Estado e Revolução – Parte 6 (V. I. Lenin, 1917)
Nota do blog: A seguir a sexta e última parte do documento Estado e Revolução (1917) de V. I. Lenin.
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Aviltamento do marxismo pelos oportunistas
A questão das relações do Estado e da revolução social preocupou muito pouco os teóricos e os publicistas da II Internacional (1889-1914), como de resto a questão da revolução em geral. Mas, o que há de mais característico no processo de crescimento do oportunismo, que redundou na falência da II Internacional em 1914, é que, justamente nos momentos em que essa questão mais se impunha, tudo se fazia por contorná-la ou por não percebê-la.
Em geral, pode-se dizer que foi evitando a questão das relações da revolução proletária e do Estado, para maior proveito do oportunismo, que se alimentou este último e se desnaturou o marxismo a ponto de edulcorá-lo completamente.
Para caracterizar rapidamente esse lamentável processo, vejamos os teóricos mais em evidência do marxismo: Plekhanov e Kautsky.
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Polêmicas de Plekhanov com os anarquistas
Plekhanov consagrou à questão das relações entre o anarquismo e o socialismo uma brochura especial: Anarquismo e Socialismo, publicada em alemão em1894.
Plekhanov conseguiu tratar desse tema, evitando completamente a questão mais atual, mais acesa e, politicamente, mais essencial na luta contra o anarquismo, ou sejam as relações da revolução e do Estado, e a questão do Estado em geral! Essa brochura compreende duas partes: uma parte histórico-literária, contendo materiais preciosos sobre a história das idéias de Stirner, Proudhon, etc.; a outra, toda sofística, cheia de grosseiros raciocínios tendentes a insinuar que em nada se distingue um anarquista de um bandido.
Esse amálgama é muito divertido e caracteriza maravilhosamente a atividade de Plekhanov, nas vésperas da revolução e durante todo o período revolucionário na Rússia; foi exatamente assim que Plekhanov se mostrou em 1905 e em 1917: semidoutrinário, semi-sofista, arrastando-se politicamente a reboque da burguesia.
Já vimos como Marx e Engels, nas suas polêmicas com os anarquistas, puseram em relevo, com o maior cuidado, as suas idéias sobre a revolução e o Estado. Publicando, em 1891, a Crítica do Programa de Gotha, de Marx, Engels escrevia:
Nós (Engels e Marx) nos encontrávamos, nesse momento, apenas dois anos após o Congresso de Haia da I Internacional, em plena luta com Bakunine e seus anarquistas.
Os anarquistas empenharam-se em apropriar-se da Comuna de Paris, vendo nela como uma confirmação da “sua” doutrina, mas nada compreenderam das lições da Comuna, nem da análise que Marx fez dela. Sobre estas duas questões de política concreta: é preciso demolir a velha máquina do Estado? E por que deve ser substituída? – o anarquismo nada trouxe que tivesse, ao menos, um interesse qualquer.
Mas, estudar o “anarquismo e o socialismo”, descurando a questão do Estado, sem notar, a este respeito, o desenvolvimento do marxismo antes e depois da Comuna, era escorregar inevitavelmente para o oportunismo. De fato, o oportunismo só tem a ganhar em que as duas questões que vimos de indicar nunca sejam apresentadas. Para ele, isso é já uma vitória.
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Polêmica de Kautsky com os oportunistas
A literatura russa possui, sem dúvida alguma, infinitamente mais traduções de Kautsky que nenhuma outra no mundo. Certos social-democratas alemães dizem, caçoando, que Kautsky é muito mais lido na Rússia que na Alemanha. (Diga-se, entre parênteses, que há nessa caçoada um fundamento histórico muito mais profundo do que suspeitam aqueles que a fizeram; em 1905, houve, entre os operários russos, uma procura extraordinária, incrível, das melhores obras da melhor literatura social-democrata do mundo; eles receberam uma quantidade de traduções e de edições desusada em outros países, transplantando, por assim dizer, para o solo jovem do nosso movimento proletário, a experiência enorme de um país vizinho mais adiantado).
