Contra Losurdo (Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo, 2023) [atualizado]
Nota do Blog: É com satisfação que publicamos em primeira mão esta crítica do Núcleo de Estudos do MLM contra o revisionista Domenico Losurdo. A crítica desmascara a posição revisionista e terceiromundista de D. Losurdo e é importante e relevante no cenário atual em que a obra do italiano tem sido muito influente no pensamento de parte da “esquerda” oportunista e revisionista no Brasil. É dever dos verdadeiros marxistas combatê-lo.
Revisão 12 de Setembro: A pedido do autor, alguns trechos foram modificados.
Proletários de todos os países, uni-vos!
Contra Losurdo
Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoismo
“Se os revisionistas chegam a usurpar a direção na China, os marxistas-leninistas de todos os países deverão denunciá-los e combatê-los com firmeza, ajudando à classe operária e às massas populares chinesas a se oporem ao revisionismo.”
Presidente Mao Tsetung
Introdução: Sobre gatos e ratos
No final de novembro de 2022, a China foi sacudida pelas maiores manifestações de massas desde os episódios que culminaram no massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Em luta contra um interminável estado de sítio apelidado “política de Covid zero”, milhões de operários se rebelaram contra as draconianas restrições policiais, rompendo o sequestro a que estavam submetidos, não raro, dentro das próprias unidades fabris. Tais manifestações, que já seriam suficientes, per si, para encher de esperança os corações dos revolucionários e povos oprimidos de todo o mundo, foram ainda mais significativas por ocorrerem apenas algumas semanas após o término do XX Congresso do revisionista Partido Comunista da China, que consagrou um novo mandato (na prática, vitalício) a Xi Jinping, cujas ideias são apresentadas pela imprensa oficial daquele país, e pelos seus sequazes no estrangeiro, como “o maior líder da China desde Mao Tsetung”. Uma pretensa tese! As massas rebeladas, que erguem cartazes com fotografias do Presidente Mao contra o tirânico regime social-fascista, fazem naufragar semelhante afirmação qual um castelo de cartas. Ao contrário do que afirmam os intelectuais a soldo, sempre à busca de um bastão de mando, numa cruzada por reabilitar o há pouco completamente desacreditado “socialismo de mercado” chinês, Xi Jinping é, no máximo, candidato a novo Chiang Kai-Shek – embora seja preciso aguardar mais tempo para verificar se aquele durará tanto quanto este na cabecilha da contrarrevolução.
Nesse sentido, é mais do que oportuno, é necessário, criticar aqueles que buscam defender o regime chupa-sangue dos operários chineses, como se este fosse a continuidade da República Popular fundada pelo Presidente Mao em 1949. Tal “defesa do socialismo” é, sob muitos aspectos, mais nociva e desprestigia mais o marxismo que um ataque aberto vindo do campo reacionário. É este, precisamente, o ponto de vista adotado pelo historiador italiano Domenico Losurdo, falecido em 2018. Arvorando-se em crítico do liberalismo, ele pratica de fato uma junção de revisionismo clássico – como o de Bernstein e Kautsky – com revisionismo moderno, do tipo de Kruschov e Teng Siao-ping. Não o faz de modo discreto: veremos que o declara. Àqueles que o tomam como sério marxista pelas críticas que empreende ao colonialismo e a certos aspectos doutrinários do liberalismo, lembramos que a crítica da burguesia desde o ponto de vista do proletariado (isto é, desde o ponto de vista marxista) é apenas uma das críticas possíveis ao capitalismo. Há tantos “socialismos” quanto se queira na face da Terra, inclusive reacionários, como Marx e Engels já assinalaram no Manifesto do Partido Comunista. Dizer, como os revisionistas, que pouco importa a cor de um gato desde que ele cace ratos é errado aqui como em quaisquer outros lugares: assinalar por quais meios se pretende caçar, e se se caça de fato o rato imperialista, e também o que se pretende colocar no seu lugar, eis a quintessência do marxismo, que é o problema do Poder. A máxima, “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” é uma falsa teoria, pragmática e reformista, e não dialética e revolucionária. Foi esta a base filosófica da chamada “teoria dos três mundos”, formulada por Teng Siao-ping após a morte do Presidente Mao e do golpe de Estado de 6 de outubro de 1976, que o renegado e traidor Teng debita ser da autoria do Grande Timoneiro, quando em verdade este, ao analisar a situação mundial em sua época, apenas afirmou que “delineia-se três mundos”, revelando contradições no imperialismo ao mostrar a diferenciação entre superpotências e potências no seu campo, o que nada tem a ver com a podre “teoria” daquele visando, em síntese, retirar a base de classe da questão nacional e justificar a aproximação da China com o imperialismo norte-americano.
O revisionista Losurdo busca fundamentar as suas posições terceiro-mundistas e social-democratas através de um caminho sinuoso, e suas conclusões, nem sempre claras, vêm embrulhadas em análises documentais à primeira vista objetivas. Tomar, portanto, um trabalho em que ele aborda de modo mais direto a política – e que é, ademais, texto da maturidade do autor, que indica o culminar das suas pesquisas – será útil para fazer vir à tona toda a imundície submergida em camadas de citações e referências, as quais, não raro, ele tortura e picota até que confessem. Pois sim, também veremos que tipo de lógica bastante particular ele pratica no seu texto.
Atribui-se a Bismarck a fala de que as leis são como salsichas: é melhor que ninguém saiba como elas são feitas. Veremos, a seguir, a que tipo de expedientes Losurdo recorre para fabricar os seus embutidos ideológicos, que seriam, sem dúvida, apreciados na China de Xi.
“Como nasceu e como morreu o ‘marxismo ocidental’”
Este é o título do artigo de Domenico Losurdo publicado originalmente em 2008, e desdobrado, mais tarde, em livro à partei. Na introdução, ele apresenta seus problemas:
“Por muito tempo o ‘marxismo ocidental’ celebrou a sua superioridade em relação ao marxismo dos países que se remetiam ao socialismo e que estavam todos situados no Oriente. Em decorrência dessa atitude arrogante, o marxismo ocidental nunca se empenhou seriamente em repensar a teoria de Marx à luz de um balanço histórico concreto: qual era o papel do Estado e da nação nesses países e no ‘campo socialista’? Como promover a democracia e os direitos humanos e como estimular o desenvolvimento das forças produtivas e o bem-estar das massas numa situação caracterizada pelo bloqueio capitalista? Ao invés de pôr-se essas questões difíceis, o marxismo ocidental preferiu abandonar-se à cômoda atitude autoconsolatória de quem cultiva em particular as suas utopias e rejeita, como uma contaminação, o contato com a realidade e a reflexão sobre a realidade. Disso derivou uma progressiva capitulação à ideologia dominante. Por fim, a autocelebração do marxismo ocidental desembocou na sua autodissolução.” (Negrito nosso).
