Nota do Blog: É com prazer que publicamos o artigo “O Legado Imortal do Presidente Gonzalo”, de autoria do Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo (NEMLM) do Brasil. O presente texto figura como Prefácio à edição brasileira da “Entrevista Com o Presidente Gonzalo”, publicada em 2023 pela Editora Ciências Revolucionárias e com edição do próprio NEMLM. O artigo deslinda completamente com o revisionismo de Prachanda, o traidor da Guerra Popular no Nepal, e demonstra cabalmente o abismo que separa uma grande Chefatura, que é o Presidente Gonzalo de um aventureiro capitulador, ou mesmo de formulações rasas e anticientíficas acerca do Maoismo e a Guerra Popular. Assim, revela uma dentre tantas razões do porquê a Guerra Popular no Peru segue invencível e porquê os aportes do Presidente Gonzalo ao maoismo são unviersais.
Lembramos a nossos leitores que a publicação impressa em livro encontra-se a preço popular na loja da Editora Ciências Revolucionárias.
O legado imortal do Presidente Gonzalo
“Sempre os ataques ao marxismo foram prólogo do seu novo desenvolvimento e avanço”.
Presidente Gonzalo
Há 35 anos, precisamente a 5 de julho de 1988, o jornal “El Diario”1, de Lima, Peru, lançava nas bancas uma edição especial que trazia na capa: “Entrevista na clandestinidade: Presidente Gonzalo rompe o silêncio”. Era a primeira entrevista da Chefatura do Partido Comunista do Peru (PCP) e da Guerra Popular desde o Início da frágua, em 17 de Maio de 1980, que o PCP definiu por ILA80. O domingo corriqueiro dos peruanos, quiçá perturbado por algum blecaute perpetrado pelos guerrilheiros (que já se tornavam parte da rotina do país, assunto nos ônibus e nos bairros), se converteu numa data de importância histórica. Ao custo do empastelamento do jornal legal do Partido*, deu-se a conhecer ao proletariado internacional um resumo, ditado em forma popular, das resoluções do I Congresso do PCP. Os temas decisivos da Revolução Proletária Mundial, do seu passado e do seu futuro, são tratados aí. E se, como foi o caso para nós, maoistas brasileiros, a “Entrevista do Século” – como logo ficou conhecida nos círculos clandestinos mundo afora – foi uma espécie de trovão que anunciava novas tempestades revolucionárias por vir, ainda mais surpreendente foi descobrir, à medida que nos chegavam ao conhecimento os documentos do referido Congresso, bem como os que remetiam a toda a trajetória da Fração Vermelha agrupada em Ayacucho no princípio dos anos 60, que este magnífico edifício não era senão uma pequena amostra de um conjunto de elaborações integrais e originais, que constituem o que no presente se consagrou como os aportes de validez universal do Presidente Gonzalo.
Quem foi o Presidente Gonzalo?
Manuel Ruben Abimael Guzman Reinoso, o Presidente Gonzalo, Presidente do PCP, nasceu em Mollendo-Izlay. Graduou-se em direito e filosofia na Universidade de San Augustin, em Arequipa. Estudioso brilhante, doutorou-se com as teses, em filosofia, Acerca da teoria kantiana do espaço, e em direito, O Estado democrático-burguês. Ingressou no Partido Comunista no período entre 1960 e 1961, num comitê de base em Arequipa, com a idade de 24 ou 25 anos. Em 1962, a convite de Efrain Morote, então reitor da Universidade de San Cristóbal de Huamanga, Abimael mudou-se para Ayacucho, onde lecionaria por vários anos.
Integrando-se ao Comitê Regional do PCP, tomou parte da luta contra o revisionismo kruschovista que infectara o partido. Como desfecho deste embate, os oportunistas, liderados por Del Prado, foram expulsos da organização em 1964. Abimael encabeçou a luta interna e buscou aprofundá-la, levando à conformação da Fração Vermelha do Partido, cujos combates a linhas de direita, oportunistas de “esquerda” e liquidacionistas levaram a novas depurações. Ao lado de outros quadros do PCP, ele esteve na China Popular por duas oportunidades, onde estudou “na mais alta Escola de marxismo que a Terra teve”, como afirma na presente entrevista. Dirigindo a Fração Vermelha, Abimael chamou a retomar Mariátegui e reconstituir seu partido. À frente do PCP, aplicou o marxismo-leninismo, pensamento mao tsetung à realidade do país e integrou-o com a prática da revolução peruana. Já reconhecido como Chefatura, tornou-se o Presidente Gonzalo, conduziu o partido à sua reconstituição e deu início à guerra popular, em 17 de maio de 1980. Nesse processo é que definirá o maoismo como uma nova, terceira e superior etapa de desenvolvimento do marxismo.
Após doze anos de exitoso desenvolvimento da guerra popular, que se desenvolveu dentro de uma situação internacional na qual se desatou uma nova ofensiva contrarrevolucionária geral, a qual correspondeu em um concentrado plano do imperialismo norte-americano e o governo golpista-fascista de Fujimori de operações de cerco e aniquilamento da guerra popular, o Presidente Gonzalo foi capturado no dia 12 de setembro de 1992, com outros membros do Comitê Central do partido. Em 24 de setembro foi apresentado à imprensa do Peru e internacional com uniforme listrado de preso comum e trancado em uma jaula, no propósito de desmoralizá-lo e humilhá-lo, tratando-o como a pior das feras, oportunidade em que proferiu um magistral discurso, que segue ecoando ainda hoje entre os comunistas, revolucionários e oprimidos de todo o mundo.
Depois de vinte e nove anos em isolamento total, com sérios problemas de saúde derivados desta terrível condição, foi assassinado da forma mais vil por agentes da “inteligência” militar do Peru – oficiais da marinha de guerra que o tinham sob custódia – num conluio do governo do oportunista Castillo e a CIA norte-americana, em 11 de setembro de 2021.
Maoismo e Guerra Popular
Nesta obra, o Presidente Gonzalo empreendeu o Balanço da Primeira Grande Onda da Revolução Proletária Mundial, isto é, da primeira vaga de guerras e revoluções da qual nasceram os pioneiros Estados de Ditadura do Proletariado da História. Dela, colheu e definiu o Maoismo como nova, terceira e superior etapa do Marxismo-Leninismo, porquanto significou um desenvolvimento e grande salto das suas três partes constitutivas enquanto unidade (Filosofia marxista, Economia Política marxista e Socialismo Científico). Estabeleceu:
“Assim, simplesmente para enumerar: na filosofia marxista, ninguém pode negar seu grandioso desenvolvimento na dialética, centralmente na lei da contradição, estabelecendo que é a única lei fundamental. Se delinearmos o problema da economia política, podemos dizer que nesse campo basta destacar duas coisas: uma, para nós de importância imediata e concreta, o capitalismo burocrático e, dois, o desenvolvimento da economia política do socialismo. Em síntese, poderíamos dizer que é ele quem realmente estabeleceu e desenvolveu a economia política do socialismo. Quanto ao socialismo científico, bastaria destacar a guerra popular, pois, é com o Presidente Mao Tsetung que o proletariado internacional logra uma teoria militar cabal, desenvolvida, e nos dá assim a teoria militar da classe, do proletariado, com aplicação em todas as partes. Acreditamos que estas três questões nos demonstram que há um desenvolvimento de caráter universal.”
O maoismo, portanto, foi situado na história pelo Presidente Gonzalo como o ponto culminante do desenvolvimento da ideologia científica do proletariado até aqui, embora de forma alguma definitivo2. O que Engels significou para Marx, e Stalin para Lenin, o Presidente Gonzalo representou para o Presidente Mao. Se se tivesse que resumir toda a Entrevista a um único tema fundamental, seria esse – o que, por si só, já asseguraria a importância capital do estudo deste texto para todos os revolucionários consequentes. A definição rigorosa, mais profunda e elevada síntese do Maoismo, foi a maior contribuição do Presidente Gonzalo e do PCP para o proletariado internacional, gravada na pedra com sangue.
Filósofo de vulto, no Presidente Gonzalo o balanço da “primeira tentativa” não é uma mera coleção de fatos, pobre soma de eventos. Não é, muito menos, desinteressado, cético ou derrotista. Marx não fez, no seu tempo, um balanço “imparcial” da Comuna de Paris (ou mesmo, se se recuar, da Grande Revolução Francesa), nem Lenin tampouco o fez sobre a Primeira Revolução Russa de 1905-1907. Nós, comunistas, pensamos para agir (revolucionariamente) em defesa de nossa classe. Como bem estabelece o Presidente Gonzalo, “é problema da ideologia burguesa no estudo ficar só na análise e não dominar a síntese como principal, assim, não dar salto”3. Isto não significa ausência de objetividade no julgar, ao contrário: é puro idealismo pretender isolar o objeto pensado do sujeito que pensa. O marxismo cobra a unidade de lógica e história, e quem diz história diz: classes e luta de classes. Sobre a relação de ideologia e ciência, assenta:
“Queria ressaltar de passagem isto: é ideologia, porém científica. Entretanto, deveríamos compreender muito bem que não podemos fazer concessão alguma às posições burguesas que querem reduzir a ideologia do proletariado a um simples método, pois, dessa maneira, ela é prostituída, é negada.”
