita gente, nas entranhas do Partido a luta interna está definindo um novo caminho: a revolução pelas armas, a conquista do poder pela guerra popular prolongada, do campo para a cidade. O mesmo caminho que Mao Tsetung está percorrendo na China.

A preparação e o início da guerrilha

O Comitê Nacional desloca membros experientes em estratégia e tática militar para a região. José Ortiz, membro do Partido e especialista em armas, é um deles e chega a Porecatu com o único objetivo de organizar o sistema de defesa, definir e montar os acampamentos e treinar os combatentes. O levantamento topográfico da região, a identificação dos pontos estratégicos que servirão de QG, dos locais favoráveis para resistir à polícia e jagunços, os itinerários das trilhas secretas que permitirão a ligação entre os QGs e os esquemas para a manutenção dos grupos consumirá um ano de trabalho e serão feitos por outros militantes especialistas. A missão estará completa com o reconhecimento de toda a área em litígio.

O primeiro problema: o armamento. Um levantamento constata que os posseiros têm apenas umas poucas armas de caça, espingardas velhas e algumas carabinas de 12 tiros com funcionamento irregular, armas frágeis para a finalidade do combate, com as quais os resultados são insignificantes.

Nas sessões de treinamento, os posseiros são submetidos a um rigoroso treinamento físico, que vai se revelar de grande importância porque terão que marchar até 80 km em um dia e uma noite quando cercados pela polícia. Uma rede de apoio é montada para a obtenção de arroz, feijão e banha de porco. Conseguem remédios e algumas poucas armas. Cortam picadas que margeiam as estradas, prevendo retiradas estratégicas em caso de ataque. Nesse clima, os posseiros retomam para suas posses e reconstroem seus ranchos.

Dois grupos, com oito homens cada um, são formados. Hilário Gonçalves Pinha, o Itagiba e Arildo Gajardoni, conhecido por Strogof, são os líderes. Arildo é da família comunista de Jaguapitã, e Hilário é um dos filhos da família Padilha que cruzou o rio Paranapanema em 1941. Ambos são quadros do Partido. (…)

Os grupos vão ocupar acampamentos instalados na mata. A experiência adquirida por alguns membros no Exército e a rígida estrutura e disciplina do PCB fundamentam as suas atividades que apresentam disciplina de ação e uma hierarquia militar. Um acampamento está situado na posse de José Billar, ao lado direito do rio Centenário e o outro no lote do velho Hilário Gonçalves Padilha, quase na conjunção do Arroio do Tenente com o rio Paranapanema. Um terceiro grupo será organizado na cabeceira do rio Centenário, e será comandado por André Rojo, o Panchito. As bases de operações abrangem Porecatu, Centenário do Sul e Jaguapitã.

A resistência adquire consistência política, ideológica, tática e física.

A quantidade de homens armados nos grupos é pequena, mas, para dar a impressão de que são muitos, eles se dividem em grupos de quatro para atacar três ou quatro caminhões ao mesmo tempo. O comboio da polícia e jagunços costuma andar com os caminhões próximos uns dos outros para que possam se agrupar numa emergência. Com muita audácia, os resistentes se dividem e atacam. (…)

O Partido começa enviando carabinas e duas metralhadoras que não engasgam. As armas chegam pela Alta Sorocabana, depois por Curitiba. Pistolas automáticas e mosquetões são tomados de jagunços ou policiais após os enfrentamentos. Os posseiros recebem treinamento de tiro e de manuseio das armas. O camarada Ortiz, um perito capaz de consertar qualquer tipo de arma, é o instrutor. Prevendo cercos e a necessidade de sair deles, os posseiros recebem granadas. Ortiz treina os resistentes para o seu uso. Com o conhecimento que os posseiros têm de toda a região, desenham mapas indicando os pontos mais vulneráveis para o rompimento de cercos. Mais tarde essas providências permitirão o rompimento de um cerco de Porecatu pelo lado do rio Pirapó com a fuga dos resistentes, mostrando sua preparação militar e resistência física.

