Literatura: Tradução do conto “Companheiro!” de Máximo Gorky

Nota do blog: Publicamos a seguir a tradução do conto “Companheiro!” de Máximo Gorky, publicado no livro “Cuentos de rebeldes y vagabundos”, da Editora Nacional Quimantu (Chile), em 1972. Gorky foi um grande escritor e político russo, fundador do movimento literário Realismo Socialista. Apesar de ser mais conhecido por seus romances, como “A mãe”, também escreveu diversos contos, peças de teatro e ensaios, buscando sempre em suas obras descrever a realidade de brutal opressão que vivia o povo russo, suas privações, humilhações e toda a crueza do Estado czarista, mas também apontava o caminho da luta de classes e demonstrava como todo o povo carrega em si a chispa que pode acender a grande pradaria da revolução que queimará e derrubará todos os opressores.

Máximo Gorky (1937, óleo sobre tela), de Izaak Brodsky

Companheiro!

Naquela cidade tudo era estranho, esquisito e incompreensível. Um sem-número de igrejas levantavam ao céu suas cúpulas brilhantes e multicoloridas, mas as paredes e as chaminés das fábricas eram mais altas que os campanários, e os templos se achavam envoltos pelo tumulto dos edifícios industriais perdendo-se entre os retos muros de pedra, como flores fantásticas entre o pó e desolação das ruínas.

E quando os sinos da igreja chamavam para a oração, suas vozes de bronze, arrastando-se sobre o ferro dos telhados, se perdiam apagadas nas ruas estreitas, tortuosas e os estreitos labirintos das casas.

Os edifícios eram imensos e alguns, pouquíssimos, bonitos; as pessoas, deformadas e mesquinhas. Da manhã até a noite, os homens como correntes cinzas, obscuras e opacas, andavam agitados pelas ruas estreitas e sujas da cidade e com ávidos olhares buscavam uns o pão, outros as diversões, outros finalmente, parados nas esquinas, espiavam ansiosos e hostis o espetáculo dos fracos submetendo-se resignados a vontade dos fortes.

De fortes eram chamados os ricos. Todos acreditavam que somente o dinheiro podia dar poder e liberdade ao homem. Todos desejavam o poder, porque todos sofriam a escravidão; o luxo dos ricos fazia nascer a inveja e o ódio dos pobres, nenhum conhecia música mais agradável que o tilintido do ouro e como consequência, cada um era inimigo do outro e a crueldade a todos dominava.

Por cima da cidade resplandecia algumas vezes o sol, mas a vida era sempre sombria e os homens semelhantes às sombras. De noite acendiam muitas e alegres luzes, mas então pela rua apareciam mulheres famintas vendendo suas carícias; por todas as partes penetrava no nariz o delicioso cheiro das iguarias e em qualquer lugar se viam brilhar, silenciosos e ávidos, os tristes olhos dos famintos. E pelo espaço, lentamente, subia o lamento sufocado de uma imensa, de uma tremenda infelicidade, a qual faltavam forças para manifestar-se em voz alta.

Todos viviam fatigados e agitados; todos se sentiam culpáveis; alguns estavam seguros de ter razão, mas estes poucos, rudes como feras, eram os mais cruéis, os mais implacáveis…

Todos queriam viver e nenhum sabia como; ninguém podia seguir livremente suas próprias aspirações, e a cada passo para o futuro se via obrigado involuntariamente a voltar-se para o presente, o qual com mãos fortes e pesadas como as de um ávido monstro, detinha o homem em seu caminho e o envolvia em seus lascivos abraços.

O homem, angustiado e perplexo, se detinha cansado ante aquela face feia e monstruosa da vida. Esta, com seus mil olhos tristes, o olhava no coração implorando alguma coisa e então se debilitava na alma do homem imagens distintas do futuro, e seu lamento de impotência se perdia no coro dissonante dos gemidos, dos gritos de todos os infelizes, mártires da vida.

Se notava em todo momento o cansaço ou a agitação ou o medo; e ao entorno daquelas pessoas, imóvel, como uma prisão, refletindo os vivos raios de sol, estava aquela cidade melancólica e tenebrosa, aqueles conjuntos, regulares, desagradáveis, de pedras que rodeavam os templos.

A música daquela vida não era mais que um lamento de dor, de ódio e de cólera, um apagado sussurro de animosidade encoberta, um grito seco, atormentador de crueldade, um ranger voluptuoso de violência.