Nesta citação, já se verifica a mixórdia categorial – ou talvez simplesmente a miséria intelectual – do autor. Comecemos pela lógica. Que categoria é esta, “marxismo ocidental”, que aparece oras com, oras sem aspas? Recurso no mínimo questionável quanto à estrutura expositiva, guarda de fato uma função positiva para o autor, pois é esta a clivagem que sustentará todo o trabalho. Tal simplificação, permite-lhe, por exemplo, equiparar o Presidente Mao, Ho Chi Minh, Fidel Castro e Teng Siao Ping, ignorando as brutais distinções – ideológicas, políticas e históricas – dos processos que encabeçam, distinções que têm na sua base diferentes posições de classe, as quais, não raro, chegam ao antagonismo: como se poderia igualar o Presidente Mao a Teng, os guardas vermelhos e os verdugos da Grande Revolução Cultural Proletária? A concepção que embasou a Longa Marcha e a Frente Única Antijaponesa com o “foquismo” cubano? Em suma, com esta operação lógica, o autor apaga as profundas linhas demarcatórias que há entre marxismo e revisionismo, revolução e contrarrevolução, dentro do que ele empacota como um único campo de “marxismo oriental”. Esse é um erro de premissa, que bastaria para estragar os frutos que porventura nascessem dessa árvore envenenada.
Esta mesma operação arbitrária permite agrupar do lado “Ocidental” posições tão distintas entre si como as de Theodor Adorno, Norberto Bobbio, Michel Foucalt, Antonio Negri, Louis Althusser e outros, vários dos quais, note-se, não só não desempenhavam nenhum papel de relevo no movimento operário de seus países (ao contrário dos seus “equivalentes” a Leste) como nem sequer se reivindicavam marxistas! Quanto aos dirigentes revisionistas dos partidos comunistas europeus, como Palmiro Togliatti, veremos que Losurdo não apenas não os censura, como os alinha, condescendentemente, ao lado dos “orientais”ii. De um lado, dirigentes de partidos poderosos, ao menos proclamados comunistas; de outro, intelectuais, com diferentes posições, alguns dos quais nem sequer se reivindicavam marxistas. Não há equivalência nem de posição, nem de situação nem de coisa alguma. O que há, aqui, é um puro idealismo lógico, construído a priori pelo autor para justificar a sua tese.
Ocorre que tal artifício lógico – que facilmente se confunde com rigor metodológico, pois vem embrulhado em montes de referências teóricas, que não guardam, no entanto, qualquer coerência interna – está a serviço de um propósito político, como sói ocorrer. Ao construir tal dicotomia, entre um dito “marxismo ocidental” e um outro “marxismo oriental”, este senhor parece desconhecer uma tese bastante antiga no marxismo, válida para todos os hemisférios: a de que a primeira demarcação a ser feita no seio do movimento operário é aquela entre marxismo e revisionismo, como nos prescreve Lenin, já em seu “Marxismo e revisionismo”:
“O caráter inevitável do revisionismo é determinado pelas suas raízes de classe na sociedade atual. O revisionismo é um fenômeno internacional. (…) A ‘divisão’ no seio do socialismo internacional contemporâneo estabelece-se hoje, nos diversos países do mundo, essencialmente, numa mesma linha, o que mostra um formidável passo em frente que se deu em comparação com o que ocorria há trinta ou quarenta anos, quando lutavam nos diversos países tendências heterogêneas dentro de um movimento socialista internacional único.” (Negrito nosso).
Como se depreende da citação de Lenin, a distinção entre marxismo e revisionismo – isto é, a castração burguesa do marxismo, a negação do que ele tem de diretamente revolucionário – é uma questão posta para todos os países. E isto Lenin escreveu antes da guerra imperialista, quando a necessidade da cisão contra os oportunistas se colocou de modo agudo e como tarefa do dia para os comunistas em todos os países, tanto nas metrópoles como nas colônias e semicolônias do imperialismo; época em ele escreveu em “O Estado e a revolução”, às vésperas da tomada do poder em Petrogrado, onde afirma:
“Quem reconhece unicamente a luta de classes, esse ainda não é marxista, esse pode encontrar-se ainda dentro dos limites do pensamento burguês e da política burguesa. Limitar o marxismo à doutrina da luta de classes significa truncar o marxismo, deturpá-lo, reduzi-lo ao que é aceitável para a burguesia. Só é marxista aquele que estende o reconhecimento da luta de classes até ao reconhecimento da ditadura do proletariado. Nisto consiste a diferença mais profunda entre o marxista e o vulgar pequeno (e também grande) burguês. É nesta pedra de toque que é preciso experimentar a compreensão e o reconhecimento efetivos do marxismo.” (Grifos de Lenin).
Questão crucial, uma vez que Losurdo colocou como duas questões centrais a serem respondidas, exatamente 1) o problema do Estado, e 2) da relação, nos países socialistas, entre a promoção da “democracia e direitos humanos”, por um lado, e o avanço das forças produtivas, de outro. Na verdade, é preciso precisar que não são duas, mas uma questão só: o marxismo rechaça a própria colocação do problema “democrático” em geral. Levantar o problema do Estado e da ditadura é levantar, por consequência, o problema da democracia e da ditadura de um modo concreto, econômica, política e ideologicamente. Como dizia Lenin, “é natural para um liberal falar de ‘democracia em geral’. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: ‘para que classe?’”iii. Daí se depreende que, para o marxismo, é uma impossibilidade a própria colocação das duas questões – Estado e democracia ou Estado e ditadura, é o mesmo – em separado. Aceita esta premissa, a conclusão de Lenin se impõe de maneira incontornável: não estender o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado é manter-se no ponto de vista da burguesia, castrar o marxismo do que é inaceitável para ela. Quanto ao problema da relação entre a superestrutura e as forças produtivas na sociedade socialista, ele está no cerne da nossa polêmica e o abordaremos mais à frente.
“O marxismo ‘ocidental’ e a remoção da questão colonial”
Nesta seção, o autor problematiza as causas que levaram ao ocaso do tal “marxismo ocidental”:
“Por que o marxismo ocidental, após desfrutar de um sucesso extraordinário até se tornar a koiné das décadas de 1960 e 1970, mergulhou numa crise tão profunda? Sem dúvida, os fatos históricos que todos conhecemos e que culminaram com a queda da União Soviética e do ‘bloco socialista’ desempenharam neste caso um papel fundamental.”
“Fatos históricos que todos conhecemos” é um belo artifício para não mencionar em momento algum o XX Congresso do Partido Comunista na União Soviética (1956), a restauração capitalista naquele país e a Grande Polêmica empreendida pelo Partido Comunista da China e o Presidente Mao contra o revisionismo moderno. Claro, isto desmontaria toda a urdidura “lógica” do autor, que agrupa de um lado, do mesmo lado, tanto uma posição como outra, isto é, uma contrarrevolucionária burguesa e outra revolucionária proletária.