Mapa de localização dos grupos armados: 1. Grupo liderado por Arildo Gajardoni; 2. Grupo liderado por Hilário Gonçalves Pinha; 3. Grupo liderado por André Rojo; 4. Quartel-General liderado por Celso Cabral de Mello.

Armas e farta munição passam a chegar regularmente. (…)

Um Quartel General está montado na mata e sua existência é do conhecimento de apenas três pessoas. Ali estão guardados os principais equipamentos, mapas, o diário. Ali os comandantes se reúnem para traçar os planos e tomar decisões. O comandante-geral é o camarada Ortiz, que logo será substituído pelo camarada Celso Cabral. As ações são executadas por três ou quatro comandos e seus chefes e componentes, bem como as quantidades são escolhidos de acordo com a missão. O QG mantém uma guarda dia e noite, a disciplina é rígida. As saídas são controladas por requerimento e o retorno por senhas. Chegar sem aviso convencionado é correr o risco de levar um tiro. Todos os membros têm um codinome para se identificar, um cuidado para preservar o sigilo e a identidade de quem estava de armas nas mãos.

O Partido Comunista registra a presença de militantes isolados em Porecatu e comitês locais nos municípios de Jaguapitã, Centenário do Sul, Arapongas, Rolândia, Cambé, Ibiporã, Cambará, Sertanópolis, Marrecas, Bandeirantes, Cornélio Procópio e Apucarana. Tem um Comitê Regional em Londrina e outro em Curitiba.

Nos primeiros tempos os grupos armados não atacam e apenas defendem as posses ameaçadas. O primeiro ataque acontece na posse de Lazão, tomada pelos jagunços. O grupo junta-se a ele e seus dois filhos, Dito e Elias, a seu pedido e numa madrugada expulsam jagunços que protegiam o trabalho de desmatamento na posse, encomendado por grileiro. A partir desse dia, um esquema de vigilância nas estradas e nas cidades é montado para garantir que os combatentes saibam com antecedência quando e onde haverá uma invasão. Dessa forma não precisarão ficar estabelecidos nas posses, mas patrulhando o perímetro.

Com as ações cada vez mais espetaculares, passam a proibir o trabalho agrícola. Sob a ameaça das armas, impedem o plantio, o desmatamento, a capina e a colheita nas fazendas. Buscam com sua força e organização, amedrontar os fazendeiros e jagunços para serem ouvidos. Com o tempo fica claro que os resistentes querem desorientar, paralisar e infligir derrotas aos latifundiários para ganhar cada vez mais a confiança dos posseiros.

Impedindo o trabalho e bloqueando as estradas, José Ortiz, o especialista do Partido, concebeu a limpeza da região, expulsando fazendeiros, jagunços e inclusive trabalhadores que não estavam dispostos a colaborar. A estrada, conhecida como Paralelo 38, cai sob o controle da resistência. Várias barreiras são erguidas com troncos de árvores. Apenas os caminhões, saindo com as mudanças dos fazendeiros, grileiros e administradores, têm autorização para circular (…).

A segunda expedição militar

Em maio [de 1949] o Comitê Nacional do PCB ouve de Prestes um reforço da tese da formação de uma Frente Popular de Libertação Nacional capaz de derrubar Dutra e instalar um governo Democrático e Popular no Brasil. Prestes insiste em que, para isso, era necessário traçar uma política voltada para as amplas massas camponesas que viviam no interior do país.

O dirigente Maurício Grabois apresenta um informe nessa reunião, reconhecendo que o Partido por longo tempo havia subestimado o trabalho político com os camponeses e trabalhadores rurais:

– Temos que superar a enorme subestimação de nosso Partido em relação ao trabalho entre amplas massas camponesas, cuja radicalização e vontade de luta devem ser aproveitadas no sentido de sua organização. Existem todas as condições para o desencadeamento de grandes lutas nas grandes concentrações camponesas em virtude da crescente miséria e exploração das massas camponesas, quer sejam assalariados agrícolas agregados, colonos, arrendatários, pequenos e médios sitiantes.