Além da sua exposição popular do marxismo, Kautsky é conhecido, entre nós, principalmente pela sua polêmica com os oportunistas, Bernstein à frente. Mas, há um fato quase ignorado e que não se pode deixar em silêncio, se quisermos investigar como foi que Kautsky perdeu tão vergonhosamente a cabeça, a ponto de tornar-se o advogado do social-patriotismo durante a grande crise de 1914-1917. Esse fato consiste em que, antes de sua campanha contra os representantes do oportunismo em França (Millerand e Jaurès) e na Alemanha (Bernstein), Kautsky manifestara grandes hesitações. A revista marxista Zaria, publicada em 1901-1902 em Stuttgart, e que defendia as idéias proletárias revolucionárias, teve que travar polêmica com Kautsky, classificando de “resolução de borracha” a sua resolução mitigada, fugidia, conciliante, para com os oportunistas do congresso internacional socialista de Paris em 1900. Publicaram-se em alemão, cartas de Kautsky, atestando as mesmas hesitações antes de entrar na sua campanha contra Bernstein.
Uma circunstância muito mais grave é que, até na sua polêmica com os oportunistas, constatamos agora, ao estudar a história da recente traição de Kautsky para com o marxismo, uma tendência sistemática para o oportunismo, precisamente sobre a questão do Estado.
Tomemos a primeira obra capital de Kautsky contra o oportunismo, seu livro sobre Bernstein e o Programa Social-Democrata, em que ele refuta minuciosamente Bernstein. E eis aqui o que é característico.
Nas suas Premissas do Socialismo, que lhe proporcionaram uma celebridade à maneira de Eróstrato; Bernstein acusa o marxismo de “blanquismo” (acusação mil vezes repetida, desde então, pelos oportunistas e burgueses liberais da Rússia, contra os bolcheviques, representantes do marxismo revolucionário). A esse respeito, Bernstein detém-se, particularmente, na Guerra Civil em França, e tenta, com muita infelicidade, como o vimos, identificar o ponto de vista de Marx, sobre as lições da Comuna, com o de Proudhon. Bernstein salienta, sobretudo, a conclusão que Marx reproduz no prefácio de 1872 ao Manifesto Comunista e que diz que “não basta a classe operária apoderar-se da máquina do Estado para adaptá-la aos seus próprios fins”.
Essa expressão “agradou” tanto a Bernstein que ele a repete nada menos do que três vezes no seu livro, comentando-a no sentido mais oportunista e mais desnaturado.
Como vimos, Marx quer dizer que a classe operária deve quebrar, demolir, fazer saltar (Sprengung, explosão, a expressão é de Engels) toda a máquina do Estado. Ora, segundo Bernstein, Marx teria, com isso, pretendido pôr a classe operária de sobreaviso contra uma atividade demasiado revolucionária, por ocasião da tomada do poder.
Não pode haver falsificação mais grosseira e mais monstruosa do pensamento de Marx.
Como procedeu Kautsky, na sua minuciosa refutação à “bernsteiniada”?
Ele evitou medir toda a profundeza da falsificação infligida ao marxismo pelos oportunistas sobre esse ponto. Reproduz a passagem, acima citada, do prefácio de Engels à Guerra Civil de Marx, dizendo que, segundo Marx, não basta que a classe operária se apodere simplesmente da máquina do Estado tal como ela é, mas que, de um modo geral ela pode apoderar-se dela – e é tudo. Que Bernstein atribua a Marx justamente, o contrário do seu verdadeiro pensamento, e que Marx tenha, desde 1852, atribuído à revolução proletária a função de quebrar a máquina do Estado, de tudo isso Kautsky não diz uma palavra!
Em suma, o que constitui a distinção essencial entre o marxismo e o oportunismo, na questão do papel da revolução proletária, é cuidadosamente oculto por Kautsky!
Kautsky escreve “contra” Bernstein:
Podemos, com toda a tranqüilidade, deixar para o futuro a tarefa de resolver o problema da ditadura do proletariado.
Isso não é uma polêmica contra Bernstein; mas é, no fundo, uma concessão a Bernstein, uma capitulação diante do oportunismo, pois o oportunismo não quer outra coisa senão “deixar para o futuro, com toda a tranqüilidade todas as questões capitais do papel da revolução proletária.