A suposta “neutralidade científica” é uma impossibilidade categórica, puro irracionalismo. Na sociedade de classes tudo tem caráter de classe, portanto, ideologia. Ocorre que, no caso do proletariado, e somente no caso do proletariado, como última classe da história, a que Marx chamava de “dissolução de todas as classes” – porque os elementos expropriados de todas as classes se reúnem no seu seio –, é possível a coincidência de ideologia e ciência, pois ele é a (única) classe universal, latência da humanidade comunista universal4. Contra esta concepção, que arranca com Marx e Engels, insurge-se à direita e à esquerda. À direita, acusa-se o marxismo de “ideológico”, tendo a desfaçatez de chamar de “ciência” ao positivismo reacionário, apologia mercenária da ordem vigente; supostamente “à esquerda”, os revisionistas querem conservar apenas a epistemologia marxista, castrando-lhe do que é inaceitável para a burguesia. Mesmo o reconhecimento da luta de classes – observa Lenin em “O Estado e a Revolução” – não basta para fazer de alguém marxista, se não se o estende até ao reconhecimento da ditadura do proletariado.
É neste pântano em que se afunda o senhor Bob Avakian, cuja suposta “nova síntese do marxismo” pretende “desproletarizar” o marxismo, ou seja, implodi-lo como ideologia de classe – acusando o que ele define como “reificação do proletariado”, presente nos clássicos mesmos. Desse modo, tenciona fundir marxismo e liberalismo (“ditadura do proletariado” com “parlamentarismo”), essência do que ele chama de “núcleo sólido com muita elasticidade”. Ao rechaçar o caráter de classe do marxismo, e porque rechaça o caráter de classe do marxismo, este renegado rechaça também o seu caráter científico, pois o objeto desta ciência é a própria revolução (não só na sociedade, mas também na natureza e no pensamento: em cada uma destas totalidades parciais do mundo material único, o desenvolvimento se dá por saltos, isto é, por revolução). Quem queira saber a que tipo de disparates conduz a ausência da prática revolucionária na teoria revolucionária, que tente folhear os seus prolixos escritos – dentre os quais se inclui uma “Constituição da República Socialista dos Estados Unidos”, vigente talvez na Área 51 – que ao longo do tempo se tornaram tanto mais extensos quanto menos lidos. Na sua lápide, estará escrito: Triste personagem, de Mao Tsetung a Joe Biden.
Posto isso, alguém poderia deduzir que, sendo o marxismo ideologia e ciência – ideologia científica –, uma vez que as classes tenham sido eliminadas e a sociedade adentrado ao comunismo, ele deixaria de vigorar. Sim e não. Sim para a ideologia, é evidente; não para a ciência, terreno em que o marxismo seguirá se desenvolvendo.
Ora, se o objeto da ciência do marxismo-leninismo-maoismo é a revolução permanente – onímoda, como precisaram os camaradas chineses –, o fulcro de toda a sua construção teórico-política é o problema do Poder. Para usar a feliz expressão do Presidente Mao, é este o alvo constante – se se quiser, imutável – das suas flechas5. Perder a perspectiva da revolução, renunciar à sua preparação efetiva ou eludi-la para o intangível (ainda que este “eludir” se faça na forma de frases altissonantes) é abandonar e trair o marxismo. Não há um “outro” marxismo que não seja revolucionário, com todos os “horrores”, como diria Mariategui, daí decorrentes. Aqui, nós pisamos o que popularmente se diz “o x da questão”. Como diz o Presidente Gonzalo, “um Partido uma vez constituído e, considerando as condições concretas, tem que brigar por plasmar essa conquista [do poder] e somente pode fazê-lo mediante a guerra popular”. Com base nisso, afirmamos que falar em Maoismo é falar em Guerra Popular, e que esta deve ser entendida não apenas como teoria militar integral – o que também foi assentado pelo Presidente Gonzalo – mas também como concepção de poder do proletariado. Numa palavra, Maoismo sem Guerra Popular = revisionismo. Guerra Popular universal, que deve ser aplicada à realidade concreta de cada país6.
É também com esta perspectiva que o Presidente Gonzalo enfrenta o problema da restauração do capitalismo na União Soviética e na China Popular, e que é diametralmente oposta às queixas sobre “crise do comunismo” que se ouviram e se ouvem da boca de dirigentes corrompidos, que nada mais é do que capitulação ao imperialismo e sua tentativa de igualar fascismo e comunismo como ordens “totalitárias” (curiosamente, “1984”, a distopia anticomunista elaborada pelo trotskysta George Orwell, parece retratar a vigilância eletrônica erigida pelo capitalismo senil na atualidade). Seguindo o exemplo dos clássicos – Marx, Engels, Lenin, Stalin e o Presidente Mao –, que nos ensinaram a, diante das derrotas temporárias, reagrupar as forças e afiar mais a lâmina para a próxima investida; que nos ensinaram a não confundir a preparação das batalhas futuras com a renúncia a estas batalhas, disse, sobre aqueles eventos:
“Tudo isso faz refletir seriamente e entender o problema da restauração e contrarrestauração, não é problema de lamentação nem de queixas inoportunas como alguns tratam de difundir, o problema é enfrentar a realidade e compreendê-la, e nós a compreendemos e tomamos a questão da restauração e contrarrestauração que o próprio Lenin já havia levantado, e o Presidente Mao, desenvolvido com maestria. Nenhuma classe nova na história se assentou de uma só vez no Poder, conquistou-o e o perdeu, recuperou-o e voltou a perdê-lo até que, em meio de grandes lutas e contendas, lograva afirmar-se no Poder. Coisa igual se passa com o proletariado, porém grandes lições nos têm deixado, inclusive na construção socialista, portanto, é uma grandiosa experiência.”
Sim, grandiosa experiência, e experiência é matéria – não pode ser abolida, nem “desinventada”. Portanto, ao fazer a análise e síntese de todo o processo da revolução proletária desde o aparecimento do Manifesto do Partido Comunista em 1848 até ali – até o momento em que teve seu trabalho interrompido pela prisão, em setembro de 1992 –, que desembocou na definição do maoismo como nova, terceira e superior etapa do marxismo-leninismo; ao aplicar de maneira criadora a ideologia científica universal do proletariado à realidade concreta do seu país e do seu tempo – aplicação criadora que deveio em Pensamento Gonzalo, assumido pelo PCP – o Presidente Gonzalo, como não poderia deixar de ser nesse caso (ou seja, o caso de que seja uma aplicação consequente), aportou algo novo ao próprio arsenal do marxismo-leninismo-maoismo e legou estes aportes aos que seguiram com ele e depois dele. Trinta e cinco anos após a realização do I Congresso e da publicação da “Entrevista”, não é somente o PCP (que briga por completar sua reorganização geral em meio à dura luta de duas linhas), mas crescentemente o Movimento Comunista Internacional, quem os desfralda, defende e aplica.
Os aportes de validez universal do Presidente Gonzalo
Quais são, afinal, os aportes de validez universal do Presidente Gonzalo?
É preciso dizer, em primeiro lugar, que a definição e o desenvolvimento do marxismo-leninismo-maoismo pela Chefatura do PCP não são fruto do arbítrio ou da vontade subjetiva de um indivíduo. Ao contrário, nascem de uma necessidade específica da Revolução Proletária em um dado momento, não só no contexto peruano e latino-americano, como internacional. Os homens fazem a história, dizia Marx, e o materialismo histórico não nega o papel das personalidades no seu curso. Sublinha, no entanto, que os sujeitos não escolhem livremente as circunstâncias em que atuam – legadas pelas gerações anteriores – e que, em decorrência disso, o seu agir será tanto mais efetivo quanto mais corresponda às necessidades do tempo. Negar o papel dos líderes é romper a relação entre Chefes, Partido, Classe e Massas, já assentada por Lenin e Stalin na sua sistematização da Revolução de Outubro. É manifestação de anarquismo senhorial e de espírito antipartido.
A questão, portanto, não é negar que um processo social gere cabeças – como o Presidente Gonzalo assinala, até um movimento literário as têm –, mas distinguir as lideranças autênticas das que usurpam tal papel para trair a classe e o povo. Deste modo, sobre o Pensamento Gonzalo, na Entrevista se assinala que ele “não é senão a aplicação do marxismo-leninismo-maoismo à nossa realidade concreta”, constituído pela Ideologia, Linha Política Geral, cujo centro é a Linha Militar e Programa. No processo peruano, “esse foi antes denominado pensamento guia; e se hoje o Partido no Congresso sancionou pensamento gonzalo é porque se produziu um salto nesse pensamento guia, precisamente no desenvolvimento da Guerra Popular”. Trata-se, portanto, de um desenvolvimento que se dá em meio à luta de classes e à luta de duas linhas, cuja comprovação pela prática é crucial, como é mister no processo científico. Pensamento Guia que se identifica com aquele que o desfralda, defende e desenvolve. Que seja tal ou qual indivíduo é casual, mas que a classe gere seus dirigentes; destes, um punhado de chefes; dos chefes, um mais destacado, é necessidade objetiva. Arbitrário seria pretender negar que a matéria se desenvolve por saltos e de modo desigual7.
