Literatura: conto “Nos porões”

Nota do blog: Publicamos a seguir um conto escrito e enviado por um leitor de Servir ao Povo, intitulado “Nos porões”, que trata da Regra de Ouro e do peso ideológico de nunca entregar nada ao inimigo, mesmo sob tortura ou diante da morte.

Nos porões

Dor. Dor. Somente dor. Era tudo o que eu sentia. Havia acabado de acordar e minha mente estava confusa. Quanto tempo eu estava ali? Pareciam dias, mas não podia ser. Meus olhos embaçados tentavam se acostumar com a claridade. Pensei que tudo estava ao contrário, que eles andavam no teto… Não! Era eu que estava vendo ao contrário. Quando me dei conta disso comecei a sentir o ferro que passava por baixo dos meus joelhos, a corda que amarrava meus punhos, meus braços esticados para passarem por cima da minha canela. Nesse momento, tudo veio em minha mente em um fluxo rápido e doloroso.

* * *

Era madrugada quando os dois carcereiros entraram na minha cela e, aos gritos e chutes, me acordaram.

– Sua vez, comunistinha de merda! – disse o de bigode.

– Esse vai abrir o bico rapidinho. Olha a cara de filhinho da mamãe desse imbecil! – disse o outro enquanto apertava até o limite um pano sujo e fedorento em meus olhos.

Vendado e algemado saí da minha cela sendo empurrado pelos dois brutamontes que riam o tempo todo. Quanto mais andava, mais conseguia ouvir o maldito rádio que tocava incessantemente no último volume. Comecei a ouvir o vozerio nojento deles, três deles, aparentemente. Fui empurrado porta a dentro, quase caindo.

– Está aí a encomenda! Façam bom proveito!

Eu nem havia ouvido a porta se fechando ainda quando fui atingido pelo primeiro chute. E depois outro e outro e outro e uma sequência deles. Caí algumas vezes e tentei me levantar em todas elas, mesmo desorientado pela falta de visão. Como complemento dos chutes, os xingamentos e ofensas não paravam. De repente vieram pedaços de pau grossos e pesados, cabos de enxada talvez?

– Pode falar, seu rato imundo, os outros já entregaram tudo. Só queremos a confirmação.

– Quem dirige você?

– Entregue o aparelho que te soltamos.

Mentiras, provocações e mais xingamentos. Meu corpo já não sentia mais os chutes, socos, pauladas, telefones. Meus ouvidos já não escutavam mais o interrogatório. Somente escutava a música clássica que tocava no rádio. Somente sentia o sangue pesado escorrendo dos meus lábios, dos meus ouvidos, em minhas têmporas. Senti também aquelas mãos pútridas puxando, rasgando, arrancando a minha roupa.

– Já que você não quer falar, vamos ter que subir o nível! – falou o da voz mais grossa enquanto os outros dois riam.

Fui puxado pela algema e preso em um gancho bem no alto da parede. Senti a parede fria encostando nas minhas feridas na barriga e nas pernas. Meus braços esticados, os pés quase sem tocar o chão. Um, dois, três estalos se aproximando aos poucos. O chicote lambeu minhas costas, minhas nádegas, minhas pernas. Queimava, ardia, sangrava. Suor e sangre se misturavam em minhas costas. Então, veio o primeiro desmaio. Creio que eles nem perceberam. Quando acordei o chicote ainda estalava no meu corpo, dessa vez por meio das mãos do que tinha voz de fumante. Mais um desmaio.

– Vai desmaiar a bichinha!

Foi a última coisa que ouvi. Foi depois disso que acordei pendurado, desnorteado. A venda havia escorregado até a minha testa no processo. Conseguia ver seus vultos andando de um lado para outro, mas não conseguia distinguir seus rostos. Conseguia ouvi-los.

– Ontem comi tão gostoso aquela putinha comunista! Gostosa, ela!

– Deixa para mim na próxima! – risadas.

– Ela não aguentou muito, né doutor?! – falou o da voz de fumante apontando para o outro que eu não havia ouvido a voz ainda.