É aí onde aparece a já referida menção positiva a Togliatti – um Togliati ideologicamente “orientalizado”. Ocorre que, sem entender as raízes do revisionismo moderno, que fez o primeiro ensaio com Tito na Iugoslávia e, depois, com a ascensão de Kruschov, levantou de vez a cabeça nos partidos comunistas do chamado mundo ocidental (tendo em Togliatti um dos seus mais notórios expoentes) a luta de morte travada no seio do movimento operário no interior destes mesmos países se torna incompreensível. Mas Losurdo está convencido de que esta não é a questão central, uma vez que ele afirma que “o fato é que, embora apresentando-se cada vez de maneira diferente, a remoção da questão colonial caracteriza amplamente o marxismo ocidental daqueles anos.”
Sobre a conciliação de classes dos “chefes” revisionistas com a grande burguesia na frente interna, que conduz necessária e objetivamente a que se capitule perante o imperialismo na frente externa, não há nenhuma palavra! Como qualquer pessoa que tenha tido contato com as primeiras letras do marxismo sabe, desde Marx sempre se abordou o movimento de libertação nacional nas colônias como parte inseparável da luta revolucionária do proletariado contra a “sua” burguesia nas metrópoles. As passagens em que Marx e Engels o afirmam são realmente incontáveis. Citemos, a título de exemplo, uma intervenção de Marx no Conselho Geral da I Internacional sobre a questão irlandesa:
“Eis porque a Internacional deve sempre dar prioridade ao conflito entre a Inglaterra e a Irlanda, tomando abertamente o partido desta última. A tarefa especial do Conselho Geral em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela uma abstrata questão de justiça e de humanitarismo, mas a condição primeira de sua própria emancipação social.”iv (Negrito nosso)
Em carta a Kugelmann, Marx detalha ainda mais seu ponto de vista:
“Pouco a pouco cheguei à convicção, falta apenas inculcá-la na classe operária inglesa, de que ela nada poderá fazer de decisivo, aqui na Inglaterra, enquanto não romper da maneira mais clara, em sua política irlandesa, com a política das classes dominantes; enquanto não associar seus interesses aos dos irlandeses, também não tomará a iniciativa de dissolução da União forçada de 1801 e de sua substituição por uma confederação igualitária e livre. É preciso visar esta meta, não por simpatia à Irlanda, mas como uma reivindicação no próprio interesse do proletariado inglês.”v (Negrito nosso).
Lenin também não dissocia revisionismo de chauvinismo: para ele, este é uma das mais típicas manifestações daquele. É na polêmica com os partidos oportunistas da II Internacional que ele cunha a expressão “social-imperialismo”, isto é, aqueles que são socialistas de palavras e imperialistas de fato. A oitava das célebres vinte e uma condições para admissão na Internacional Comunista, redigidas por Lenin e aprovadas no seu Segundo Congresso (1920), estabeleciam de modo taxativo que só seriam aceitos os partidos dos países imperialistas que apoiassem em palavras e em atos as lutas de libertação dos povos oprimidosvi.
O Presidente Mao é coerente com Marx e Lenin. Muito a propósito, assentou que “a influência burguesa é a fonte interna do revisionismo, e a capitulação ante a pressão do imperialismo a sua fonte externa.”vii Numa intervenção sobre a luta do povo negro norte-americano, que Losurdo cita nesta seção, ele diz: “O perverso sistema colonial-imperialista desenvolveu-se graças à escravidão e ao tráfico negreiro, e ele certamente chegará ao fim com a total libertação dos negros”. Losurdo emenda esta citação do Presidente Mao com uma denúncia de Ho Chi Minh sobre a desigualdade jurídica a que eram submetidos os anamitas pela justiça francesa no Vietnã em 1920 (“A chamada justiça indochinesa, naquela região, tem dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias dos europeus e dos europeizados. Não são apenas vergonhosamente oprimidos e explorados mas também horrivelmente martirizados e sofrem ‘’todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital’”) e afirma a seguir:
“Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e de Ho Chin Minh, a libertas minor tão cara a Della Volpe não é subestimada e tampouco a ilusão (comum, com modalidades diferentes, em Bobbio, Della Volpe e Bloch), segundo a qual o capitalismo e o liberalismo garantiriam de qualquer modo a ‘igualdade formal’ ou até mesmo a ‘igualdade política’”.
De novo, assistimos ao insidioso artifício de equiparar situações e personagens inequiparáveis: uma coisa, é a luta da maioria oprimida pelos franceses no Vietnã colonial dos anos 1920; outra coisa, é a luta do povo preto norte-americanos no coração desta metrópole imperialista. Lá, a reivindicação fundamental era a constituição de um Estado nacional independente; aqui, a derrocada do governo imperialista pela revolução socialista, ao lado das outras minorias oprimidas e de todos os trabalhadores. É a isso que o Presidente Mao se refere, quando diz, no mesmo texto, de modo sintético, que “em última análise a luta nacional é uma questão de luta de classes”viii. Mas Losurdo não está interessado em falar da luta de classes e do movimento revolucionário autenticamente marxista no interior do que ele chama de “Ocidente”. Quanto às suas críticas ao chauvinismo dos expoentes do “marxismo legal”, liberal-reformista, que ele escolhe como adversários, poderíamos subscrevê-las sem maiores problemas, com a ressalva decisiva de que ela é no mínimo incompleta se não vem acompanhada da crítica ao revisionismo pseudo-comunista de Kruschov, Thorez, Togliatti, Tito, isto para não citar os pioneiros Berntein, Kautsky, Trotsky, Bukharin, Zinoviev, Kamenev e os conteporâneos do século XXI Avakian e Prachanda, muito mais nocivo para a revolução proletária. Sem mencionar isto para nada, Losurdo cumpre, ao cabo e ao fim, um papel ridículo, ao levantar como uma grande e original indagação –a importância da luta de libertação nacional na estratégia global de luta contra o imperialismo – aquilo que já estava respondido, ao menos em linhas gerais, desde a fundação da gloriosa III Internacional. Aos mercadores de ideias, que embrulham as teses contrabandeadas do “mestre” a fim de vendê-las ao preço de um produto original, vale bem a advertência de Nelson Werneck Sodré, de que não se deve jamais confundir a fortuita novidade – o modismo do dia – com o que é autenticamente novo. A menos que se coloque na posição de um contrabandista, é claro.