No plano histórico-mundial, pode-se dizer que a definição pelo Presidente Gonzalo do marxismo-leninismo-maoismo, principalmente maoismo, como o marxismo dos nossos dias, se deu em época de aguda luta entre restauração e contrarrestauração, situação complexa em que o proletariado perdeu o poder nas suas cidadelas e busca recuperá-lo, em combate de vida e morte contra o imperialismo, o revisionismo e toda a reação. Enquanto os oportunistas de todos os matizes depuseram armas, e passaram a reproduzir o discurso reacionário de “democracia como valor universal”, “crise do comunismo” ou “socialismo do século XXI”, como o renegado Prachanda – quando a única distinção, presente no Manifesto do Partido Comunista, é aquela entre o socialismo proletário (marxista) e outros pequeno-burgueses ou mesmo burgueses e feudais –, o Presidente Gonzalo apresentou um balanço sistemático da Primeira Grande Onda, assentando que nenhum regime social precedente fez tanto, em tão pouco tempo e para tão amplas massas quanto o socialismo. Apontou a “ver o processo da revolução, não ser pessimistas, os trânsitos de um regime a outro são complexos, duros, brutais”. (III Pleno, 1992).
Dentro disso, o Presidente Gonzalo estabeleceu, com base na teoria da guerra popular do Presidente Mao, as três etapas da Revolução Proletária Mundial, e caracterizou o atual período histórico como de Ofensiva Estratégica da mesma. Aos céticos, ou empiristas empedernidos, pode soar estranho: como falar em semelhante ofensiva, em meio ao mais complexo período de contrarrevolução prolongada desde o surgimento do marxismo? Se a água está no copo, vamos bebê-la.
Do ponto de vista filosófico, já Lenin sublinhou que colocar as coisas em termos de “ou isto ou aquilo” não é dialética, mas metafísica8. A existência e o desenvolvimento da matéria se dão na forma de unidade de contrários, entendida como oposição e interdependência de um polo frente a sua negação. Não diversos em geral, mas contrários determinados, específicos, cujo nexo não é ideal, mas concreto: eis o elo que se precisa agarrar para estabelecer a qualidade e também a tendência do desenvolvimento dos fenômenos e de todas as coisas. Em “Sobre a contradição”, seguindo a picada aberta por Lenin na sua seminal leitura de Hegel, diz o Presidente Mao, sobre a negação específica:
“A dialética materialista considera que as causas externas constituem a condição de mudança, e as causas internas, sua base, e que aquelas atuam através dessas. Sob uma temperatura adequada, um ovo se transforma em pinto, mas nenhuma temperatura pode transformar uma pedra em pinto, porque suas bases são diferentes”. (Sobre a contradição).
Aqui, de forma bastante simples (aquela simplicidade rica de conteúdo que escapa ao leitor superficial do Presidente Mao), temos a diferenciação de contrários – sempre específicos, sempre concretos – e de diversos. Aqueles, condicionam-se, e, em determinadas condições, se convertem uns nos outros, reciprocamente; estes, apenas coexistem como parte do todo e sua absoluta fricção não os altera quanto à essência (embora haja ao menos um ponto de unidade entre tudo o que existe, que radica no fato de ser matéria). Para um marxista consequente, não causa estranheza, portanto, que à ofensiva estratégica da revolução corresponda um longo e complexo período de luta para derrotar a contrarrevolução, e que esta reaja com as famosas últimas forças – tão violentas quanto desesperadas – que costumam surgir aos moribundos. Sobre este tema, o Presidente Gonzalo foi bastante preciso, acerca de não confundir ofensiva estratégica com ofensiva final9. Revolução e contrarrevolução formam uma unidade de contrários – viva, real, concreta, móvel e que se devoram reciprocamente. Este processo não é linear, mas ondulatório. Há montante e jusante, há tsunamis e ressacas, e há mesmo, “eventualmente, gigantescos saltos para trás”.10 O importante é que, uma vez que o capitalismo não é eterno, a cada rodada o proletariado está mais próximo do triunfo, e a burguesia, da derrocada. Este antagonismo só desaparecerá no comunismo. Neste, todavia, extintas as revoluções políticas, haverá revoluções de outra natureza, como previu o Presidente Mao (e, por conseguinte, regressões e contrarrevoluções temporárias, nas esferas correspondentes).
No plano da luta social, já Marx analisara que a revolução abre caminho na medida em que engendra uma contrarrevolução coesa e poderosa, na luta contra a qual o partido da subversão amadurece e se converte num partido “verdadeiramente revolucionário”11. Lenin, falando sobre os primeiros anos do poder soviético, dizia que a resistência da burguesia não havia diminuído, mas “decuplicado” com seu derrocamento12. Assim, também, o Presidente Mao estabeleceu que no longo período histórico que medeia entre o capitalismo e o comunismo a luta entre o proletariado e a burguesia será longa, tortuosa e muito encarniçada13. Ora, se tal encarniçamento ocorre num país tomado isoladamente (no qual a tomada do poder não basta para assegurar de uma vez por todas “quem vencerá a quem”), qual lógica esperaria que se passasse de um modo distinto na arena mundial? Tirando as conclusões de todo este processo, o Presidente Gonzalo magistralmente estabeleceu que:
“A revolução mundial segue sendo tendência principal histórica e política, eles estão na defensiva, mas nos querem apresentar que as coisas não são assim, não lhes vamos crer; vamos entender se partirmos da posição de classe. O certo, há ofensiva contrarrevolucionária geral e durará vários anos. A etapa da ofensiva estratégica são decênios, a ofensiva contrarrevolucionária geral serão anos, antes poucos que muitos”. (III Pleno, 1992).
Com efeito, passados três decênios desde que o arauto do imperialismo, Francis Fukuyama, apregoava o “fim da história” e a “caducidade do socialismo”, vimos perante nossos olhos o mundo estremecer com o agravamento de todas as contradições da atualidade no mundo, quais sejam: a que se dá entre o imperialismo e as nações oprimidas; entre o proletariado e a burguesia e entre as próprias potências imperialistas, sendo a primeira a principal – como explicita a atual guerra na Ucrânia. As prolongadas guerras no Oriente Médio, um dos sintomas da ofensiva contrarrevolucionária desatada há três décadas, findaram com estrondosas derrotas do imperialismo ianque. Nesse contexto, as massas se levantam com enorme explosividade e reclamam direção revolucionária comunista que as dirija.
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Já falamos, acima, da Guerra Popular como espinha dorsal do marxismo-leninismo-maoismo. Aqui, cabe acrescentar que foi o Presidente Gonzalo quem primeiro definiu a sua universalidade. Tomou a experiência das lutas armadas na Europa, desde a guerra antifascista até as protagonizadas pelo ETA (Pátria Basca e Liberdade), IRA (Exército Republicano Irlandês) e Brigadas Vermelhas (na Itália). Se se retrocede para a Revolução Russa mesma, que trotskystas e outros oportunistas querem apresentar como modelo clássico da sua prédica de “acúmulo de forças sucedido por uma insurreição fulminante”, o Presidente Gonzalo bem situou que “ao fim e ao cabo, a Revolução de Outubro não foi só insurreição, senão uma guerra revolucionária que durou vários anos”14. E que, por conseguinte, “nos países imperialistas a revolução só se pode conceber como guerra revolucionária e esta hoje é simplesmente guerra popular”15. Inversamente, da própria Grande Revolução Chinesa colheu demonstrações da universalidade – e unitariedade – da Guerra Popular:
“As conquistas de grandes cidades, se deu na China ou não? Claro; Shangai – treze milhões de habitantes –, eu me pergunto: nos Estados Unidos, quantas cidades há que têm treze milhões de habitantes? Com uma maravilhosa coordenação de insurreição desde dentro com prévio envio de quadros escolhidos e mandos militares escolhidos para trabalhar em Shangai e com o avanço do exército que então já se chamava exército popular de libertação”16.
Daí, já se vê o ridículo da posição de Prachanda, que pretendia passar a pretensa “teoria da fusão” como uma das inovações do seu “socialismo do século XXI”, quando a Guerra Popular contém em si, por definição, a combinação do cerco de fora com a insurreição desde dentro. Não é só aí que a abordagem do Presidente Gonzalo e da marionete do expansionismo indiano no Nepal se mostram como diametralmente opostas. Prachanda rechaça a universalidade da guerra popular de um modo categórico, desde quando atuava como um revolucionário. Na sua Entrevista a “Obrero Revolucionário”, publicada no ano 2000, diz que, nos países imperialistas, a tarefa dos comunistas consiste em “fazer denúncias políticas do sistema, construir o partido, fazer um trabalho constante de preparação para acelerar o desenvolvimento de uma situação revolucionária objetiva e, quando tal situação se vislumbra, assestar um golpe contundente”17. No próprio Nepal, ao contrário do que ocorreu no Peru, o então Partido Comunista do Nepal (Maoista) jamais aplicou a guerra nas cidades. Desse modo, disse Prachanda, no mesmo lugar, sobre o Início da luta armada: “Consideramos que as cidades eram importantes também, não para enfrentamentos armados, mas para propaganda e trabalhos desse tipo”. Tem-se, com isso, uma visão reducionista da Guerra Popular, segundo a qual esta é circunscrita ao cerco da cidade pelo campo, quando a sua principal definição é ser uma guerra de massas dirigida pelo Partido Comunista para conquistar o Poder para o proletariado nos diferentes tipos de revoluções vigentes e para sua defesa18.