De 1852 a 1891, durante quarenta anos, Marx e Engels ensinaram ao proletariado que ele deve quebrar a máquina do Estado. Ora, Kautsky, em 1899, em presença da traição caracterizada dos oportunistas ao marxismo, escamoteia a questão de saber se é preciso destruir essa máquina, substituindo-a pela questão das formas concretas dessa destruição e abrigando-se atrás desta verdade de filisteu, incontestável (e estéril): que não podemos conhecer antecipadamente essas formas concretas!!
Entre Marx e Kautsky, há um abismo na concepção do papel do partido proletário e da preparação revolucionária da classe operária.
Tomemos a obra seguinte, mais amadurecida, de Kautsky, consagrada também, em grande parte, à refutação dos erros do oportunismo: A Revolução Social. O autor toma, aqui, como assunto, a “revolução proletária” e o “regime proletário”. Ele traz muitas idéias de fato preciosas, mas omite justamente o problema do Estado. Essa brochura trata, toda ela, da questão da conquista do poder do Estado, sem mais explicação! Quer dizer que, formulando assim a questão, Kautsky faz uma concessão aos oportunistas, na medida em que admite a conquista do poder, sem destruição da máquina do Estado. O que em 1872 Marx declarava “envelhecido” no programa do Manifesto Comunista, ressuscita-o Kautsky em 1902.
A brochura consagra um capítulo às “formas e meios da revolução social”. Trata-se, aí, da greve geral política, da guerra civil e dos “meios de dominação de um grande Estado moderno, tais como a burocracia e o exército”; mas, sobre os ensinamentos que a Comuna forneceu aos trabalhadores, nem uma palavra. Evidentemente, Engels não andava mal quando punha de sobreaviso, principalmente, os socialistas alemães, contra a “veneração supersticiosa” do Estado.
Kautsky expõe a coisa assim: o proletariado vitorioso “realizará o programa democrático”, e segue a exposição dos artigos desse programa. Sobre o que de novo trouxe o ano de 1871 no que concerne à substituição da democracia burguesa pela democracia proletária, nem uma palavra. Kautsky sai-se da dificuldade com banalidades sonoras, “do seu gosto”, do gênero destas:
É claro que não chegaremos ao poder se a situação se conserva como é hoje. A própria revolução pressupõe lutas demoradas e sérias que, por si sós, já modificarão a nossa constituição política e social atual.
Isso “é claro”, certamente, do mesmo modo que os cavalos comem a aveia e o Volga se lança no Mar Cáspio. Somente é para lastimar que, com a ajuda de uma frase vazia e sonora sobre a luta “profunda”, se evite a questão capital para o proletariado revolucionário: saber em que se traduz a “profundeza” da sua revolução para com o Estado e a democracia, por oposição às revoluções não – proletárias.
Contornando essa questão capital, Kautsky faz, na realidade, uma concessão ao oportunismo, ao qual ele declara uma guerra que só é temível no sentido verbal. Ele acentua a importância da “idéia de revolução” (mas que valor pode ter essa “idéia”, desde que se tem medo de espalhá-la entre os operários sob sua forma concreta?) e diz: “O idealismo revolucionário acima de tudo” declara que os operários ingleses “não são mais que uns pequenos burgueses”
Na sociedade socialista – escreve Kautsky podem existir lado a lado… as formas mais variadas de empresas: burocráticas (??), sindicalistas, cooperativistas, individuais…
Há, por exemplo, explorações que não podem dispensar uma organização burocrática, como as estradas de ferro. Eis aqui, nesse caso, qual poderia ser a organização democrática: os operários elegeriam delegados que constituiriam uma espécie de Parlamento, tendo por missão regular o trabalho e fiscalizar a administração burocrática. Outras explorações podem ser confiadas aos sindicatos; outras, enfim, podem ser entregues à cooperação.
Esse argumento errôneo marca um recuo em relação às lições que Marx e Engels tiravam, em 1871, da experiência da Comuna.
A propósito da organização “burocrática” pseudonecessária, as estradas de ferro em nada se distinguem de não importa que outra empresa da grande indústria mecânica, de não importa que fábrica ou grande empresa agrícola capitalista, de não importa que grande armazém. Em todas essas empresas, a técnica prescreve a disciplina mais rigorosa, a maior pontualidade no cumprimento da parte de trabalho fixada a cada um, sob pena de fazer parar toda a empresa, de ruptura do mecanismo, ou de deterioração da mercadoria. Evidentemente, em todas essas empresas, os operários “elegerão delegados que constituirão uma espécie de Parlamento”.