De Bernstein a Losurdo
Nas seções 2 e 3, o autor embarca numa polêmica contra Althusser a respeito do “humanismo”. O tema não é sem interesse, mas foge do centro da nossa problemática de agora, de cujas duas partes se afastam do materialismo dialético. Losurdo diz coisas do tipo: “A denúncia do anti-humanismo do sistema capitalista não desapareceu de modo algum e nem pode desaparecer, porque está no centro do pensamento de Marx”. Nem Bernstein e nem Kautsky foram assim tão longe! Vimos acima Lenin dizer – e o seu alvo eram estes senhores – que não é marxista quem não estende o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado. Losurdo, aqui, suspende a própria luta de classes da cena. Guarda, com isso, plena identidade com seu colega de profissão e de social-democratismo, Eric Hobsbawn, que diz que “o comunismo, acima de tudo, representa uma demanda por direitos humanos. Isso é importante. E não só por direitos humanos, mas por direitos legais, pura e simplesmente”ix.
O conteúdo é o mesmo, com a diferença de que Hobsbawn apenas se pronuncia com mais clareza – e, neste sentido, com mais honestidade. Ambos convertem Marx num moralista pequeno-burguês, num bom filisteu alemão. Como diz Losurdo, “o rigor científico e a indignação moral resultam tão entrelaçados entre si, e é somente este entrelaçamento que pode explicar o apelo à revolução”. Qualquer um que tenha folheado, digamos, o Anti-Dühring, conhece de cor o juízo de Marx e Engels a respeito do “entrelaçamento” de “rigor científico” e “indignação moral”.
Sigamos para a Seção 4, intitulada “O marxismo ocidental lê o marxismo oriental”, onde se revela com clareza o fundo das posições do autor e o “entrelaçamento” que ele realiza entre o velho revisionismo social-democrata e o novo revisionismo “comunista”. Ao criticar Althusser e outros que pregam o que ele chama de “niilismo nacional”, Losurdo escreve:
“Em seu testamento, depois de ter convocado seus concidadãos à ‘luta patriótica’ e ao compromisso ‘pela salvação da pátria’, no plano pessoal ele [Ho Chi Minh] traça este balanço: ‘Por toda vida eu servi minha pátria de corpo e alma, servi a revolução, servi o povo’. Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, o dirigente vietnamita recordara seu percurso intelectual e político afirmando que: ‘No começo fora o patriotismo e não o comunismo que me levou a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional’. Em primeiro lugar, os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos povos coloniais, ressaltando seu direito de constituir-se como Estados nacionais independentes, provocaram grande emoção: ‘As teses de Lênin sobre a questão nacional e colonial despertavam em mim grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e me ajudavam a ver claramente os problemas. Tão grande era a minha alegria que até chorei’. No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que ele dera na véspera da fundação da República Popular Chinesa, em 1949: ‘A nossa não será mais uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Já nos levantamos […] A época na qual o povo chinês era considerado selvagem agora acabou’. Compreende-se perfeitamente a atitude dos dois grandes revolucionários. Atrás deles estava agindo a lição de Lênin”.
Acima, já falamos da relação dos clássicos do marxismo com a questão nacional. Através do depoimento de Ho Chi Minh, Losurdo é obrigado a reconhecer o papel da III Internacional, mas o faz de modo revisionista. À frente, conclui:
“Mas naquela época [isto é, final dos anos de 1960] a homenagem a Ho Chi Minh, a Mao ou a Castro, não favorecia, de forma alguma, posições de distanciamento do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental.”
No campo filosófico, Domenico Losurdo é um ecléticox. Para ele, Mao Tsetung ou Ho Chi Minh ou Fidel Castro são o mesmo. No fim das contas, o grande “crítico” do silêncio ocidental sobre a revolução no oriente iguala como se fosse uma coisa só o complexo processo histórico ocorrido a Leste (o que nos obriga a situar Cuba aqui, o que é bastante confuso, aliás). A verdade é que o Presidente Mao não lhe é digerívelxi. Enquanto as referências ao “Grande Timoneiro” se resumem a poucas frases, não chegando nunca a construções inteiras, ele se estende em trechos bastante superficiais de Ho Chi Minh, o qual, como se sabe, adotou uma posição centrista frente à defesa do marxismo-leninismo sustentada pelo PCCh contra o revisionismo soviético; mesmo Ho que defendeu a dissolução do Partido Comunista da Indochina em 1945 (fundado em 1930 por orientação da III Internacional) e o recriou apenas em 1951, como Partido dos Trabalhadores do Vietnã. Por aí se vê o quanto de nacionalismo que havia em Ho Chi Minh, um dos muitos aspectos que distinguem o heroico processo da luta de libertação do povo vietnamita da Grande Revolução Chinesa e os desenvolvimentos – que constituem uma nova etapa do marxismo-leninismo – do Presidente Mao. Não por acaso, falecido Ho, o governo do Vietnã se serviu de tropas no terreno do social-imperialismo soviético para agredir de modo covarde o Camboja no final dos anos de 1970 e deter a revolução neste país, neste caso, com o beneplácito do imperialismo norte-americano, da comunidade europeia, da ONU e tutti quanti. Quanto ao Fidel Castro, ele está ainda mais afastado do que então se chamava marxismo-leninismo do que Ho Chi Minh.
Na sequência, sobre o processo revolucionário no “Oriente”, Losurdo assevera:
“Depois de ter se livrado do jugo colonial, os países e os povos recém-independentes estão comprometidos em consolidar a independência no plano econômico: não querem mais depender da esmola ou do arbítrio de seus ex-patrões; consideram essencial quebrar o monopólio que os países mais poderosos detêm sobre a tecnologia mais avançada. De fato, podemos ver no Vietnã uma orientação semelhante àquela já analisada em relação a Mao. Em plena guerra pela independência e pela unidade nacional, o então primeiro secretário do Partido dos Trabalhadores do Vietnã do Norte declara que, depois da conquista do poder, a tarefa mais importante reside na ‘revolução técnica’. Agora ‘são as forças produtivas que desempenham o papel decisivo’; trata- se portanto de empenhar-se com afinco para ‘alcançar uma produtividade mais elevada, estimulando a construção da economia e o desenvolvimento da produção’”. (Negritos nossos).
Aqui, a rígida separação (metafísica) entre luta de classes e questão nacional, que permeia o trabalho de Losurdo, produz seus frutos: uma única tarefa perante o imperialismo internacional – assegurar o mais rapidamente possível a autossuficiência, coisa que aliás nem Vietnã nem Cuba sob orientação soviética fizeram – é tomada como a tarefa “mais importante” da revolução. Losurdo restaura, com isso, a “teoria das forças produtivas”, um dos alvos centrais das críticas do Presidente Mao aos revisionistas soviéticos (destacadamente nas suas anotações críticas ao “Manual de Economia Política” daquele país) e cavalo de batalha decisivo na luta entre comunistas e revisionistas no seio do Partido Comunista da China, nos tempestuosos anos da Grande Revolução Cultural Proletária (1966-1976, doravante, GRCP). Poderíamos apenas perguntar aos epígonos desse senhor: indique-nos, por favor, onde o Presidente Mao disse que “agora as forças produtivas desempenham o papel decisivo”? Como veremos, nem a própria camarilha que desfechou o golpe contrarrevolucionário em outubro de 1976 na China ousou dizê-lo imediatamente desta forma, dada a reiteração com que tal concepção foi combatida nos anos precedentes.