Priva-se, deste modo, a luta armada no campo de contar com a cidade como sua caixa de ressonância no sentido pleno; facilita-se ao inimigo a tarefa de isolá-la e, do mesmo modo, de golpear o trabalho urbano, o qual, desprovido do exército, torna-se presa fácil da reação; limita-se a capacidade de os maoistas deslocarem os oportunistas da direção do movimento de massas, já que o prestígio da Guerra Popular não encontra correspondência político-militar à altura nos maiores centros operários; finalmente, faz-se da cidade uma reserva potencial de direitismo no próprio Partido, pois a militância se desenvolve aí relativamente apartada das agruras e também da profunda transformação ideológica que advém da participação direta na guerra revolucionária. Ao contrário, a experiência de trabalho urbano do PCP, que os camaradas do Partido Comunista da Índia (Maoista) reconhecem como “particularmente exitosa”, uma vez que, “de fato, as favelas de Lima foram bastiões dos revolucionários durante um longo período”19, esteve sempre assentada de maneira sólida no princípio da guerra unitária, que toma o campo como principal e a cidade como complemento necessário. Este é o diferencial da sua experiência, aplicada sempre de modo consciencioso, e que confirma o juízo de que “a mais guerra popular, maior incorporação de massas”20.
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Outra distinção decisiva, que salta aos olhos se se compara o processo nepalês – que culminou na traição à revolução com os “Acordos de Paz Global” – com o da Guerra Popular no Peru, é o problema da planificação, associado ao da construção concêntrica dos três instrumentos fundamentais da revolução.
Aqui, é preciso dar um pequeno passo atrás para entender esse desenvolvimento em toda sua plenitude.
Em Seminário, ministrado a quadros do Partido em 1987, o Presidente Gonzalo, falando sobre o desenvolvimento da Filosofia Marxista pelo Presidente Mao, afirmou que a síntese da contradição como única lei fundamental da dialética materialista não esgota o desenvolvimento da mesma por ele. Sublinhou, então, as “questões referentes à liberdade”, entendida como “consciência e transformação da necessidade, sendo este o aspecto principal”21. Supera, com isso, a definição de Hegel a que Engels se refere no Anti-Dühring. Nas palavras de Engels: “Hegel foi o primeiro a expor corretamente a relação entre liberdade e necessidade. Para ele, liberdade é ter noção da necessidade”, logo completando que “…no conhecimento dessas leis e na possibilidade proporcionada por ele de fazer com que elas atuem, conforme um plano, em função de determinados fins.” (negritos nossos). Contudo, o Presidente Mao foi mais preciso, no que, secundando-o, o Presidente Gonzalo enfatiza o aspecto da transformação da necessidade como o principal. Não faltou quem acusasse o Presidente Mao de “idealista” e “voluntarista”, por colocar o acento da revolução na ação consciente do Partido, dos seus quadros e das massas, ao invés de nas “condições objetivas” – não raro, invocadas para justificar a paralisia e a renúncia subjetivas. A direita do MCI faz, hoje, as mesmas acusações ao Presidente Gonzalo e aos que etiqueta de “gonzalistas”.
Foi o próprio Presidente Mao quem disse que “um plano é uma ideologia”. Ao analisar o processo histórico da ditadura do proletariado, o Presidente Gonzalo estabeleceu que “sistema de planificação é como um sustento que permite manejar o processo econômico em função do interesse da classe com controle da ditadura e movendo as massas com homens capazes de manejar a sociedade e impor condições ao mundo, planificar suas leis, é expressão de liberdade, não títeres” (III Pleno, 1992). Uma das particularidades da construção do PCP foi a rigorosa planificação com que foi encarada, bem como dos outros dois instrumentos fundamentais da revolução que dirige (o Exército Popular e a Frente Única/Novo Estado), sempre em e para a guerra popular – que englobou desde a fundação da I Companhia da I Divisão do Exército Guerrilheiro Popular até a consigna de “Construir a Conquista do Poder”, passando pelos planos Estratégicos, a começar pela elaboração e execução do Plano de Início, chegando ao estabelecimento das bases de apoio. Não há, até aqui, processo que se equipare ao do PCP neste quesito, expressão precisa daquela capacidade de “impor condições ao mundo”. Até a captura do Presidente Gonzalo, em 1992, sempre a direção subjetiva da guerra popular se revelou superior à direção subjetiva da guerra contrarrevolucionária, no que concordam inclusive peritos da reação, insuspeitos de simpatia pelo PCP22.
Na Entrevista, acerca da planificação estratégica, do papel do cálculo na política e da construção concêntrica dos três instrumentos fundamentais da revolução, discorre o Presidente Gonzalo:
“Cada classe gera sua forma específica de guerra e, portanto, sua estratégia. O proletariado criou a sua: a guerra popular e é uma estratégia superior, a burguesia nunca poderá ter uma estratégia superior a essa, mais, não haverá estratégia mais desenvolvida que a do proletariado. É um problema de comprovação do processo militar do mundo, cada classe sempre gerou sua forma de fazer a guerra e sua estratégia, e sempre a estratégia superior venceu a inferior. A nova classe sempre tem a estratégia superior e essa é guerra popular, as provas o demonstram. Há tratadistas militares que dizem assim: os comunistas, quando aplicaram seus princípios, nunca perderam uma guerra, somente perderam quando não aplicaram seus princípios. Portanto, partimos disso, que temos uma estratégia superior como teoria provada universalmente, nosso problema era como fazer a nossa, aí está o problema, então se dá a margem de erro. A primeira coisa a que nos propusemos foi isto, a não aplicação mecânica da guerra popular, porque o Presidente Mao Tsetung nos advertiu que a aplicação mecânica leva ao oportunismo e leva à derrota. No ano de 1980, que foi quando decidimos iniciar, nós propusemos no Comitê Central do Partido ter muito presente a aplicação específica, não ao dogmatismo, não ao mecanicismo, esses foram os planteamentos, disso partimos. (…) Já tínhamos o esquema para travar uma guerra no campo e cidade. O primeiro plano que nos propusemos foi o do Início. Ao Birô Político foi encomendado de definir como desenvolver as ações armadas e foi o organismo que apresentou o plano partindo de destacamentos quanto à forma militar, esse plano o cumprimos em 1980, porém devemos dizer que, a duas semanas de iniciar, houve uma reunião do Birô Político ampliado para analisar como havíamos começado e se concluiu que o novo havia nascido e o novo era a guerra popular, eram as ações armadas, eram os destacamentos. Logo desenvolvemos o plano de Expandir, esse plano foi mais longo, abarcou dois anos, porém se cumpriu em várias campanhas, é ao término do mesmo que se concretizam as novas formas de Poder, surgem os Comitês Populares. Em fins de 1982, ingressam as forças armadas. Já com antecipação de mais de um ano, o Comitê Central havia estudado o ingresso das forças armadas e definiu que seria progressivo até substituir as forças policiais, que passariam a segundo plano, e assim aconteceu, de outra maneira não podia ser nessa situação. (…) Frente a isso tivemos uma sessão ampliada do CC, muito ampla em comparecimento e tempo, foi uma das mais longas, nela se estabeleceu o Plano de Conquistar Bases, criou-se o Exército Guerrilheiro Popular para responder a uma força que obviamente tinha um nível mais alto do que a policial, aí foi que colocamos também o problema da Frente-Estado, entre outros.”
Aqui, se vê nitidamente o desenvolvimento da Linha Política Geral – o Presidente Gonzalo dizia que o forte do PCP era a política –, cujo centro é a Linha Militar. Afinal, falar em política é falar em Poder. E, no fim das contas, os três instrumentos fundamentais da revolução (Partido, Exército e Frente Única/Novo Estado), servem ao cumprimento de uma estratégia única, cujo centro e mando absoluto é o Partido Comunista. Rechaça-se, com isso, tanto o frentismo e o militarismo – modalidades do oportunismo à direita e à “esquerda”, idênticos na medida em que negam a hegemonia do proletariado – como o espontaneísmo, que propaga a execução de uma luta armada sem rumo. A questão, colocada desde o Presidente Mao, é que sem planificação não há iniciativa23. Ora, o papel da direção é este mesmo: manter o rumo. O que se vê, da parte do Presidente Gonzalo, é uma aplicação criadora, e mesmo um desenvolvimento, inclusive no plano filosófico, deste tópico, antípoda de qualquer dogmatismo.
