Raucana: o Comitê Popular em Lima

Nota do blog: Publicamos a seguir a tradução para português do Brasil do artigo Raucana: el Comite Popular en Lima, publicado em 2019 pelo El Diario Internacional, que consiste em um resumo de alguns tópicos abordados na tese de Carlos Castillo Vargas (2006), Rompiendo el Silencio: Raucana, historia de una posible base de apoyo del Partido Comunista del Perú (…). Como destacado no artigo: “Raucana entrou para a história como a experiência urbana de um Comitê Popular do Partido Comunista do Peru (PCP). (…) O PCP ajudou a construir um sistema de organização coletiva que se assemelhava a um Comitê Popular. (…) Através da organização coletiva, os residentes poderiam enfrentar a pobreza”. Trata-se de uma contundente demonstração do trabalho desenvolvido pelo PCP em Lima e de como plasmou-se o Novo Poder também nas cidades com o desenvolvimento da Guerra Popular no Peru.

Fotografia do assentamento Jorge Félix Raucana (1991), pode-se observar a pequena muralha que rodeava o assentamento e uma das torres de vigilância; foram construídas pelos moradores e serviram para resguardar os vigias (Castillo, 2006)
Destacamentos combinados das FFAA [forças armadas reacionárias] enfrentam os moradores de Raucana (Castillo, 2006)

Raucana: o Comitê Popular em Lima

Equipe El Diario Internacional

24 de agosto de 2019

Raucana entrou para a história como a experiência urbana de um Comitê Popular do Partido Comunista do Peru (PCP), conhecido pela imprensa como “Sendero Luminoso”. O assentamento humano foi fundado após uma ocupação por colonos nas terras de uma antiga fazenda da abastada família Ísola em 28 de julho de 1990, no distrito de Ate-Vitarte. A tomada de terras foi repelida com sangue e fogo pela polícia, causando a morte de três pessoas. A primeira delas foi o cidadão Félix Jorge Raucana, de 24 anos. Em homenagem a este corajoso colono, o assentamento recebeu seu nome. Em 1991, viviam em Raucana entre 1.600 e 2.000 moradores, e metade da população tinha entre 21 e 40 anos.

O PCP ajudou a construir um sistema de organização coletiva que se assemelhava a um Comitê Popular. Pelo seu funcionamento quase perfeito e pela proximidade que se atribuía ao referido Partido, Raucana rapidamente atraiu a agtenção da imprensa. No jornal de direita Última Hora podia-se ler o seguinte sobre a Raucana: “A área que ocupa cerca de 215 hectares está distribuída de forma ordenada. Todos trabalham para todos. A colaboração é mútua e perfeitamente organizada, é incrível. O sistema de troca [comercial] não falha. Cada um tem a sua horta e em cada uma são plantadas diferentes verduras, conseguindo assim um total variado de produção, que cobre as necessidades nutricionais, para depois serem trocadas pelo grupo. Têm campos desportivos. Fazem adobes [material para construção de casas]. Todos estão unidos.” (Última Hora, citado por Carlos Castillo 2006).

Através da organização coletiva, os residentes poderiam enfrentar a pobreza. Foi assim que construíram suas casas, cavaram poços de água sem ajuda de máquinas, formaram roças onde cultivaram verduras e frutas e construíram fazendas com animais para autossuficiência. Eles montaram um sistema de água e esgoto e uma farmácia que fornecia remédios gratuitamente aos moradores. Eles montaram um posto médico no qual estudantes de medicina tratavam os residentes. Estes ajudavam-se mutuamente nas tarefas diárias, sem pedir nada em troca, e contribuíam mensalmente para as despesas do assentamento. Aqueles que não tinham dinheiro podiam oferecer o seu trabalho em tarefas comunitárias como pagamento.

Raucana tinha, por sua vez, um sistema de justiça autônomo que era exercido pelo Conselho de Delegados. Delitos e crimes eram tratados em julgamentos populares. Quando um morador violava o código de boa conduta da cidade, por exemplo, maltratando a sua esposa ou filhos, ou tendo um comportamento desrespeitoso para com os seus vizinhos, ele era advertido. Caso não se corrigisse, era levado à Assembleia Geral que decidia a punição. A pena era, normalmente, cumprir horas de trabalho para a comunidade. As autoridades e membros de Raucana foram chamados por outros assentamentos para resolver os seus problemas de segurança interna.