Antes, deve-se dizer que tampouco Lenin, que se deparou com a tarefa de construir o socialismo num país atrasado, com a economia arruinada pela guerra, jamais disse algo parecido. Vejamos o que ele diz no “Esboço inicial das teses sobre a questão agrária”, que foram debatidas no II Congresso da Internacional Comunista, acerca da partilha da terra efetuada pelo poder soviético:
“Para assegurar o êxito desta revolução, o proletariado não tem direito a deter-se ante a diminuição momentânea da produção, assim como não se detiveram os burgueses inimigos do escravismo nos Estados Unidos ante a redução temporária da produção de algodão em consequência da guerra civil entre 1863-1865. Para os burgueses, a produção é um fim em si, mas aos trabalhadores e explorados importa sobretudo derrocar os exploradores e assegurar as condições que lhes permitam trabalhar para si mesmos e não para o capitalista. A tarefa primordial e fundamental do proletariado consiste em garantir e afiançar o seu triunfo.”(Negritos nossos)xii
Todos os revisionistas, sem exceção, colocam o “aumento da produção” como a finalidade do desenvolvimento socialista, inclusive hoje na China social-imperialista. Claro, concepção embrulhada em uma vaga ideia de um gradual aumento do “bem-estar”, no que não se diferencia em nada do que sempre disseram os economistas burgueses em todos os lugares do mundo.
O Presidente Mao levou aquelas indicações de Lenin às últimas consequências. Foi ele quem disse que “o trabalho político é a artéria vital de todo nosso trabalho econômico”xiii. Generalizando todo o processo de transformação revolucionária da sociedade, ele disse, na sua magistral crítica ao Manual de Economia Política da URSS:
“Primeiramente criar opinião pública e apoderar-se do poder político. Resolver o problema dos sistemas de propriedade depois, para chegar por fim a um grande desenvolvimento das forças produtivas, eis aqui a regra universal. Sobre tal ponto, a revolução proletária e a revolução burguesa se parecem no fundamental, apesar de certas diferenças.”
É, afinal, uma síntese que abrange séculos da história universal. Qual a semelhança desta formulação, que põe o acento na transformação das relações de produção como condição para a libertação das forças produtivas, com outras que põem o acento na “técnica” ou no “desenvolvimento econômico” em abstrato? Nenhuma! Elas não são apenas diversas: uma é a negação específica da outra. Esta última foi a posição da direita no Partido Comunista da China, estigmatizada durante a GRCP. Não por acaso, o órgão Pekin Informa, do PCCh, publicou no seu número 38, de setembro de 1969, o conhecidíssimo artigo “De Bernstein a Liu Shao-chi”, em que dizia:
“Tomando o legado dos renegados Bernstein, Kautsky, Trotsky e Chen Tu-siu, o renegado, agente do inimigo e vende-operários Liu Shao-chi apregoou constantemente a reacionária ‘teoria das forças produtivas’. Combateu a revolução proletária e a ditadura do proletariado e cometeu crimes monstruosos.”
Não estamos aqui falando de generalidades, portanto, mas de um tema que esteve no centro da luta entre os seguidores do caminho capitalista e os defensores da linha vermelha do Presidente Mao na China. O historiador Losurdo ignorará este fato? Mais à frente, ele diz:
“A Revolução Cultural é lançada com uma palavra de ordem bem precisa: ‘Fazer a revolução e estimular a produção’. Entre os marxistas ocidentais não são raras as tomadas de posição concordantes ou entusiastas; a segunda parte desta palavra de ordem, porém, acaba sendo esquecida”.
Na sequência, ele cita longamente, por duas vezes, a… Lin Piaoxiv! E conclui:
“Não por acaso, a Revolução Cultural retomava e relançava o Grande Salto para a Frente de 1958 mediante o qual a China esperava queimar as etapas para alcançar os países capitalistas mais avançados.”
Tudo isto é de uma falsidade inaudita. Segundo esta exótica interpretação, a meta da GRCP seria simplesmente “queimar etapas” do ponto de vista econômico, de forma a “alcançar” os países capitalistas mais avançados. Sobre o problema crucial da continuação da revolução sob a ditadura do proletariado, o maior avanço da teoria marxista na segunda metade do século XX, cunhado em teoria e prática pelo Presidente Mao (que ele, reiteramos, não consegue citar para a defesa dos seus pontos de vista), nenhuma palavra! Acusando seus interlocutores de isolar de modo unilateral o aspecto “revolução”, é ele quem isola de modo unilateral o aspecto “produção”, em posição irreconciliável com a do Presidente Mao. Este diz, em 1967, durante uma reunião com militares albaneses:
“Agora, gostaria de lhes fazer uma pergunta: qual creem vocês é a meta da grande revolução cultural? (Alguns assistentes respondem: ‘lutar contra os dirigentes seguidores do caminho capitalista dentro do partido’). Lutar contra os dirigentes seguidores do caminho capitalista é a tarefa principal, mas de maneira nenhuma a meta. A meta é resolver o problema da concepção do mundo; é a questão de extirpar as raízes do revisionismo.” (Negrito nosso).
Somente a falsificação mais grotesca poderia colocar como objetivo central da GRCP alcançar o desenvolvimento econômico dos países capitalistas. Esta foi uma luta tão central nos anos de 1966-1976, e que calou tão profundamente nos quadros do Partido e nas massas, que, mesmo após o golpe de Estado contrarrevolucionário, que prendeu o chamado “bando dos quatro” – isto é, os defensores do Presidente Mao na alta direção do PCCh – e desatou uma onda de terror policial na China, Hua Kuofeng, que assumiu a posição de presidente, e seus sequazes, não puderam afirmar logo aquilo que Losurdo defende sem corar. Com efeito, no Diário Pekin Informa, número 48, de novembro de 1976, aparece a primeira denúncia pública dos “quatro”, intitulada “Um bando de animais desprezíveis nocivos para o país e o povo”, com o subtítulo: “Crítica aos crimes do ‘bando dos quatro’ de sabotar os esforços por empenhar-se na revolução e promover a produção”. No texto, escreve-se que: “A relação entre revolução e produção representa uma unidade de contrários. Das duas, a revolução é o aspecto principal da contradição e desempenha o papel dirigente”. É claro que era um esforço dos revisionistas para legitimar-se a si mesmos como herdeiros do Presidente Mao. Com o tempo – isto pode ser comprovado com um mero exame dos números disponíveis de Pekin Informa – o acento vai se transferindo até repousar por completo no aspecto “produção”, mesmo porque, o expurgo policial no CC garantirá a maioria à direita, que culminará com a reabilitação completa de Teng Siaopingxv. Na verdade, qualquer pessoa que conheça, por exemplo, o trabalho “Sobre a Contradição” do Presidente Mao, sabe que ele jamais colocaria dois aspectos de uma contradição – no caso, “empenhar-se na revolução” e “promover a produção” – sem dizer qual deles é o aspecto principal, isto é, dominante. E que, neste caso concreto, era o “empenhar-se na revolução”, nem os seus piores inimigos tiveram coragem de negá-lo de modo frontal, como faz Losurdo.