Mas, aqui é que está o ponto importante: essa “espécie de Parlamento” não será um Parlamento no sentido burguês da palavra. Essa “espécie de Parlamento” não se contentará em “regular o trabalho e fiscalizar a administração burocrática”, como o imagina Kautsky, cujo pensamento não vai além dos quadros do parlamentarismo burguês. Na sociedade socialista, uma “espécie de Parlamento” de deputados operários determinará, evidentemente, o regulamento interno e fiscalizará o funcionamento do “aparelho”, mas esse aparelho não será “burocrático”. Os operários, senhores do poder político, quebrarão o velho aparelho burocrático, o demolirão de alto a baixo, não deixarão pedra sobre pedra e o substituirão por um novo aparelho, compreendendo os operários e os empregados e, para impedir que estes se tornem burocratas, tomarão imediatamente as medidas propostas por Marx e Engels: 1.º) elegibilidade, e também imovibilidade em qualquer tempo; 2.º) salário igual ao de um operário; 3.º) participação de todos no controle e na fiscalização, de forma que todos sejam temporariamente “funcionários”, mas que ninguém possa tornar-se “burocrata”.
Kautsky não penetrou absolutamente nada o sentido destas palavras de Marx:
A Comuna devia ser, não uma assembléia falante, mas uma assembléia de ação; tinha ela, ao mesmo tempo, o poder executivo e o poder legislativo(11).
Kautsky não compreendeu, absolutamente, a diferença entre o parlamentarismo burguês, de um lado, que une a democracia (não para o povo) à burocracia (contra o povo), e a democracia proletária, de outro lado, que tomará imediatamente medidas para extirpar a burocracia e terá força bastante para executá-las até o fim, até completa extirpação da burocracia, até o estabelecimento de uma democracia completa para o povo.
Kautsky, como os outros, deu, aqui, provas de “veneração supersticiosa” pelo Estado, de “crença supersticiosa” na burocracia.
Passemos à última e melhor obra de Kautsky contra os oportunistas, o seu Caminho do Poder (não traduzido em russo, segundo parece, pois apareceu no auge da reação czarista, em 1909). Essa obra marca um grande progresso, quando trata, não do programa revolucionário em geral, como a obra de 1899 contra Bernstein, não do papel da revolução social independentemente da época em que esta explodirá, como a Revolução Social, de 1902, mas das condições concretas que nos obrigam a reconhecer que “a era da revolução” se inaugura.
O autor fala nitidamente da agravação dos antagonismos de classe em geral e do imperialismo, que, sob esse aspecto, desempenha um papel considerável. Depois do “período revolucionário de 1789-1871” na Europa ocidental, o ano de 1905 inaugurou um período análogo para o Oriente. A guerra mundial se aproxima com uma rapidez perigosa.
Não se tratará mais, para o proletariado, de uma revolução prematura. Entramos no período revolucionário… A era revolucionária começa.
Essas declarações são muito claras. Essa brochura de Kautsky nos permitirá comparar o que prometia ser a social – democracia alemã antes da guerra imperialista e até onde ela caiu (e Kautsky com ela) no momento da guerra.
A situação atual – escrevia Kautsky – encerra o perigo de podermos facilmente ser tomados (nós, social-democratas alemães) por mais moderados que na realidade o somos.
Os fatos demonstraram que o partido social-democrata alemão era incomparavelmente mais moderado e mais oportunista do que parecia!
É tanto mais característico que, depois de ter tão categoricamente declarado aberta a era da revolução, Kautsky, em uma obra consagrada, segundo a sua própria expressão, à análise da “revolução política”, deixa de novo completamente de parte a questão do Estado.
De todas essas omissões, de todos esses silêncios, de todas essas escapatórias, só podia resultar, no fim de contas, uma passagem completa para o oportunismo, como vamos demonstrá-lo.
A social-democracia alemã, encarnada por Kautsky, parecia proclamar: Conservo as minhas idéias revolucionárias (1889); – reconheço a inelutabilidade da revolução social do proletariado (1902); reconheço que uma nova era de revoluções se abriu (1909); – mas, volto, entretanto, aos princípios proclamados por Marx em 1852, assim que se põe a questão do papel da revolução proletária em relação ao Estado (1912).