Em meio ao triste e vão esforçar-se entre dor e desventuras, na confusa convulsão da avidez e da necessidade insatisfeitas, no lodo do baixo egoísmo, pelos subterrâneos das casas, onde vivia aquela miséria que havia criado a riqueza da cidade, transitavam invisíveis sonhadores, solitários cheios de fé na humanidade, afastados de todos; inquietos pregadores de rebelião, chispas sediciosas do distante fogo da verdade.

Levavam consigo ao subterrâneo, secretamente, pequenas sementes, sempre frutíferas, de uma doutrina simples, bela e elevada, austeramente, com uma brilhante luz nos olhos, ou docemente e com amor, semeada aquela verdade evidente e deslumbrante nos obscuros peitos dos homens escravos, transformados, pela força dos avaros e pela vontade dos cruéis, em instrumentos cegos e taciturnos de lucro.

E estes homens obscuros e escravos, desconfiados ainda, ouviram a música das novas palavras, música agradável que seu coração invocava confusamente há muito tempo. Levantavam pouco a pouco a cabeça, e iam rompendo as correntes das hábeis mentiras com as quais lhes mantinha oprimidos a violência dos magnatas.

À sua vida, cheia de animosidade calada e reprimida; aos seus corações, envenenados por inumeráveis ofensas; à sua consciência, àquela existência difícil e triste, cheia de amarguras, de humilhações, de dores, chegava uma palavra simples e serena: Companheiro!…

A palavra não era nova para eles; a haviam ouvido e pronunciado algumas vezes, mas até aquele momento tinha um significado vazio, sem calor de humanidade, como todas as palavras conhecidas que se podem esquecer sem sentimento.

Mas aquela palavra, clara e forte, tinha outro som, outra emoção, outra alma; se sentia nela algo de bruto, de deslumbrante, de multifacetado, como um diamante. A aceitaram e começaram a pronunciá-la com cautela, embalando-a com doçura no coração, acariciando-a como uma mãe que nina e embala seu filhinho no berço.

Quanto mais profundamente penetravam na alma da palavra, mais serena, significativa e clara lhes parecia.

– Companheiro! – diziam

Sentiam que esta palavra veio para unir todo o mundo, para engrandecer a todos os homens a altura da liberdade, para ligá-los com novos vínculos: vínculos fortes de estima recíproca, de estima e desejo pela liberdade do homem, por sua redenção.

Quando essa palavra se gravou no coração dos escravos, estes começaram a deixar de sê-lo, e um dia anunciaram para a cidade e a todas as suas atividades outra grande palavra humana:

– Não quero!

Então a vida se deteve, por que eles, os escravos, são a força que lhe dá movimento. Se deteve a correnteza de água, o fogo se apagou, a cidade caiu nas trevas e os aparentemente fortes se sentiram como crianças.

O medo se apoderou da alma dos violentes e se viram na necessidade de esconder sua animosidade contra os rebeldes, incertos e aterrorizados diante sua força, que despertava.

O espectro horrível da fome se levantou diante deles, e seus filhos choraram.

As casas e os templos, rodeados pelas trevas se confundiram em um caos de pedra e de ferro sem alma; um silêncio sinistro encheu as ruas; a vida se deteve, porque a força que a fazia se desenvolver conheceu a si mesma; o homem escravo encontrou a palavra adequada, mágica, invencível para expressar sua vontade; se libertou da opressão e reconheceu sua força, força de criador.

Os dias eram de angustia para os poderosos, para aqueles que se viam como donos da vida. Cada noite valia por mil, tão espessas eram as trevas, tão mesquinhamente brilhavam as luzes na cidade morta. Esta cidade, criada pelos séculos, imenso monstro que bebia o sangue dos homens, se apresentou então diante deles em sua monstruosa nulidade como uma mísera massa disforme de pedras e madeiras. As janelas das casas, frias e tristes, permaneciam fechadas, e pelas ruas caminhavam atrevidamente os verdadeiros donos da vida. Eles também sentiam fome, e mais que os outros, mas estavam acostumados a elas; os sofrimentos do corpo não era para eles tão agudos como para os magnatas nem apagava o fogo de sua alma. Ardia neles a consciência de sua própria força e o pressentimento da vitória brilhava em seus olhos.

Caminhavam nas ruas da cidade, daquela prisão melancólica e estreita onde viveram desprezados, onde viveram ultrajados, e viam a imensa importância de seu trabalho, o qual lhes fazia conceber o sagrado direito que tinham de ser donos da vida, de ser seus criadores. Então, com energia nova, com resplandescente claridade, se apresentou a palavra capaz de avivar e unificar:

– Companheiro!