Aliás, o ponto 14 da famosa Decisão de 16 pontos aprovada pelo Comitê Central em Agosto de 1966, estabelece que: “A Grande Revolução Cultural Proletária é uma poderosa força motriz para o desenvolvimento das forças produtivas sociais em nosso país. É incorreto todo ponto de vista que contraponha a grande revolução cultural ao desenvolvimento da produção”. O descompromisso de Losurdo com a verdade histórica é tão flagrante que, no trecho de discurso de Lin Piao por ele citado, o então chefe do Exército Popular de Libertação menciona exatamente esta parte (até porque, como conspirador, ele não poderia renegar em público a linha do Presidente Mao), mas o “cotejador” não percebe que isto interdita o seu ponto de vista.
Examinemos, ainda, a coisa do ponto de vista lógico. Como vimos, Losurdo afirma que a GRCP “retomava e relançava o Grande Salto para a Frente de 1958”. Como se sabe, em 1958 o presidente da República Popular da China era Liu Shao-chi e a direita detinha vários postos-chave no Partido Comunista e no Governo chineses. Se a GRCP fosse uma mera “retomada” do que já estava posto em 1958, ela não seria afinal uma revolução, e não teria sido nem sequer necessária, a menos que se a considere uma “extravagância” ou “voluntarismo”, como o fizeram todos os direitistas revisionistas dentro e fora do país. E se é verdade que houve muito de idealismo na interpretação que setores da pequena burguesia radicalizada deram àquele episódio nos seus países – e é natural que assim seja quando se trata de um episódio de alcance histórico mundial, como ocorreu, por exemplo, na repercussão da Revolução de Outubro, que também gerou um revolucionarismo muitas vezes inconsequente em vários países –, também é certo que a luta contra o revisionismo moderno e a GRCP desatadas pelo Presidente Mao lançaram uma vaga de entusiasmo revolucionário e repúdio aos velhos partidos operários-burgueses nos quatro cantos do mundo, dos Panteras Negras nos Estados Unidos aos guerrilheiros do Araguaia na Amazônia brasileira, passando pelas greves e insurreições na Europa Ocidental, até a luta dos camponeses naxalitas indianos. Do ponto de vista do proletariado revolucionário, este é o aspecto principal da contradição, que dá a qualidade do fenômeno. Mas a crítica de Losurdo se volta contra os que se entusiasmaram com aqueles episódios, convergindo, deste modo, com os oportunistas que têm o sangue congelado e a alma prevenida contra qualquer coisa que não seja compatível com a sua “respeitabilidade burguesa”. Conclui:
“No Ocidente, contudo, a Revolução Cultural, o pensamento e a obra de Mao, a Revolução Chinesa em seu conjunto acabava sendo reduzida a um único slogan: ‘Rebelar-se é justo’. O grande revolucionário, já dividido no sentido que conhecemos, era submetido ainda a uma leitura anarcóide. Derrotado a duras penas na época da Segunda Internacional, o anarquismo obtém uma clamorosa revanche no movimento de 1968.” (Negrito nosso).
Observemos, de passagem, que a II Internacional parece despertar muito mais simpatia a Losurdo do que a III Internacional, Comunista, a única que merece ser chamada realmente de internacional comunista, pois levou o movimento revolucionário até os países coloniais e semicoloniais, como sublinhou tantas vezes Lenin. De todo modo, agora, o senhor que não conseguiu sustentar sua posição sobre a GRCP a não ser recorrendo a citações – elas próprias, mal interpretadas – de Lin Piao; aquele que dizia que Ho Chi Min seguia uma “orientação semelhante” a do Presidente Mao quando dizia que, tomado o poder, a “revolução técnica” é o principal; o mesmo se mostra desolado com a interpretação “anarcóide” de Mao pelos “ocidentais”. De novo: a crítica é contra aqueles que, de um jeito ou de outro, buscaram aplicar os ensinamentos da revolução chinesa; seus detratores declarados estão poupados, mesmo quando, como foi o caso do Maio de 68 francês, estiveram abertamente do lado de lá das barricadas, isto é, com a polícia, os patrões e o governo. Não parece claro que tal “defesa” do socialismo é mais perniciosa do que uma acusação? Sintetizando a experiência histórica do marxismo e da ditadura do proletariado, foi o próprio Presidente Mao quem disse, num discurso em Yenan, para celebrar o aniversário do camarada Stalin, em 1939:
“O marxismo consiste em milhares de verdades, mas todas se resumem a uma só: ‘A rebelião se justifica’. Durante milhares de anos se dizia que é justo oprimir, é justo explorar e está mal rebelar-se. Este veredito foi revogado somente com o aparecimento do marxismo. É uma grande contribuição. Foi mediante a luta que o proletariado aprendeu esta verdade, e Marx sacou a conclusão. E a partir desta verdade, segue a resistência, luta e batalha pelo socialismo.”
Isto é naturalmente intolerável para revisionistas de todas as estirpes, mesmo para os mais ilustrados, que continuam a ser, todavia, meros “lacaios diplomados” da burguesiaxvi. Quanto à segunda parte da conclusão de Losurdo, que se refere aos insurretos de 68 como “anarquistas”, já Lenin notara que este é um expediente bastante frequente dos oportunistas para desacreditar os marxistas revolucionários, isto é, os únicos marxistasxvii.