Muito diversa foi a concepção que aplicou o PCN (M) no Início da Guerra Popular no Nepal, em 13 de fevereiro de 1996. Na já citada entrevista a “Obrero Revolucionário”, do ano 2000, Prachanda fala que “concluímos que o processo do Início e o Primeiro Plano foram corretos, que sacudiram o país e isso se comprovou na prática… Em seguida, um mês depois do Início, elaboramos o Segundo Plano”. (Grifo nosso). Ou seja, ao contrário do que formulou e aplicou o Presidente Gonzalo, de se antecipar sempre ao inimigo, com base numa avaliação de longo prazo – e, especificamente quanto ao Plano de Início, como encadeamento com a continuidade da Guerra Popular – na experiência do Nepal apenas um mês após o Início se elaborou o segundo plano (no Peru, como vimos, o esquema da Guerra previu a entrada das Forças Armadas com dois anos de antecedência, e isso estava integrado ao cálculo do início). Mais à frente, sobre a construção do Novo Poder, o então Presidente do PCN (M) reconhece que “no princípio, não organizamos bem o poder; não estava bem planejado nem bem pensado”. Tampouco estava bem estabelecida a relação entre o Partido, o Exército e a Frente Única, o que ensejava que “ao investigar a situação, encontramos que o mando da esquadra era o líder político de fato… Ou seja, o poder estava nas mãos do mando da esquadra e não do secretário distrital ou zonal”. No que ele reconhece que: “Não era um erro dos mandos propriamente ditos, senão um problema de espontaneidade, ou seja, o exercício do poder não estava bem planejado nem foi debatido a fundo. Mas, depois a direção do Partido o debateu, e definiu as questões da frente única e do novo poder”. (Grifo nosso). Aqui, não há apenas espontaneísmo, mas, com efeito, uma visão não proletária sobre os três instrumentos fundamentais da revolução e a construção do novo poder. Afinal, se o objetivo da Guerra Popular é a conquista do Poder, o seu exercício deve ser tomado como questão candente desde o princípio mesmo. Do contrário, não estará assegurada a direção do proletariado. Do ponto de vista teórico, já o Presidente Mao estabelecera que guerra de guerrilhas e bases de apoio constituem o cerne da estratégia da guerra popular24. Essa revisão do Maoismo fica ainda mais explícita, quando Prachanda afirma, sobre o estabelecimento das bases de apoio:
“No momento em que haja instabilidade na Índia e um amplo movimento de massas favorável à guerra popular no Nepal, ademais de contradições no seio da classe dominante desse país, nesse momento podemos conquistar bases de apoio, estabelecê-las e declarar que as temos, que temos um governo”.
Essa é uma abordagem diametralmente oposta à do Presidente Mao, que estabelece como condições para o estabelecimento de bases de apoio: a existência de forças armadas populares, a derrota das forças armadas do inimigo e a mobilização das massas25. Coerente com o Presidente Mao, o PCP estabeleceu em sua Linha Militar, aprovada no I Congresso, que “o Presidente Gonzalo estabeleceu um sistema de Bases de apoio rodeado por zonas guerrilheiras, zonas de operações e pontos de ação tendo em conta as condições políticas e sociais, a tradição de luta, as características geográficas e o desenvolvimento do Partido, do Exército e das massas”. Sem dúvida, as condições políticas internacionais contam, mas o fator decisivo é interno, qual seja, a capacidade de o Partido manter a iniciativa na guerra de guerrilhas e mobilizar audazmente as massas. Mesmo aqui, antes que o tal “Caminho Prachanda” amadurecesse – ou se putrefizesse – perante o mundo, como uma nova modalidade do revisionismo “maoista”, já se nota uma das suas principais marcas (marca do revisionismo em geral): o ecletismo. Deste modo, o espontaneísmo, o direitismo e o revolucionarismo pequeno-burguês aparecem embrulhados em terminologias à primeira vista maoistas e mesmo similares aos desenvolvimentos do Pensamento Gonzalo, e é isso mesmo o que o faz tão pernicioso. Vê-se, já aqui, na abordagem sobre as bases de apoio, o embrião da formulação sobre o “Estado imperialista globalizado”, que teria tornado “obsoletas” as formulações de Lenin e do Presidente Mao sobre o imperialismo, o que nada mais era do que a “teorização” de que era impossível a revolução vencer num pequeno país como o Nepal, prenúncio da deposição das armas26. No plano filosófico, tal ecletismo se manifestou no reconhecimento tácito – cuja formulação remete à direita do PCCh – de que o principal da dialética era o conceito de que “dois compõem um”, bem como a ênfase que os dirigentes nepaleses sempre deram à negação da negação hegeliana27. Somente a ignorância, o preconceito mais obtuso ou, quiçá, a falsificação deliberada, podem pretender igualar este torpe revisionismo e os aportes de validez universal do Presidente Gonzalo.
Sobre o conteúdo dos aportes de validez universal do Presidente Gonzalo, resta ainda falar sobre o capitalismo burocrático. Conceito que surge na análise de classes da sociedade chinesa, foi generalizado pelo PCP como “o capitalismo que se desenvolve nas nações oprimidas pelo imperialismo e com diverso grau de feudalidade subjacente ou outras anteriores inclusive”28. Compreensão vital para que possamos entender a formação econômico-social das nações oprimidas nas zonas de tempestades revolucionárias da Ásia, África e América Latina; base comum para desenvolver as necessárias investigações particulares. Serve a situar o papel revolucionário do campesinato e o peso da questão agrária no mundo contemporâneo. Tudo isto, com o fito de estabelecer com exatidão os alvos e as forças motrizes da revolução democrática e as condições da sua passagem ininterrupta à revolução socialista.
O lugar do Presidente Gonzalo na história
No início dos anos de 1990, a crise econômica, social e política da sociedade peruana atingiu um nível sem precedentes. Nas eleições presidenciais de 1990, impulsionado pela campanha de boicote levada adiante pelo PCP – sob a consigna de “Eleições não, Guerra Popular sim!” – o ausentismo atingiu níveis recordes. Na disputa entre o escritor Mario Vargas Llosa, representante da direita tradicional, e o até então desconhecido Alberto Fujimori, o típico aventureiro, pescador de águas turvas, que surge em todas as épocas de crise (tal como Collor no Brasil em 1989, ambos com um discurso e programa populista e “antineoliberal”), Fujimori venceu, contando ainda com o apoio da esquerda oportunista. Empossado, praticou o que hoje se chama de “estelionato eleitoral”: aplicou de modo desapiedado o receituário do “Consenso de Washington”, condizente com os ventos contrarrevolucionários da época. Em meio a dissensões crescentes com o Congresso e o Judiciário, concentrou poderes no Executivo e governou, na prática, por meio de decretos. Os militares assumiam cada vez mais as rédeas do país, assessorados pela CIA norte-americana e pelo Mossad israelense. Vladimiro Montesinos era o homem dos aparatos clandestinos do governo – uma espécie de novo Rasputin –, responsável pelos massacres que se sucediam no campo e nas grandes favelas de Lima e outras cidades. A reação se desbragava no terrorismo de Estado, sinal do seu desespero ante o avanço pujante do PCP na própria capital; o poder fugia-lhe, ao passo que os comunistas ganhavam posições e apoio crescente na opinião pública. A guerra popular atingia o equilíbrio estratégico e se cumpria o que o Presidente Gonzalo previra no esquema do Início da Luta Armada, mais de uma década atrás: o capitalismo burocrático, em crise profunda, amadurece a revolução democrática. Crise que escalou com o autogolpe de Fujimori, em 5 de abril de 1992, com o qual as classes dominantes, reunidas em torno das Forças Armadas, buscavam livrar suas mãos da legalidade formal para assestar golpes mais duros contra a Guerra Popular. Para elas, era já tudo ou nada.