Ressoou entre as palavras enganosas do presente como um anúncio do futuro, de uma nova vida aberta a todos igualmente.

– Quando? – se perguntaram, e compreenderam que isso dependia de sua vontade, porque eles podem aproximar a data de sua liberdade, mas também adiar sua chegada.

A prostituta, até ontem fera meio faminta, que esperava com angústia na obscura rua estreita a chegada de alguém que se aproximasse e comprasse suas forçosas carícias por algumas moedas, também ouviu aquela palavra, mas, sorrindo, desconcertada, não se decidia a repeti-la. Um homem dos que até então nunca havia encontrado, se aproximou, colocou a mão sobre seu ombro, e lhe disse em tom fraternal:

– Companheira!

E ela sorria timidamente para não começar a chorar de alegria. Porque era a primeira vez que seu coração ultrajado sentia a alegria de uma carícia terna e plena de emoção. Em seus olhos, que ontem olhavam o mudo descaradamente com a expressão estúpida de um animal faminto, brilharam as lágrimas de uma primeira felicidade pura. Essa alegria da comunhão dos abjetos com a grande família dos trabalhadores brilhava em toda parte nas ruas da cidade, tanto que, mais frios e mais sinistros, o observava os ardilosos olhos das casas fechadas.

O mendigo, ao que para afastar se lançava uma mísera moeda, preço da compaixão dos fartos, ouviu também essa palavra, e lhe pareceu a primeira esmola capaz de suscitar algo de gratidão em seu pobre coração, corroído pela miséria.

O cocheiro, jovem ridículo, a quem os senhores golpeavam nas costas para que transmitisse o golpe ao cavalo esgotado, este homem golpeado tantas vezes sobre o calçamento, disse também ao transeunte, abrindo os lábios em um sorriso franco:

– Aonde te levo, companheiro?

Disse, ainda que com medo, puxou as rédeas, pronto para sair, e se pois a olhar o transeunte, não sabendo dissimular no rosto, largo e vermelho, o sorriso jovial e alegre.

O transeunte o olhou com olhos benévolos e respondeu, inclinando a cabeça:

– Obrigado, companheiro! Posso ir a pé, não está longe.

– Oh! Mãe imaculada!… – exclamou o cocheiro, reanimado; girou sobre seu assento assobiando alegremente e partiu sorridente, satisfeito.

Os homens caminhavam em grupos pelas calçadas, e entre eles, como uma chispa, se inflamava com cada vez mais frequência a grande palavra destinada a unir o mundo:

– Companheiro!

Um policial de espessos bigodes, pensativo, se aproximou com ar de importância da multidão que na esquina de uma rua rodeava um velho orador, e depois de ter escutado por muito tempo seu discurso, disse constrangido, lentamente:

– Estão proibidas as reuniões… Separem-se…, senhores…

E depois de um momento em silêncio, olhou para o chão e acrescentou em voz alta:

– Companheiros!…

Nos rostos daqueles que levavam essa palavra no coração, que lhe haviam dado carne e sangue e emoção, e seu alto significado de chamado à união, brilhava o sentimento de orgulho dos jovens criadores, e se observava que a força que eles colocavam nesta palavra não podia ser destruída jamais.

Já se reuniam contra eles turbas medíocres e cegas de homens armadas que formavam silenciosas colunas regulares; a inimiga dos violentos se preparavam para rechaçar as ondas da justiça.

E nas ruas estreitas, apertadas e tortuosas da imensa cidade, entre os muros frios e silenciosos, erguidos pelas mãos de criadores desconhecidos, crescia cada vez mais e amadurecia a grande fé dos homens na fraternidade de todos com todos:

– Companheiros!

Aqui e ali se acendia um pequeno fogo que se transformará em uma chama que incendiará a terra com o vívido e férvido sentimento da fraternidade de todas as pessoas.

Incendiará toda a terra e queimará e reduzirá a cinzas o ódio e a crueldade que nos deformam: incendiará todos os corações e os fundirá em um só: o coração dos homens justos e nobres em uma família indissolúvel, livre e trabalhadora.

Nas ruas da cidade morta, criada por escravos; naquelas ruas que reinavam a crueldade, cresceu e se reforçou a fé no homem, em sua vitória sobre si mesmo e sobre os males do mundo.

E no caos confuso da vida agitada e privada de alegrias, como estrela luminosa, como farol do futuro, brilhou a palavra simples, descomplicada, profunda, como o coração:

– Companheiro!…