Conclusão: Stalin, “terrorista”; Teng Siao-ping, “humanista”
Como se viu, Losurdo buscou criticar a recepção do marxismo por certos círculos intelectuais do Ocidente capitalista. Usando de um leque que vai de Michel Foucalt a Antonio Negri, de Bobbio a Adorno, ele buscou ilustrar a capitulação destes autores “marxistas ocidentais” a uma visão estereotipada, liberal-burguesa, de mundo. De novo: ele não mostrou em parte alguma, até aqui, qual a identidade desses autores entre si – alguns dos quais nem sequer se reivindicavam marxistas – e poupou sempre os dirigentes revisionistas dos supostos partidos comunistas “de massas” do Ocidente. Mas, ao final do texto, o autor encontrou um ponto que unifica não só o balaio de gatos que ele criou à margem de qualquer seriedade lógica ou histórica, mas que também o unifica a eles. Este ponto é a crítica ao camarada Stalin. Bingo! Losurdo diz, referindo-se à adesão dos trabalhadores negros norte-americanos ao Partido Comunista, que se adensava apesar de todas as campanhas anticomunistas levadas a cabo nos Estados Unidos em meados dos anos de 1930:
“Façamos um salto de quinze anos. É o período mais trágico na história da União Soviética. Imposta fundamentalmente do alto e de fora, a coletivização da agricultura difundiu o gulag em larga escala, enquanto no horizonte vislumbra-se o Grande Terror”.
Hannah Arendt,autora de “Origens do totalitarismo” e ideóloga da OTAN, que Losurdo critica parcialmente em outros trabalhos, subscreveria sem dificuldades este trecho. Quando se trata do apelo revisionista a fazer do avanço da produção a “meta” da revolução, Losurdo bate palmas; quando se trata de levar a um novo patamar a revolução socialista na agricultura soviética, por meio da coletivização, isto é, a passagem do regime da pequena produção mercantil aos regimes de economia coletiva e economia de todo o povo, ele identifica isto com “gulags” e “grande terror”. Isto é o que se chama de adotar dois pesos e duas medidas! A propósito, o tal “horizonte” sombrio de alguns anos que o autor aponta a partir de meados dos anos 1930, realmente existiu: foi a invasão alemã em Junho de 1941, que pretendeu converter os povos da União Soviética em escravos. Sem a coletivização e industrialização a um ritmo acelerado, levada a cabo no período em tela, a vitória sobre a Alemanha nazista teria sido uma tarefa muitas vezes mais difícil. Basta fazer as contas!
Como se vê, a “crítica” ao camarada Stalin é ponto de contato entre todas as formas de anticomunismo conhecidas. Só por isso, já estaria comprovada a avaliação que dele fez o Presidente Mao, no comentário “Sobre a questão de Stalin”, no contexto da Grande Polêmica, dizendo que este foi “um grande revolucionário proletário, um grande marxista-leninista”. É certo que Losurdo escreveu um trabalho específico sobre o Marechal Stalin, intitulado “Stalin, história crítica de uma lenda negra” (ed. Revan, 2010), no qual já se nota desde o título as concessões deste senhor ao campo reacionário. É este o seu modus operandi, sempre: o ecletismo, a defesa envergonhada do socialismo, que é, filosófica e politicamente falando, idêntica a um ataque envergonhado ao socialismo, e que deve ser, por isso mesmo, combatida com particular esmero. Neste trabalho, Losurdo mostra incoerências na abordagem dos políticos e ideólogos burgueses sobre Stalin e a União Soviética, e mesmo desmascara, ponto a ponto, desde uma abordagem estritamente documental, o infame “Relatório Secreto de Kruschov”, mas não afirma em momento algum o caráter essencial do regime soviético, como o primeiro governo de ditadura do proletariado, em aliança com os camponeses, do mundo; regime que tinha no Camarada Stalin a liderança máxima do Partido e do Estado, e que se identificava, portanto, nele, numa relação já sistematizada por Lenin sobre chefes, partidos, classes e massas. Losurdo discute como um pusilânime, a dizer sobre qualquer tema: bem, nem isto, nem tampouco aquilo etc., o que pode ser comprovado por quem queira ler este seu trabalho, e não é objeto específico deste textoxviii.
Voltemos. Abaixo, enaltecendo a ênfase que os atuais revisionistas vietnamitas e chineses dão à produção, Losurdo diz:
“Não por acaso, hoje em dia, é grande o desprezo que os sobreviventes do marxismo ocidental ostentam pelos esforços que países como a China e o Vietnã fazem para consolidar a independência, também no plano econômico, de modo a poder dar – declara Deng Xiaoping em 1987 – ‘uma contribuição real à humanidade.’”
Para Losurdo, os altos índices de desenvolvimento econômico (capitalista) obtidos por estes países – cruciais para a sobrevida do sistema imperialista a nível mundial –, obtidos às custas da restauração do capitalismo e da instauração de regimes fascistas no lugar da ditadura do proletariado, são uma “real contribuição à humanidade”. Os carrascos da Grande Revolução Cultural Proletária na China, aqueles que prenderam e executaram dezenas de milhares de quadros e militantes maoistas após o golpe de Estado de 6 de outubro de 1976, os termidorianos que substituíram a consigna “rebelar-se é justo” por “enriquecer é glorioso”, ganham, pela pena deste suposto crítico do imperialismo, plena cidadania.
É monstruoso.
Por fim. Deve-se ler Losurdo? Ou será uma completa perda de tempo passar pelos seus estudos no campo histórico e filosófico? Os marxistas não estão entre aqueles que queimam livros. Como diz o Presidente Mao, o marxismo não teme a crítica, pois não pode ser derrotado por ela. Bem, era com esse espírito que ele recomendava, já bem depois da revolução, que se estudasse até mesmo Chiang Kai-shekxix. Como um “material negativo”, que pode conter referências históricas de algum interesse, mas cujos ardis de especialista em torcer a verdade merecem ser expostos e denunciados perante o mundo: do ponto de vista do marxismo-leninismo-maoismo, é assim como se deve ler o senhor Domenico Losurdo.
NEMLM, Brasil, Agosto de 2023
i Disponível no blog da editora Boitempo. Link para acesso: https://blogdaboitempo.com.br/2018/06/29/losurdo-como-nasceu-e-como-morreu-o-marxismo-ocidental/. Todas as citações do autor foram retiradas desta fonte.
ii Na seção 2, que veremos mais de perto a seguir, após citar uma passagem polêmica de Palmiro Togliatti, então secretário-geral do Partido Comunista da Itália e um dos expoentes do revisionismo moderno, contra Bobbio, ele comenta: “Estamos diante de um expoente do ‘marxismo ocidental’? No entanto, deve-se notar que não se trata de um filósofo profissional, além disso ligado organicamente – pelo menos assim julgam os seus críticos – ao orientalizante ‘socialismo real’”. Estamos falando de um dirigente que desmobilizou os 300 mil partisans armados e compôs o governo de conciliação nacional com a grande burguesia, a Igreja Católica e os feudais do sul italiano ao término da II Guerra Mundial. Enfim, aquele que traiu a revolução de um modo vergonhoso, no país do “Ocidente” onde ela estava talvez mais madura.