Foi o que apareceu categoricamente na polêmica com Pannekoek.
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(11) Marx, A Guerra Civil em França (N. de A.L.)
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Polêmica de Kautsky com Pannekoek
Pannekoek representava contra Kautsky a tendência radical de esquerda, compreendendo Rosa Luxemburgo, Karl Radek e outros, os quais, preconizando a tática revolucionária, partilhavam a convicção de que Kautsky se conduzia como “centrista”, oscilando, sem princípios, entre o marxismo e o oportunismo. A justeza dessa apreciação foi demonstrada pela guerra, durante a qual a política do “centro” (falsamente chamada marxista) ou do “kautskysmo” se revelou em toda a sua repugnante indigência.
Num artigo sobre a questão do Estado: A Ação de Massa e a Revolução (Neue Zeit, 1912, XXX, 2), Pannekoek caracteriza a posição de Kautsky como um “radicalismo passivo”, uma “teoria de espera inativa”. “Kautsky não quer ver o processo da revolução”. Pondo assim a questão, Pannekoek abordava o assunto que nos interessa: o papel da revolução proletária em face do Estado.
A luta do proletariado – escrevia ele – não é simplesmente uma luta contra a burguesia pelo poder governamental, é também uma luta contra esse poder… A revolução proletária consiste em aniquilar os meios de força do Estado e repeli-los (literalmente: dispersar, aufloesung) pelos meios de força do proletariado… A luta só terá fim uma vez atingido o resultado, uma vez a organização do Estado completamente destruída. A organização da maioria atesta a sua superioridade aniquilando a organização da minoria dominante.
As fórmulas com que Pannekoek envolve a sua idéia pecam grandemente. A idéia não deixa, por isso, de ser menos clara, e é interessante ver como Kautsky procura refutá-lo.
Até aqui – diz ele – a oposição entre os social-democratas e os anarquistas consistia em que os primeiros queriam conquistar o poder governamental, e os segundos destruí-lo. Pannekoek quer uma e outra coisa.
Se à exposição de Pannekoek faltam clareza e caráter concreto (sem falar dos outros defeitos do seu artigo, que não se relacionam com o nosso assunto), Kautsky aprendeu bem o princípio essencial e, nesse princípio essencial, ele renuncia inteiramente ao marxismo, para atirar-se em cheio no oportunismo. A distinção que ele estabelece entre os social-democratas e os anarquistas está completamente errada, e o marxismo foi definitivamente desnaturado e empobrecido.
A distinção entre os marxistas e os anarquistas consiste nisto: 1.º) os marxistas, embora propondo-se a destruição completa do Estado, não a julgam realizável senão depois da destruição das classes pela revolução socialista, como resultado do advento do socialismo, terminando na extinção do Estado; os anarquistas querem a supressão completa do Estado, de um dia para o outro, sem compreender as condições que a tornam possível; 2.º) os marxistas proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder político, destruir totalmente a velha máquina do Estado e substitui-la por uma nova, consistindo na organização dos operários armados, segundo o tipo da Comuna; os anarquistas, reclamando a destruição da máquina do Estado, não sabem claramente por que o proletariado a substituirá nem que uso fará do poder revolucionário, pois repudiam mesmo qualquer uso do poder político pelo proletariado revolucionário e negam a ditadura revolucionária do proletariado; 3.º) os marxistas querem preparar o proletariado para a revolução, utilizando-se do Estado moderno; os anarquistas repelem essa maneira de agir.
Nessa disputa, é Pannekoek que representa o marxismo contra Kautsky; foi de fato Marx que ensinou que o proletariado não pode apoderar-se do poder pura e simplesmente, o que não faria senão passar para novas mãos o velho aparelho do Estado, mas que deve quebrar, demolir esse aparelho e substituí-lo por um novo.
Kautsky abandona o marxismo pelo oportunismo; de fato, para ele não se trata de destruir a máquina do Estado, coisa completamente inadmissível para os oportunistas, mas de abrir-lhes, assim, uma brecha que permita interpretar a “conquista” do poder como uma simples aquisição da maioria.
Para dissimular essa deformação do marxismo, Kautsky, como bom escolástico, faz uma citação de Marx. Em 1850, Marx falava da necessidade de uma “centralização vigorosa nas mãos do Estado”. E Kautsky triunfa: Não quer Pannekoek destruir a “centralização”?