A reunião deu importância à discussão sobre a forma de organização dos homens do campo. Ela concluiu que era necessário encontrar formas de organização que levassem em conta as condições locais e de vida de cada tipo de trabalhador rural, bem como o grau de desenvolvimento da consciência associativa e política. Para o Partido, a melhor forma seria a das Ligas Camponesas, mas com abertura para aceitar outros tipos de associação como Comissões de Fazendas, Irmandades, Associações Beneficentes, Cooperativas ou Clubes Esportivos.

– O fundamental é que existam organizações capazes de congregar os camponeses, levantar suas reivindicações e conduzi-los à luta.

E é Maurício Grabois quem irá elaborar as principais diretrizes do Partido voltadas para a atuação no campo.

O PCB conclui que as regiões com grandes massas camponesas devem ter prioridade no trabalho do Partido. Nesse sentido, o Estado de São Paulo, o norte do Paraná e o Triângulo Mineiro receberão atenção especial do Partido que irá concentrar suas atividades nessas regiões.

E se o Manifesto de Janeiro de 1948 indicava ênfase na luta associativa, o Manifesto de Agosto de 1950 acrescentará a luta armada como um caminho para a libertação nacional. Essa virada na linha política irá conduzir o Partido primeiro para o movimento armado de Porecatu, no Paraná e, em seguida, para o de Trombos e Formoso, em Goiás.

Em 1° de outubro de 1949 Mao Tsetung chega ao poder e funda a República Popular da China. O Exército Vermelho chega a 3 milhões de soldados. A grande vitória do Partido Comunista da China serve de referência aos comunistas brasileiros.

O dirigente comunista Maurício Grabois, autor das principais diretrizes do PCB para a atuação no campo.

Porecatu e o Manifesto de Agosto

(…) Em 5 de agosto [de 1950] o PCB lança o Manifesto de Agosto e adota oficialmente o caminho revolucionário. Prega a formação de um Exército Popular de Libertação Nacional. (…)

A luta armada de Porecatu, dirigida pelo PCB desde 1948, é a demonstração prática da sua virada à esquerda com o Manifesto de Janeiro de 48, consolidada em agosto de 1950, quando adota oficialmente a via revolucionária. A luta de Porecatu alimenta a reflexão dos dirigentes comunistas sobre os problemas da revolução brasileira, que se tornaram o foco principal das preocupações dentro do Comitê Nacional desde a proscrição do Partido em 1947. Ao mesmo tempo, a orientação do Partido dá consistência ao movimento de Porecatu, que passa a constituir-se na primeira experiência revolucionária do Partido para realizar a luta pelo poder na luta armada prolongada partindo do campo para a cidade. A partir desse documento as ações em Porecatu tornam-se mais agressivas.


Terravante – Paraná Vermelho

“Paraná Vermelho foi escrita por membros da Terravante em conjunto com estudantes de diversas cidades do Paraná, que se dirigiam a um encontro estudantil. Durante os dois dias de viagem, a letra foi escrita por alguns, enquanto outros pensavam na melodia, e ainda outros, no instrumental, sendo que quase todos os 30 estudantes presentes contribuíram para o resultado final.”

Meu Paraná é vermelho
Terra de sangue e de luta
Meu Paraná é vermelho
Terra de sangue e de luta
Terra de Porecatu
Estrela vermelha do Sul
Terra de Porecatu
Estrela vermelha do Sul

Por entre as araucárias
Se agita o povo unido
Como a torrente das águas
Avança sobre o inimigo
Operários e camponeses
Rompam seus grilhões
Avança a revolução agrária
Nos campos e plantações

Aprisionadas por sementes mortas
Cheias de veneno vil
As terras férteis devem servir
Ao nosso Brasil (2x)

[Repete desde o início uma vez]

Meu Paraná…