Também contava com um sistema de segurança próprio que garantia a ordem pública e impedia a entrada de gangues de ladrões ou traficantes de drogas, como ocorria em outros povoados. O sistema de defesa ficava encarregado de repelir os ataques da polícia que, a princípio, pretendia expulsar os moradores de suas casas. Com esta organização autogerida, Raucana rapidamente se tornou um assentamento modelo. Para aqueles que imaginavam o ideal de uma nova sociedade sem opressores ou oprimidos, um modelo embrionário de uma sociedade socialista estava sendo formado aqui.

Raucana foi dividida em diferentes setores que realizavam suas assembleias e elegiam um delegado para a Assembleia Geral, que tomava as decisões de todo o assentamento. O Conselho de Delegados elegia o Conselho de Administração. Jovens e crianças podiam participar das Assembleias Gerais. Os moradores podiam fazer propostas de ações a serem realizadas, que eram discutidas pelos delegados em conjunto com o Conselho de Administração. Desta forma, garantia-se que todos pudessem participar na tomada de decisões. Raucana foi um exemplo de democracia direta.

Segundo o historiador Carlos Castillo, nem os delegados e nem a maioria dos moradores de Raucana eram membros do PCP, mas as decisões das assembleias e dos delegados eram respeitadas. Os entrevistados pela Comissão da Verdade garantiram que ninguém foi forçado a integrar ou a apoiar o PCP (Comissão da Verdade 2003, Volume 5, página 442 (Castillo 2006: 114)).

O Partido Comunista também não reconheceu publicamente que governava Raucana. Tudo indica, porém, que Raucana cumpriu a função de um Comitê Popular, e foi o primeiro da cidade. Isto era muito incomum, porque os Comitês Populares eram estabelecidos no campo. O PCP levava a cabo a estratégia de cercar as cidades pelo campo. O poder popular deveria ser forjado primeiro no campo para, numa segunda etapa, cercar as cidades, sufocá-las econômica e militarmente, até finalmente tomá-las de assalto1. Ao mesmo tempo, deviam ser criadas condições nas próprias cidades, gerando espaços de poder. Nesta estratégia, os assentamentos humanos, bairros empobrecidos, cumpriam um papel fundamental. A imprensa os chamou de “Cinturões de Pobreza”. Os comunistas, por outro lado, os chamavam de “Cinturões de Ferro”2.

O Estado peruano não perdoou o Partido Comunista nem os moradores de Raucana: tinha que destruir o assentamento, não só porque abrigava um ninho de “terroristas”, mas porque demonstrou que o modelo de sociedade proposto pelo PCP funcionava. O socialismo existia e era, na prática, superior ao país oficial que o Estado representa.

Em 6 de setembro de 1991, Raucana foi ocupada por um contingente de 2 mil militares que ergueram uma base militar e ficaram lá por 10 anos. A ocupação foi sangrenta. Comandos conjuntos de soldados e policiais entraram em todas as casas, arrombando as portas, roubando e destruindo os pertences dos moradores, prendendo, torturando e desaparecendo com muitos deles. Os militares destruíram as hortas e as roças, matando os seus animais (Comissão da Verdade 2003, Volume 5, página 444). É evidente que os militares queriam destruir os recursos de sobrevivência dos moradores, assim como o projeto Raucana. Várias mulheres relataram que foram abusadas e estupradas por soldados e policiais. Entre 1991 e 1993, todos os membros dos Conselhos de Administração eleitos nesses períodos foram presos. Já antes da ocupação, em abril do mesmo ano, os militares tinham matado 4 moradores e ferido dezenas quando protestaram contra a prisão dos seus líderes. Estes assassinatos, desaparecimentos, torturas e prisões arbitrárias foram até documentados pela Comissão da Verdade; a mesma que, no entanto, dedicou o seu trabalho a desacreditar o Partido Comunista e a limpar politicamente os militares, a polícia e os ronderos [paramilitares] dos seus crimes de guerra.