Era cenário, portanto, de grande complexidade, que confirma a já citada passagem de Marx de que a revolução avança na medida em que engendra uma contrarrevolução poderosa e unida. Seria errôneo em alto grau supor que o Presidente Gonzalo subestimou tal situação: o PCP alertou em seus documentos sobre o processo de reacionarização da sociedade peruana – resposta inevitável ao avanço da guerra popular – e do golpe militar em marcha. Expondo brilhantemente a dialética da contenda entre as duas colinas, a Chefatura do Partido e da Revolução assentou que:
“Como consequência de uma onda, se expande mais a ação revolucionária; mas as ondas não podem ser longas e sustentadas, sobretudo nas cidades; vem a contraofensiva da reação. Assim, a ação se eleva mais por ambas as partes e se entra em uma luta fluida nas cidades. Serão muitas ondas e se vai intensificar a luta, será mais dura e cruenta; o povo se fará mais forte e a reação se irá debilitando, mas aplicará mais sua abjeta violência reacionária: reprimem mais porque começam a perder. Hoje se desenvolve a concretização do equilíbrio estratégico. Finalmente, neste vai-e-vem das ondas há margem para o golpe de Estado, tempo mais, tempo menos; nos convém que seja o mais tarde possível”.29
Estudando a “reativação do fascismo” nas novas condições da sociedade peruana, enriqueceu de fato a teoria marxista-leninista-maoista sobre o tema. Disse: “A velha sociedade gera fascismo como uma expressão de sua reacionarização (não a única, pois a outra é a própria evolução reacionária do sistema demoburguês parlamentar: Estados Unidos, Inglaterra, França, países europeus), principalmente como arma quando a revolução ameaça demoli-la”30. Como se vê, seria errôneo deduzir de trechos isolados do Presidente Gonzalo que a reacionarização na contemporaneidade se daria apenas como degeneração gradual da velha democracia burguesa: essa é uma das vias, mas a reação e o imperialismo alimentam, engendram e, quando julgam necessário, utilizam-se do fascismo. No seu campo, esta é a passagem do acúmulo quantitativo para a solução de continuidade. Aquele, contudo, ao contrário do que dizem os oportunistas, tem sua base na crise geral do imperialismo; é consequência e não causa da caducidade da democracia burguesa e uma das formas de ditadura desta classe, adotada quando esta sente o poder lhe escapar das mãos. Por isso, não se deve reduzir fascismo à violência, como fazem os girondinos do movimento operário, a fim de fazer dos trabalhadores mero apêndice de uma das frações das classes dominantes, na frente única de salvação da velha ordem que sempre predicam. Na Entrevista, estabelece o Presidente Gonzalo:
“Quanto ao problema de identificar fascismo com terror, com repressão, nos parece que é um erro, o que acontece neste caso é o seguinte: se se recorda o marxismo, o Estado é a violência organizada, essa é a definição que nos dão os clássicos e todo Estado usa violência porque é ditadura, se não como contenderia para oprimir e explorar? Não poderia fazê-lo. O que acontece, em consequência, é que o fascismo desenvolve uma violência mais ampla, mais refinada, mais sinistra, porém não se pode identificar fascismo como igual à violência, é um erro crasso.”
Além da “violência mais ampla”, o Presidente Gonzalo estabelece uma série de outros componentes comuns ao fascismo – o que, no marxismo em geral, e nele em particular, jamais exclui o estudo das formas específicas, originais –, como a negação do parlamentarismo, o corporativismo e o ecletismo ideológico, uma vez que este “não tem uma filosofia definida, é uma posição filosófica feita de retalhos, colhe daqui e dali o que lhe convém”. Assim, a pregação anticapitalista, que apareceu, por exemplo, nas modalidades alemã e italiana, esteve ausente dos regimes militares latino-americanos, como os de Videla e Pinochet, para ficar em dois exemplos inquestionáveis de governos fascistas – este último fez do Chile, como se sabe, um grande laboratório da Escola de Chicago, e contou para tal com os serviços do seu epígono, Milton Friedman. Porque não é afinal o “anticapitalismo”, nem o “antissemitismo”, como querem tantos, o que é o universal aqui – por isso ausentes da categorização do Presidente Gonzalo – mas o ecletismo (estendido até ao cinismo) de tomar nas mãos o que lhe convém. Não ver deste modo, fazer leituras demasiadamente restritivas deste fenômeno social complexo, levaria a subestimar a sua importância na atualidade, desarmar o proletariado e as massas para enfrentá-lo, torná-los presas fáceis da “louca crueldade vingativa” da reação31. Não foi isso, afinal, o que nos ensinaram os camaradas Stalin e Dimitrov, no VII Congresso da Internacional Comunista. São discussões candentes, inclusive para as guerras populares em curso que enfrentam regimes fascistas ou cripto-fascistas, como o de Modi na Índia ou Erdogan na Turquia.
Se, no plano interno, o regime genocida de Fujimori e o golpe de Estado em marcha correspondiam à necessidade de centralização absoluta das classes dominantes para enfrentar a guerra popular, no plano externo, com a Perestroika, se desatara uma ofensiva geral contrarrevolucionária, convergente entre o imperialismo, o revisionismo e toda a reação, “para conjurar a revolução como tendência histórica e política principal”. Com a bancarrota da URSS revisionista, o imperialismo ianque, como nova superpotência hegemônica única, assumiu a direção desta ofensiva, de caráter geral porque “se dá em todos os planos: ideológico, político e econômico, ainda que o central seja no político”.32 Ora, nesse momento, no próprio quintal do imperialismo ianque é que se desenvolve a guerra popular no Peru, contra a qual se desfecharam forças desiguais. Assim como a derrota da primeira revolução russa em 1907 não significou a derrota da tática leninista para a revolução democrática, que triunfou dez anos depois com a mesma orientação essencial (ditadura democrática revolucionária de operários e camponeses, cujo órgão de poder eram os sovietes); do mesmo modo como a restauração capitalista na China Popular não significou a derrota das lições da Grande Revolução Cultural Proletária, mas a confirmação das advertências do Presidente Mao; a captura do Presidente Gonzalo, em 12 de setembro de 1992, e os seus dramáticos desdobramentos, foram resultado e, ao mesmo tempo, clímax da ofensiva geral contrarrevolucionária que ele mesmo havia caracterizado e previsto.
Duas semanas após sua prisão, numa casa nos subúrbios de Lima, o Presidente Gonzalo proferiu o famoso “Discurso da Jaula”, que pode ser considerado seu testamento político. Nele, definiu a sua captura como uma “volta no caminho”, conclamou os militantes do PCP e combatentes do Exército – que exortou a se converter em “Exército Popular de Libertação”, numa clara referência à crescente intervenção do imperialismo ianque – a prosseguir a guerra popular e cumprir os planos e metas do Partido até a conquista do poder em todo o país. Numa das mais altas e contundentes demonstrações de moral comunista jamais vistas na história, o Presidente Gonzalo soube falar por cima da cabeça dos seus algozes, dirigindo-se ao povo peruano e ao proletariado internacional; converteu a tentativa de humilhá-lo em uma nova derrota fragorosa da contrarrevolução. Não por acaso, os carcereiros jamais permitiram que a palavra lhe fosse concedida em público novamente. Em 2004, quando, por descuido, ou subestimação, as câmeras da televisão o flagraram ao vivo numa sessão judicial, novamente o Presidente Gonzalo se ergueu e, com os punhos em riste, agitou consignas partidárias. Após doze anos de isolamento absoluto, ele demonstrava, outra vez, sua inteireza revolucionária inquebrantável.
Na sequência da prisão, seguiu-se uma enorme campanha internacional de emergência em defesa da sua vida, levantada pelo CC do PCP e pelo Movimento Revolucionário Internacionalista (MRI). Sem dúvida, esta campanha foi parte da razão para não executar o Presidente Gonzalo, posição defendida em público por Fujimori33. Contudo, foi o imperialismo ianque e seus emissários no terreno que não permitiram que se o fizesse. Com efeito, a Direção Nacional Contra o Terrorismo (DINCOTE), força policial vinculada à CIA, e o Serviço de Inteligência Nacional (SIN), submetido ao Exército, travaram uma disputa surda pela custódia do Presidente Gonzalo, na qual aquela saiu vitoriosa. Nascia o plano de criar uma patranha – no jargão militar, uma operação psicológica – a fim de “jogar Gonzalo contra Gonzalo”. Um ano depois, durante uma reunião da ONU, o carrasco Alberto Fujimori apareceria com as apócrifas “Cartas de Paz”, atribuídas ao prisioneiro de guerra mais importante do mundo, mantido em absoluta incomunicabilidade.
Em síntese, a argumentação das “Cartas”, e de alguns outros documentos apresentados pela Linha Oportunista de Direita (LOD), já encabeçada por Elena Yparraguirre (Miriam), sob estrita direção dos serviços de inteligência inimigos, sustentava que a correlação de forças a nível internacional havia se modificado num sentido francamente desfavorável à revolução (“refluxo político geral da revolução mundial”); que, nessas condições, a revolução não tinha perspectiva de triunfo; que, com a queda do Presidente Gonzalo e da maioria do CC, a guerra popular carecia de direção proletária para prosseguir; e que, em decorrência da guerra popular, ocorrera uma modificação na estrutura agrária do Peru, viabilizando o capitalismo burocrático. Numa palavra, atribuíam ao Presidente Gonzalo a antítese perfeita do que ele sustentara no seu último discurso. Enquanto este continuava isolado, os capitulacionistas circulavam pelos presídios, realizando reuniões “partidárias” para defender o acordo de paz, com o beneplácito das forças repressivas.