Eis um passe de mágica que lembra o de Bernstein identificando o marxismo como o proudhonismo, a propósito do federalismo e do centralismo.
A “citação” de Kautsky vem como um cabelo na sopa. A centralização é possível tanto com a velha como com a nova máquina de Estado. Se os operários unirem, voluntariamente, as suas forças armadas, isto será centralismo, mas assentando sobre a “destruição completa” do Estado centralista, do exército permanente, da polícia, da burocracia. Kautsky procede, na verdade, desonestamente, pondo de lado as observações admiráveis e famosas, de Marx e de Engels, a respeito da Comuna, para ir buscar uma citação que nada tem a ver com a questão.
Talvez Pannekoek queira suprimir as funções governamentais dos funcionários? – continua Kautsky. Mas nós não dispensamos os funcionários nem no partido, nem nos sindicatos, sem falar das administrações. O nosso programa reclama, não a supressão dos funcionários de Estado, mas a sua eleição pelo povo…
Trata-se agora, entre nós, não de saber que forma tomará o aparelho administrativo do “Estado futuro”, mas de saber que a nossa luta política destruirá (literalmente: dispensará, aufloesung) o poder governamental, antes de o termos conquistado (12). Qual o ministério que, com os seus funcionários, poderia ser abolido?
Ele enumera os ministérios da Instrução, da Justiça, das Finanças, da Guerra.
Não, nenhum ministério será suprimido pela nossa luta política contra o governo… Repito, para evitar mal entendidos, que se trata, não de se saber que forma dará ao “Estado futuro” a social-democracia vitoriosa, mas de saber como nossa oposição transformará o Estado atual.
É uma verdadeira escamoteação. Pannekoek tratava da revolução. O título de seu artigo e as passagens citadas o diziam claramente. Saltando para a questão da “oposição”, Kautsky substitui o ponto de vista revolucionário pelo ponto de vista oportunista. Afinal de contas, o seu raciocínio se reduz a isto: agora, oposição; depois da conquista do poder, falaremos de outra coisa. A revolução desaparece! É justamente do que precisavam os oportunistas.
Não se trata nem de oposição nem de luta política em geral, mas da revolução. A revolução consiste em que o proletariado demole o “aparelho administrativo” e o aparelho do Estado inteiro, para substituí-lo por um novo, isto é, pelos operários armados. Kautsky demonstra uma “veneração supersticiosa” pelos “ministérios”, mas por que não se poderia substituí-los, por exemplo, por comissões de especialistas, junto aos Sovietes soberanos e onipotentes de deputados operários e soldados?
O essencial não é que os “ministérios” subsistam, ou que sejam substituídos por “comissões de especialistas” ou de outro modo, pois isso não tem importância alguma. A questão essencial é saber se a velha maquinaria governamental (ligada à burguesia por milhares de fios, emperrada e rotineira) será conservada ou será destruída e substituída por uma nova máquina. A revolução não deve resultar em que a classe nova comande e governe por meio da velha máquina de Estado, mas em que, depois de ter destruído essa máquina, comande e governe por meio de uma nova máquina: eis a idéia fundamental do marxismo, que Kautsky dissimula ou que não compreendeu absolutamente.
Sua objeção a respeito dos funcionários prova, de modo evidente, que ele não compreendeu nem as lições da Comuna nem a doutrina de Marx. “Nós não dispensamos os funcionários nem no partido nem nos sindicatos… ”
Nós não dispensamos os funcionários em regime capitalista, sob a dominação da burguesia, quando o proletariado vive oprimido e as massas trabalhadoras são escravizadas. Em regime capitalista, a democracia é acanhada, truncada, desfigurada pela escravidão assalariada, a miséria e o pauperismo das massas. Eis a única razão por que, nas nossas organizações políticas e sindicais, os funcionários são corrompidos (ou, mais acertadamente, têm tendência a sê-lo) pelo meio capitalista e tendem a transformar-se em burocratas, isto é, em privilegiados destacados das massas e colocando-se acima delas.
Eis a essência do burocratismo, e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto a burguesia não for derrubada, será inevitável uma certa “burocratização”, dos próprios funcionários do proletariado.