iii Lenin, “A revolução proletária e o renegado Kautsky”, Obras Completas, ed. Akal, T. 30, págs 75-175.
iv K. Marx, “A questão irlandesa”, disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1869/11/questao.htm
v Idem.
vi “8. Os partidos nos países cuja burguesia possui colônias e oprime outras nações devem aplicar uma linha muito bem definida e clara a respeito das colônias e nacionalidades oprimidas. Todo partido que deseje pertencer à III Internacional deve desmascarar implacavelmente os manejos coloniais dos imperialistas do seu ‘próprio’ país, deve apoiar – nos fatos, não só em palavras –, todo movimento de libertação colonial, exigir a expulsão das colônias de seus compatriotas imperialistas, inculcar no coração dos operários de seu próprio país uma atitude verdadeiramente fraternal frente à população trabalhadora das colônias e nações oprimidas, e desenvolver agitação sistemática entre as forças armadas contra toda opressão dos povos coloniais.” Lenin, Op. Cit. T. 33, p.332.
viiCitado pelo Presidente Gonzalo, em “Eleições, não! Guerra popular, sim” (PCP-1990).
viii Mao Tsetung, “Contra a discriminação do imperialismo norte-americano”, 1963.
ix Eric Hobsbawn, “Viva la revolución – a era das utopias na América Latina”, ed. Cia das Letras, p.224.
x “A dialética nega as verdades absolutas, explicando a sucessão dos contrários e o significado das crises na história. O eclético não quer afirmações ‘demasiado absolutas’, para introduzir o seu desejo pequeno-burguês e filisteu de substituir a revolução pelos ‘graus transitórios’”. V.I. Lenin, “A revolução proletária e o renegado Kautsky”, Op. Cit., T.30, págs 75-175. Uma vez que o revisionismo busca apresentar o liberalismo burguês com uma roupagem marxista proletária, ele é eclético por definição. O ecletismo, isto é, a capacidade infinita em “adaptar-se”, a busca pela conciliação dos contrários, é a filosofia do revisionismo.
xi Chama atenção, por exemplo, que nos seus trabalhos filosóficos, notadamente sobre Hegel e a dialética, escassa atenção tenha sido dispensada aos extraordinários desenvolvimentos feitos pelo Presidente Mao neste terreno.
xiiV.I. Lenin, Op. Cit., T. 33, págs. 298-310.
xiii Mao Tsetung, “Notas a ‘O auge socialista no campo chinês’”, Obras escolhidas, Tomo V, p.17.
xiv Como se sabe, Lin Piao conspirou ativamente contra o Presidente Mao e a GRCP. Com sua torpe “teoria dos gênios”, pretendia fundar uma sociedade aristocrática, realizando o primado confuciano. Não por acaso, após a sua queda, foi movida uma ampla campanha de crítica e esclarecimento chamada Pi-Lin-Pi-Kong ( “Crítica de Lin Piao e Crítica de Confúcio”).
xv “A repressão é acompanhada, ao longo de 1977, por uma ‘depuração’ maciça no Partido. Também aqui são raras as informações, não permitindo avaliar a amplitude das operações. Todavia, segundo alguns viajantes regressados da China e que tiveram a possibilidade de falar com altos funcionários, seria de pensar que um terço dos quadros teria sido ‘depurado’. Os atingidos seriam essencialmente os quadros formados no decurso da Revolução Cultural. A atual depuração é acompanhada pelo regresso maciço dos quadros anteriormente depurados. De tal modo que, na própria composição dos seus quadros, o P.C.C. de finais de 1977 está muito mais próximo do de 1965 que do de outubro de 1976. Paralelamente ao regresso dos direitistas, verifica-se que se reforçam as posições de Teng Hsiao-ping”. (Charles Bettelheim, “A China depois de Mao”, edições 70, p.66).
xvi Expressão que Lenin toma de J.Dietzgen e cita amiúde em “Materialismo e empiriocriticismo”.
xvii Por exemplo: “Os ministros e os parlamentares de profissão, os traidores do proletariado e os socialistas ‘interesseiros’ dos nossos dias deixaram inteiramente aos anarquistas a crítica do parlamentarismo e, nesta base espantosamente razoável, declararam ‘anarquista’ toda a crítica do parlamentarismo!”. (Lenin, “O Estado e a revolução”, Op. Cit., T.27, págs 9-128. Grifo de Lenin). Ainda agora, é com base nesta sopinha rala que os oportunistas previnem sua militância contra os maoistas.
xviii Na conclusão de seu livro sobre o Camarada Stalin, diz Losurdo: “Mas voltemos a Stalin. Rejeitar a abordagem que interpreta tudo em perspectiva de crime ou de loucura criminal ou de traição dos ideais originais é sinônimo de embotamento moral? Os historiadores de hoje discutem ainda personalidades e acontecimentos que se referem a quase dois mil anos atrás: devemos subscrever sem hesitação o retrato com tintas bastante escuras que a aristocracia senatorial, de um lado, e os cristãos, do outro lado, contribuíram para traçar de Nero? Em particular, devemos tomar como ouro puro a propaganda cristã que acusava o imperador romano de ter provocado um incêndio em Roma, de modo a culpar e perseguir os inocentes seguidores da nova religião, ou, ao invés, como sugerem alguns estudiosos, no âmbito do cristianismo primitivo se agitavam realmente correntes apocalípticas e fundamentalistas, as quais aspiravam a ver reduzido a cinzas o lugar por excelência da superstição e do pecado e acelerar o cumprimento das suas expectativas escatológicas? (…) Os historiadores que se fazem estas perguntas dificilmente são acusados de querer minimizar a perseguição sofrida pelos cristãos, ou de querer entregá-los de novo às feras e aos tormentos mais atrozes.” (D. Losurdo, “Stalin, história crítica de uma lenda negra”, ed. Revan, p.333). Este é um modo pusilânime, covarde, inconsequente, eclético e, no fim das contas, moralista, pequeno-burguês, de eludir a questão de Stalin e da ditadura do proletariado. O movimento comunista só pode rechaçar semelhantes “contribuições”, tidas como pretensamente “isentas” ou “objetivas”, típicas de uma intelectualidade “entupida de liberalismo”, para usar a feliz expressão do Presidente Gonzalo. Quanto ao espírito, lembra Michel Foucalt, que, indagado sobre os crimes do colonialismo francês nos seus dias, se abstinha de comentar, justificando que sua pesquisa não abrangia a “história contemporânea”.
xix “É preciso ler materiais negativos como livros de Kant e Hegel, de Confúcio e Chiang Kai-shek. Se não conhecem nada sobre o idealismo e a metafísica, nem entraram em luta com tais coisas negativas, seus conhecimentos de materialismo e dialética carecerão de solidez”. Mao Tsetung, Obras Escolhidas, T. V, p. 400.