De fato, a maquinação policial ancorava-se na ação nefasta – convergente – do revisionismo, dentro e fora do Peru. Tão logo Fujimori alardeou a patranha, o PCR-USA, dirigido por Bob Avakian, fez com que o Comitê de Organização do MRI (COMRI) suspendesse a “Campanha de Emergência”, em nome de “investigar a real posição do Presidente Gonzalo”, embora o Comitê Central de Emergência do PCP, então sob direção de Feliciano, rechaçasse semelhante suposição34. Começava aí a tentativa de assassinar a obra do Presidente Gonzalo, acusado de “direitista” pelos mesmos direitistas contumazes que se opunham à síntese e ao desenvolvimento do maoismo forjados na guerra popular do Peru. Quando, anos depois, Prachanda, em liberdade, encabeçou a traição da guerra popular do Nepal, do qual viria a ser Primeiro-Ministro, os mesmos “catedráticos” do MRI que se apressaram em tachar o Presidente Gonzalo como membro da LOD, demoraram vários anos para tecer comentários públicos sobre o episódio. O MRI, enquanto organização, morreu sem fazê-lo.
Basta comparar o destino do Presidente Gonzalo com o dos capituladores das lutas armadas para constatar o abismo que os separa. De um, Prachanda, já falamos. Poderíamos citar Nelson Mandela, o qual, após mudar de posição, foi ungido em herói nacional sul-africano e mundial; o tal “Subcomandante Marcos”, do EZLN (México), que se tornou quase um ícone pop ao defender uma “solução democrática” para o problema camponês no México; Daniel Ortega, “ex-guerrilheiro” da Frente Sandinista da Nicarágua, atual presidente deste país; Petro, outro ex-guerrilheiro recém-eleito presidente da Colômbia; e tantos outros. A reação utiliza os préstimos desses “vira-casacas” e, em troca, costuma estender-lhes os tapetes vermelhos. Se a proposição da LOD no Peru, de lograr uma “solução política para os problemas derivados da guerra”, fracassou, e suas cabecilhas, embora alquebradas, morrerão na cadeia, isto se deve a que o Presidente Gonzalo não só não aderiu como rechaçou até o fim semelhante posição. Com o preço da própria vida, ajudou com seu exemplo a sustentar a guerra popular contra o vento e a maré. Da sua boca, a reação nunca arrancou nem uma vírgula sequer que servisse aos seus desígnios. Isto é um fato. E, se alguém se pretende comunista, mas opta pelas conjecturas, revela com isso a sua própria capitulação frente ao inimigo de classe.
Condenado à prisão perpétua, alvo da mais odiosa campanha de difamação perpetrada por assassinos vis, em cujos uniformes e togas impregnava-se o cheiro das câmaras de tortura e das valas comuns, as poucas imagens recentes do Presidente Gonzalo mostram-no sempre numa posição de dignidade frente aos juízes e carcereiros. A conservação da sua sanidade já é um feito extraordinário – talvez tenha sido o prisioneiro mantido por mais longo tempo em isolamento total na história – e uma outra prova da sua integridade revolucionária. Há um conhecido relato de Ulrike Meinhof, dirigente da Fração do Exército Vermelho (RAF) da Alemanha Ocidental, sobre a sua detenção, no início dos anos de 1970, na chamada ‘Ala morta’ (Toter Trakt) do presídio de segurança máxima, na qual as celas tinham isolamento acústico para tornar ainda mais drástico o isolamento. Ela descreveu:
sensação de cabeça explodindo
(a sensação de que o crânio arrebenta, vai aos ares)
sensação de que a medula é empurrada até o cérebro,
sensação de que o cérebro encolhe como uma fruta seca
sensação de estar o tempo todo ligado na tomada,
de ser teleguiado-
sensação de que as sensações fogem-
sensação de estar mijando a alma para fora do corpo, como quando não se consegue mais segurar-
sensação de que a cela está andando. Acordo, abro os olhos: a cela está andando; à tarde, quando o sol brilha, ela para de repente. Não dá para controlar a sensação de movimento. Não dá para esclarecer se trememos de febre ou de frio, não dá para esclarecer por que trememos – sentimos frio
Alguém que tivesse abjurado da ideologia do proletariado, suportaria semelhante prova, não por um, cinco ou dez, mas por vinte e nove anos? O homem Abimael Guzmán não foi como Galileu, que na hora extrema dobrou os joelhos; mas como Giordano Bruno, que levou, com pleno conhecimento de causa, a sua convicção até o sacrifício máximo. Este se consumou em 11 de setembro de 2021, quando um oportunista, Pedro Castillo, apoiado pelo Movadef (Movimento pela Anistia e Direitos Fundamentais, dirigido pela capituladora Miriam), presidia o velho Estado peruano. Se ainda uma última prova fosse requerida da sua posição irreconciliável frente à LOD, ei-la aí. Cientes de que a sepultura do maior comunista da época viraria destino de homenagens e celebrações, o Congresso peruano aprovou às pressas uma lei, válida de modo retroativo, para cremar e desaparecer com seu corpo. Contra o pensamento que ele legou às novas gerações, no entanto, todas as suas mentiras e munições (doces ou de aço) são impotentes: este é imortal.
Falando diante da sepultura de Marx, Engels dizia que o seu camarada “era o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo”. A sua prédica, sustentada por quarenta anos, do triunfo da revolução proletária, parecia, aos olhos dos “companheiros de viagem”, no melhor dos casos, distante; no pior, equivocada. Os frutos das suas previsões rebentariam maduros no século XX. Hoje, podemos dizer que o marxismo-leninismo-maoismo, principalmente maoismo, aportes de validez universal do Presidente Gonzalo (“o homem mais odiado e mais caluniado” deste tempo) é o marxismo da época das guerras populares, quando a crise de decomposição do imperialismo chegou a um estágio sem precedentes; da luta sem quartel e onímoda contra o revisionismo de toda estirpe; época em que o imperialismo será varrido da face da Terra pela guerra popular mundial. Sob os seus auspícios, o movimento comunista põe-se de pé para dirigir a nova grande onda da revolução proletária mundial em marcha. Como em todo processo social – e isso vale para o próprio marxismo – há os que veem primeiro e vão na frente; há os que se quedam indecisos, esperando “ver para crer”; e há os que se opõem ao avanço. Daqui a dez mil anos seguirá sendo assim. Não há que maldizer, portanto; há que trabalhar. A despeito dos ataques, e da descrença, o que é verdadeiro persiste, abre caminho e triunfa: comprova-o o trilho largo da história.
Nucleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo, Brasil, 2023.
1O Título e a pequena estrutura material à época, princípio da década dos anos de 1980, fora comprado da “Esquerda Unida”, aglomerado de tendências oportunistas eleitoreiras.
2 “Foi Marx quem, ao tomar a ideia como derivação da matéria, fundindo a dialética com a matéria, deu a grande transformação que gerou a nova filosofia, a cabal e completa filosofia, não no sentido fechado, por isso é que não podemos falar de sistema, sistema implica círculo fechado e o conhecimento é espiral, todos se recordam do que é uma espiral, não é um círculo fechado e nem tampouco os círculos que conformam a espiral são fechados, tampouco é certo isso, não são”. (I Congresso do PCP, grifo nosso). Bela refutação aos dogmáticos!
3 PCP, “Sobre campanha de retificação com ‘Eleições, não! Guerra Popular, sim!’”, 1991.
4 “Mas, na Alemanha, onde está a possibilidade efetiva de emancipação? Aqui está a nossa resposta: na constituição de uma classe que tenha esferas radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja somente uma classe da sociedade civil, de uma classe que seja a dissolução de todas as classes, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir o título histórico, mas o título humano. (…) Finalmente, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem as emancipar a todas – o que é, em resumo, a perda total da humanidade, assim, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado”.(K. Marx, “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel”).
5 “Quando disparamos uma flecha, devemos dirigi-la contra o alvo. A flecha está para o alvo assim como o Marxismo-Leninismo está para a revolução chinesa. Alguns camaradas, porém, ‘disparam sem ser contra o alvo’, disparam à toa. As pessoas assim arriscam-se a prejudicar a revolução. Outros contentam-se em virar e revirar a flecha entre os dedos, exclamando: ‘Que bela flecha! Que bela flecha!’ mas não tem a menor intenção de fazer o disparo. Não são no fundo mais que apreciadores de antiguidades, nada quase têm a ver com a revolução. A flecha do Marxismo-Leninismo deve ser usada para disparar sobre o alvo que é a revolução chinesa. Enquanto esse ponto não ficar esclarecido, o nível teórico do nosso Partido jamais poderá elevar-se e a revolução chinesa triunfar”. (P. Mao, “Retifiquemos o estilo de trabalho no Partido”, Tomo III).
6 Para maior fundamentação sobre este tema, conferir o artigo “Guerra Popular e Revolução”, de autoria do Partido Comunista do Brasil – Fração Vermelha (PCB-FV), publicado na revista “El Maoista”, n.1, de setembro de 2016.
7 Na Entrevista: “Lenin já nos advertiu contra o problema da negação dos chefes, assim como destacou a necessidade de que a classe, o Partido, a revolução promovam seus próprios dirigentes, mais dirigentes a chefes e a Chefatura. Há uma diferença que vale ressaltar, dirigente é um cargo orgânico, enquanto chefes e Chefatura nós entendemos como reconhecimento de autoridade partidária e revolucionária, adquirida e provada em longa briga, dos que na teoria e na prática demonstram que são capazes de encabeçar-nos e guiar-nos até o avanço e a vitória na consecução de nossos ideais de classe.”