Em suma, Kautsky diz isto. Enquanto existirem empregados eleitos, haverá funcionários; a burocracia subsistirá, pois, sob o regime socialista! Nada mais falso. Pelo exemplo da Comuna, Marx mostrou que, no regime socialista, os detentores de funções públicas deixam de ser “burocratas”, “funcionários”, e isto à medida que se estabelece, além da eleição a sua imovibilidade em qualquer tempo, à medida que se reduzem os seus vencimentos ao nível do salário médio de um operário e que se substituem as instituições parlamentares por instituições “de trabalho, isto é, que fazem e executam as leis”.
No fundo, toda a argumentação de Kautsky contra Pannekoek, e particularmente o seu admirável argumento colhido da necessidade de funcionários nas organizações sindicais e no Partido, se reduz a uma repetição dos velhos “argumentos” de Bernstein contra o marxismo. No seu livro As Premissas do Socialismo, o renegado Bernstein declara guerra à idéia de democracia “primitiva”, ao que ele chama “o democratismo doutrinário”, os mandatos imperativos, os empregos não remunerados, a representação central impotente, etc. Para provar a inconsistência do democratismo “Primitivo”, Bernstein invoca a experiência das trade-unions inglesas, interpretada pelos esposos Webb. As trade-unions, cujo desenvolvimento, no curso de setenta anos, se pretende se tenha dado em “plena liberdade”, ter-se-iam convencido da ineficácia do democratismo primitivo e o teriam substituído pelo parlamentarismo ordinário combinado com a burocracia.
Na realidade, as trade-unions não se desenvolveram “em plena liberdade”, mas em plena escravidão capitalista; elas “não podiam escapar”, nestas condições, à necessidade de fazer concessões ao flagelo reinante, à espoliação, à mentira, à exclusão dos pobres da administração superior. No regime socialista, muitos aspectos da democracia “primitiva” hão de necessariamente reviver, pois, pela primeira vez na história das sociedades civilizadas, a massa popular elevar-se-á até à participação independente, não só nos votos e nas eleições, como também na administração cotidiana. No regime socialista, toda a gente governará, por sua vez, e prontamente se habituará a que ninguém governe.
Com o seu gênio crítico e analítico, Marx viu, nas resoluções práticas da Comuna, esta revolução que tanto temem e se recusam a ver os oportunistas, por medo, por repugnância de romper definitivamente com a burguesia, e que os anarquistas se negam igualmente a ver, seja porque se apressam demais, seja porque não compreendem as condições para qualquer transformação social das massas em geral. “Não se deve sonhar em demolir a velha máquina do Estado; que viria a ser de nós sem ministérios nem funcionários?” Eis como raciocina o oportunista, penetrado de espírito filisteu e que, longe de crer na revolução e no seu gênio criador, tem dela um medo mortal .(como os nossos mencheviques e socialistas-revolucionários).
“Só se deve pensar em destruir a velha máquina de Estado; inútil querer sondar as lições concretas das revoluções proletárias passadas e analisar por quê e como se substituirá o que cai em ruínas”, assim raciocina o anarquista (o melhor dos anarquistas, naturalmente, e não aquele que, segundo Kropotkine & Cia., se arrasta atrás da burguesia); mas, também o anarquista chega, assim, à tática do desespero e não ao trabalho revolucionário concreto, intrépido, inexorável, ao mesmo tempo que atento, condicionado pelo movimento das massas.
Marx nos ensina a evitar esses dois erros: ele nos ensina a destruir ousadamente toda a velha máquina do Estado, e a colocar ao mesmo tempo a questão concreta: em algumas semanas, a Comuna pôde começar a reconstruir uma nova máquina de Estado proletária e eis por que medidas realizou ela uma democracia mais perfeita e suprimiu a burocracia. Aprendamos, pois, com os comunardos, a audácia revolucionária, vejamos nas suas medidas práticas um esboço das reformas fundamentais e imediatamente realizáveis, e, seguindo esse caminho, chegaremos à supressão completa da burocracia.
A possibilidade dessa supressão nos é assegurada pelo fato de que o socialismo reduzirá o dia de trabalho, elevará as massas a uma nova vida e colocará a maioria da população em condições que permitam a todos, sem exceção, o desempenho das “funções governamentais”, o que dará como resultado a extinção completa de todo Estado.