– Coração fraquinho dessa daí! Tivemos que parar, porque se não ela não voltava mais.

Porta se abre. Porta se fecha. Eles pararam de falar. Passos pesados de um velho gordo se aproximaram e pararam atrás de mim.

– Ele já falou?

– Ainda não, coronel! se achando o herói ainda!

– Já, já ele fala! Né, seu filho da puta – disse o coronel enfiando a mão pelo meio das minhas pernas, puxando e apertando meu pênis. Essa dor nova se sobressaiu as outras, com as quais eu já havia me acostumado. Me debati. A venda caiu no chão.

– Olha aqui, seus incompetentes! A venda solta! – vociferou o coronel.

– Acho que do jeito que a cara dele inchada ele não reconheceria nem a própria mãe. – disse o da voz grossa.

O coronel riu. Deu a volta na mesa que me sustentava, juntou a venda e colocou de novo nos meus olhos. Depois, chegou com seu rosto bem perto do meu. Sentia seu hálito pútrido de cigarro e chiclete de menta.

– Agora que eu cheguei você vai cantar que nem um passarinho.

Reuni todas as minhas forças e lancei um grande cuspe. Saliva e sangue o atingiram, espero que no rosto.

– Jamais! – gritei, ouvindo a minha própria voz pela primeira vez desde que havia entrado naquele pedaço do inferno.

– Sabe o que eu acho? – disse o coronel – Acho que o nosso convidado está com sede.

Ouvi os outros se movimentando pela sala. Um deles segurou firmemente a minha cabeça. O outro colocou duas grandes bolas de algodão em meu nariz e fez com que eu abrisse a minha boca, por mais que eu tentasse mantê-la fechada. Ele colocou uma mangueira quase na minha garganta. O coronel começou a despejar uma grande quantidade de água suja em minha boca, lentamente, mas em um fluxo constante e sádico. Me debati, me afoguei, desmaiei. Eles riram.

Quando acordei do terceiro desmaio estava sentado em uma cadeira, preso nela pelos pulsos e calcanhares. Sentia os fios que se grudavam em minhas orelhas, dedos, pênis. Provavelmente na outra ponta deles estava a pimentinha. Ouvi um deles começar a girar uma manivela bem devagar, para então ir aumentando a velocidade aos poucos. Enquanto isso, os outros berravam próximos a mim.

– Fala, seu pedaço de merda!

– Vamos, abre o bico!

– Entrega tudo!

– Confirma onde é a casa de segurança!

– Quem são seus companheiros?

– Todo mundo já falou, só falta você!

A manivela girava cada vez mais rápida. Os choques ficavam cada vez mais fortes. Os gritos, cada vez mais altos. Desmaio. Um balde com água suja despejado sobre mim me acorda. A manivela volta a girar. Gritos. Choques. Música. Girando, girando. Desmaio. Água. Girando. Choques. Gritos. Choques. Desmaio. Água. Dessa vez o médico interveio.

– Melhor parar se não ele não aguenta mais tempo.

– Infelizmente ainda queremos ele vivo. – disse o coronel rindo.

Os outros riram. Chamaram os carcereiros. Saí arrastado. O som do rádio foi ficando para trás. O vozerio dos torturadores ficou para trás. Me jogaram na cela. Bati a cabeça no chão. Último desmaio.

* * *

Meus olhos abrem, apenas uma pequena fresta rompendo o inchaço. Estou deitado no chão há alguns palmos do fino colchão onde durmo. Estou nu. Meu rosto está dolorido. O sangue seco cobre grande parte do meu corpo. Tento me levantar. Caio novamente. Me arrasto até o colchão. Tudo o que aconteceu ontem é apenas um borrão na minha memória. Será que falei algo? Será que entreguei alguém? Será que fui fraco? O carcereiro passa. Volta. Para. Me olha.

– Você feio, hein, filho da puta! Trate de se recuperar, porque logo tem mais. E dessa vez você vai falar bonitinho!

Um alívio me atinge. A dor some. Sinto uma força tomando meu corpo. Eu não descumpri a Regra de Ouro. Eu não falei nada.