8“A representação habitual capta a diferença e a contradição, mas não a transição de uma para a outra, e isto é o mais importante”.(Lenin, “Resumo do livro de Hegel ‘Ciência da Lógica’”, grifos de Lenin).
9“Nossa posição é que estamos na ofensiva estratégica da revolução mundial, não dizemos que já estamos na ofensiva final; ademais, concebemos que a ofensiva estratégica da revolução mundial se dá através de um processo longo, não curto, e, mais ainda, em meio de grandes ziguezagues e até retrocessos.” (PCP, “Sobre campanha de retificação…”, 1991).
10“É antidialético, anticientífico e teoricamente errado imaginar a história universal como um movimento que se processe de maneira harmoniosa e precisa, sem, eventualmente, gigantescos saltos para trás”. (Lenin, citado em “Materialismo Dialético”, Academia de Ciências da URSS, 1954).
11“Numa palavra: o progresso revolucionário não abriu caminho através das suas tragicômicas conquistas diretas, mas, pelo contrário, foi engendrando uma contrarrevolução cerrada e potente, gerando e combatendo um adversário que o partido da subversão pode finalmente converter-se em um partido verdadeiramente revolucionário”. (Marx, “As lutas de classes na França, de 1848 a 1850”).
12“A ditadura do proletariado é a guerra mais abnegada e mais implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, contra a burguesia, cuja resistência é decuplicada pelo seu derrubamento (ainda que num só país) e cujo poderio reside não só na força do capital internacional, na força e na solidez das relações internacionais da burguesia, mas também na força do costume, na força da pequena produção. Porque, infelizmente, resta ainda no mundo muita, muitíssima pequena produção, e a pequena produção gera capitalismo e burguesia constantemente, em cada dia, em cada hora, de forma espontânea e a uma escala maciça. Por todas estas causas, a ditadura do proletariado é necessária, e a vitória sobre a burguesia é impossível sem uma guerra prolongada, tenaz, desesperada, de vida ou de morte; uma guerra que exige tenacidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e unidade de vontade”. (Lenin, “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, grifos de Lenin).
13“A luta de classes entre o proletariado e a burguesia, entre as diversas forças políticas, bem como, no plano ideológico, entre o proletariado e a burguesia, será ainda prolongada e sinuosa e, por vezes, se tornará inclusive muito encarniçada. O proletariado procura transformar o universo conforme a sua concepção do mundo e o mesmo se passa com a burguesia. A este respeito, a questão de saber quem vencerá, se o socialismo ou o capitalismo, não está verdadeiramente decidida”. (Mao Tsetung, “Sobre o tratamento correto das contradições no seio do povo”, Obras Escolhidas, Tomo V).
14 PCP, “Sobre o Marxismo-Leninismo-Maoismo”, 1988.
15 Idem.
16 Presidente Gonzalo, Intervenção no I Congresso.
17 “Dentro da revolução no Nepal: Entrevista ao Camarada Prachanda”, revista “Obrero Revolucionário”, fevereiro de 2000.
18 “A Guerra Popular tal como na experiência da Revolução Chinesa, quando e como a formulou o Presidente Mao e confirmada nas diversas tentativas em levá-la a termo nas décadas finais do Século XX e inícios do século presente é a guerra de massas dirigida de forma absoluta pelo Partido Comunista”. Artigo “Guerra Popular e Revolução”, Partido Comunista do Brasil – Fração Vermelha (PCB-FV), Revista El Maoista n.1.
19 “Nosso trabalho nas zonas urbanas”. Partido Comunista da Índia (Maoista), 2004.
20 PCP, “Linha de massas”, 1988.
21 “O P. Mao planteia que a única lei é a contradição e as outras são derivações. Com o P. Mao se chega ao monismo filosófico; a única lei. Isto não implica que o sistema se tenha concluído. Questões referentes à liberdade, por um lado é consciência da necessidade e o outro aspecto é a transformação da necessidade e este é o principal”. (Seminário de Filosofia, 1987). Nota-se que o Presidente Gonzalo usa aqui o termo “sistema”, mas não em sentido fechado, ou seja: não se trata de um sistema propriamente dito, claro, está falando da doutrina.
22 “Ao preparar o terreno político para sua campanha militar antes de iniciá-la com suas primeiras ações armadas, o Sendero Luminoso não só conseguiu manter a iniciativa desde o início da luta, como também assegurou que o governo central encontrasse bastante dificuldade nas suas tentativas de retomar a sua posição vantajosa. Desde o início o regime apenas tem reagido a iniciativas senderistas, que seguem o seu plano à risca”. Gordon H. McCormick,Professor do Departamento de Análise de Defesa da Escola Naval de Pós-Graduação em Monterey, Califórnia. “Da Sierra até as Cidades, A Campanha Urbana do Sendero Luminoso (1991)”. Grifo nosso
23 “Efetivamente, a iniciativa é o resultado duma apreciação correta da situação (a nossa e a do inimigo) e da adoção de disposições justas nos planos político e militar. Uma apreciação pessimista da situação, em desacordo com as condições objetivas, e a adoção de medidas de caráter não ativo que se lhe segue, provoca indubitavelmente a perda da iniciativa e leva a uma situação de passividade. Por outro lado, uma apreciação exageradamente otimista da situação, em desacordo com as condições objetivas, e a adoção de disposições aventureiras (riscos desnecessários) que se lhe segue, provoca também uma perda da iniciativa e leva, por fim, a uma posição semelhante à dos pessimistas. A iniciativa não é o dom natural dum gênio, mas sim algo que um chefe inteligente alcança através de um estudo realizado com modéstia, duma correta apreciação das condições objetivas, e através da adoção de disposições militares e políticas justas. Por consequência, a iniciativa não é qualquer coisa já feita, mas sim algo cuja obtenção requer um esforço consciente”. (Presidente Mao, “Problemas estratégicos da guerra de guerrilhas contra o Japão”, Obras escolhidas, Tomo II).
24 “Sem essas bases estratégicas, nada haveria em que pudéssemos apoiar-nos para cumprir as nossas tarefas estratégicas e atingir o objetivo da guerra. Como as forças de guerrilhas estão separadas da retaguarda geral do país, uma das características da guerra de guerrilhas na retaguarda inimiga consiste em combater sem retaguarda. Mas as guerrilhas não podem manter-se por longo tempo nem ampliar-se se não tiverem bases de apoio que constituem a sua própria retaguarda”. (Idem).
25 “As condições fundamentais para a criação de bases de apoio são a existência de forças armadas antijaponesas, a utilização dessas forças armadas para a derrota do inimigo e a mobilização das massas populares. Assim, o problema da criação de bases de apoio é, antes de mais nada, um problema de criação de forças armadas”. (Idem).
26 Conferir entrevista especial de Prachanda ao jornal Janadesch, de fevereiro de 2006, em celebração dos dez anos da guerra popular, publicada sob o título de “Desfraldar a bandeira revolucionária no Monte Everest no século XXI”.
27 “Consideramos que em geral, no passado o movimento comunista internacional não captou a totalidade desta lei da dialética. No passado, nossa classe prestou mais atenção a ‘um se divide em dois’ e o está fazendo na atualidade, porém consciente ou inconscientemente, não tem compreendido e aplicado na prática como aspecto principal a transformação de um aspecto em seu contrário… Em outras palavras, nossa classe praticou a unidade-luta-divisão, não a unidade-luta-transformação.”Conferir “Cartas entre o PCR-USA e o PCN(M)”, publicadas na página WEB Revolution. Não se vê que a transformação, isto é, o automovimento, tem como premissa, exatamente, a contradição. A transformação, ou o novo, não é um terceiro, “reunião” dos contendentes anteriores, mas a vitória de um aspecto sobre o seu contrário. Esta compreensão foi enfatizada no marxismo pelo Presidente Mao.
28 PCP, “Sobre o marxismo-leninismo-maoismo”.
29PCP, “Que o equilíbrio estratégico remexa mais o país”, 1991. Grifo nosso.
30 Idem. Grifo nosso.
31No Prefácio à Edição de 1891 de “Guerra civil em França”, Engels assinala, comparando 1848 e 1871: “Era a primeira vez que a burguesia mostrava até que louca crueldade vingativa é levada, logo que o proletariado ousa surgir face a ela como classe à parte, com interesses e reivindicações próprios. E, ainda assim, 1848 foi uma brincadeira de crianças, perante a sua ira de 1871”.
32 PCP: “Sobre campanha de retificação com ‘Eleições, não! Guerra Popular, Sim’”, 1991.
33 O jornal “La Republica”, de 29 de setembro de 1992, trazia a seguinte declaração de Fujimori: “Eu sou partidário de que se aplique a pena de morte e nisto sei que o povo está de acordo.”
34 A própria tradição do movimento comunista internacional, erigida em norma pelo Socorro Vermelho Internacional, vinculado à Cominter, estabelece que não se deve duvidar da condição de um prisioneiro a menos que se tenha provas irrefutáveis a respeito, mormente, em casos de isolamento.