O papel da greve geral – continua Kautsky não pode consistir em destruir o poder político, mas unicamente em levar o governo a concessões sobre uma determinada questão ou em substituir um governo hostil ao proletariado por outro que vá ao encontro (entgegenkommende) das suas necessidades. Mas nunca, em caso algum, isso (essa vitória do proletariado sobre um governo hostil) pode levar à destruição do poder político; disso só pode resultar um certo deslocamento (Verscbiebung) de forças no interior do poder político… o nosso objetivo continua a ser, como no passado, a conquista do poder político pela aquisição da maioria do Parlamento e a transformação do Parlamento em governo soberano.
Eis ai o oportunismo mais puro e mais vulgar, a renúncia de fato à revolução que se reconhece verbalmente. O pensamento de Kautsky não vai além de um “governo favorável ao proletariado”. E é um grande passo atrás comparativamente a 1847, visto que o Manifesto Comunista proclamava “a organização do proletariado em classe dominante”.
Kautsky ver-se-á reduzido a realizar a “unidade”, que ele encarece com os Scheidemann, os Plekhanov, os Vandervelde, todos unânimes em lutar por um “governo favorável ao proletariado”.
Quanto a nós, romperemos com esses renegados do socialismo e lutaremos pela destruição de toda a velha máquina do Estado, a fim de que o proletariado armado se torne, ele próprio, o governo. Há governo e governo.
Kautsky ficará na amável companhia dos Legien e dos David, dos Plekhanov, dos Potressov, dos Tseretelli e dos Tchernov, todos partidários do “deslocamento das forças no interior do poder político”, da “aquisição da maioria no parlamento e da subordinação do governo ao Parlamento”, nobre ideal perfeitamente aceitável para os oportunistas, e que se mantém inteiramente no quadro da República burguesa parlamentar.
Quanto a nós, romperemos com os oportunistas; e o proletariado consciente estará totalmente conosco na luta, não para o “deslocamento das forças”, mas para o derrubamento da burguesia, para a destruição do parlamentarismo burguês, para uma República democrática do tipo da Comuna ou da República dos Sovietes de deputados, operários e soldados, para a ditadura revolucionária do proletariado.
O socialismo internacional contém correntes que se situam ainda mais à direita que a de Kautsky: a Revista Socialista Mensal da Alemanha (Legien, David, Kolbe e outros, inclusive os escandinavos Stauning e Branting), os jaurèsitas(13) e Vandervelde na França e na Bélgica, Turati, Treves e os outros representantes da direita do Partido Socialista italiano, os fabianos e os independentes (o Independent Labour Party (14), que na realidade sempre dependeu dos liberais) na Inglaterra, e tutti quanti. Esses senhores, que desempenham um papel considerável e muitas vezes preponderante na ação parlamentar e nas publicações do Partido, rejeitam abertamente a ditadura do proletariado e não disfarçam o seu oportunismo. Para eles, a ditadura do proletariado está “em contradição” com a democracia! No fundo, em nada de sério se distinguem dos democratas pequeno-burgueses.
Essa circunstância nos autoriza a concluir que a II Internacional, na imensa maioria de seus representantes oficiais, caiu completamente no oportunismo. A experiência da Comuna não só foi por ela esquecida, como deturpada. Longe de sugerir às massas operárias que se aproxima o momento em que elas deverão quebrar a velha máquina do Estado, substitui-la por uma nova e fazer da sua dominação política a base da transformação socialista da sociedade, sugeriram-lhe precisamente o contrário, e a “conquista do poder” foi apresentada de tal forma que mil brechas ficaram abertas ao oportunismo.
A deformação ou o esquecimento do papel que desempenhará a revolução proletária em relação ao poder não podia deixar de exercer uma influência considerável hoje, quando os Estados, providos de um aparelho militar reforçado pela concorrência imperialista, se tornaram uns monstros belicosos, exterminando milhões de homens para decidir quem é que reinará no mundo, se a Inglaterra ou a Alemanha, isto é, o capital financeiro inglês ou o capital financeiro alemão.
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(12) Grifado por Kautsky.
(13) Adeptos de Jean Jaurès. (N. de A.L.)
(14) O Partido Trabalhista Independente, fundado em 1893 na Inglaterra, deu lugar ao atual Partido Trabalhista (N. de A.L.).