Os assassinatos na repressão em Raucana são registrados em uma entrevista ao fotógrafo Carlos Saavedra: “Em 1991, quando o Exército ia retomar o bairro de Raucana, aonde moravam membros do Sendero Luminoso, fui ferido por um tiro na perna. Foi uma briga entre militares e moradores. O Exército expulsou a imprensa e a polícia. Entrei teimosamente e começou o tiroteio. Fui corajoso. Procurei um bloco de cimento como trincheira e fui até o outro lado do povoado, e vi pessoas caídas no chão por causa do tiroteio. Eu estava parado com minha câmera. Então senti um atrito que queimou minha perna; mas a bala não me atingiu, matou um senhor que estava atrás” (IDL-Reporteros 2010).

As forças de ocupação destruíram a organização comunal da população como punição e para torná-la, por sua vez, dependente das doações de alimentos que recebiam. Esta foi a velha tática de “pau e cenoura” que o Estado utilizou na sua guerra contra o PCP [guerra de baixa intensidade]. Os militares distribuíram alimentos durante anos em assentamentos humanos para conquistar suas populações e, desta forma, mantê-las longe da guerrilha maoista. No caso de Raucana foi diferente, os militares reduziram rapidamente as doações de alimentos, porque perceberam que nem dessa forma nem de outra iriam ganham a população. E eles tinham razão: os residentes estavam imbuídos do ideal e da prática socialista.

O historiador Carlos Castillo documentou os maus-tratos sistemáticos que os militares praticaram contra os habitantes de Raucana. A base militar permaneceu lá por 10 anos. A ocupação militar impediu que os moradores continuassem a se organizar para seguir adiante. Tornou-se um assentamento miserável, com péssimas condições de higiene e saneamento, onde os moradores sofriam com a fome e uma série de doenças crônicas. O jornal La República noticiou sobre Raucana, em 1998, da seguinte forma: “Não há o que comer. Há muitas crianças doentes, desnutridas, alcoólatras e mães solteiras. Raucana, o povoado onde o Sendero Luminoso instalou seu primeiro comitê popular aberto na capital, é o inferno na Terra (…) Mas há oito anos o local sofreu uma mudança radical e se tornou o assentamento humano Jorge Félix Raucana, um dos bairros mais miseráveis e tristes de Lima” (La República 08/ 09/1991, Castillo 2006, página 264).

Este autor documentou que muitos moradores sofriam de problemas psicológicos e crianças sofriam de malformações. O Estado aplicou o que o filósofo Michael Foucault definiu como biopolítica, ou seja, exercer a dominação através do controle do corpo. O Estado pretendia destruir a vontade de luta dos moradores de Raucana e o fez tirando-lhes os meios de sobrevivência e criando condições para que adoecessem. Desta forma, continuou a atacar esta população mesmo depois da derrota do PCP.

Queremos sublinhar que ninguém foi julgado por estes crimes, pelas mortes causadas por soldados que fuzilaram moradores desarmados, soldados e policiais que fizeram desaparecer, torturaram e violaram os residentes. Nenhuma organização de direitos humanos levantou a voz em protesto e nem mesmo a Comissão da Verdade fez esforços para investigar e abrir procedimentos para estes acontecimentos. A justiça para esta comunidade não está e nem estará incluída na atual estrutura de poder.

A experiência de Raucana ficou na história como uma das mais pedagógicas e significativas no quadro da guerra popular, pois é um exemplo de que só lutando de forma unida o povo se libertará das antigas cadeias de opressão. O custo que a população de Raucana pagou foi alto. Mas a contribuição deste povo corajoso para a luta por uma sociedade mais justa no Peru tem sido maior. A sua experiência e luta constituem uma contribuição inevitável no longo caminho para o socialismo. E a sua dedicação heroica nunca será esquecida. A história lhes dará o lugar que merecem.

Fontes:
Arce Borja (2009). Memoria de una Guerra. Perú 1980-2000
Castillo Vargas, Carlos (2006). Rompiendo el Silencio. Raucana, historia de una posible base de apoyo del Partido Comunista del Perú, o de cómo se formó el “nuevo poder”
Comisión de la Verdad y Reconciliación (2003). Informe Final, Tomo 5
IDL-Reporteros (2010). El ninja de la fotografía