Estado e Revolução – Parte 4 (V. I. Lenin, 1917)

Nota do blog: A seguir a quarta parte do documento Estado e Revolução (1917) de V. I. Lenin.

IV. Esclarecimentos complementares de Engels

Marx elucidou, em princípio, o sentido da experiência da Comuna. Engels retomou várias vezes esse tema, completando a análise e as conclusões de Marx e esclarecendo, por vezes, outros aspectos da questão, com um tal vigor e relevo que devemos deter-nos sobre esses esclarecimentos.

  1. O “problema da habitação”

No seu Problema da Habitação (1872), Engels baseia-se já na experiência da Comuna, detendo-se várias vezes sobre o papel da revolução em face do Estado. É interessante ver como, nessa matéria concreta, ele explica, de urna forma precisa, por um lado, os traços de semelhança entre o Estado proletário e o Estado atual, traços que permitem, num ponto ou noutro, falar-se em Estado, e, por outro lado, os traços que os contrapõem e que indicam a passagem para a supressão do Estado.

Como resolver o problema da habitação? Na sociedade atual, ele se resolve absolutamente da mesma maneira que qualquer outra questão social, isto é, pelo equilíbrio econômico que pouco a pouco se estabelece entre a oferta e a procura, solução esta que adia perpetuamente o problema e é o contrário de uma solução. A maneira pela qual a revolução social resolverá essa questão não depende somente das circunstâncias de tempo e de lugar; liga-se, também, a questões que vão muito mais longe sendo uma das principais a supressão do antagonismo entre a cidade e o campo. Como não temos que fantasiar sistemas utópicos de organização da sociedade futura, seria pelo menos ocioso determo-nos sobre o assunto. Uma coisa é, incontestável: é que atualmente, nas grandes cidades, há imóveis bastantes para satisfazer as necessidades reais de todos, sob a condição de serem utilizados racionalmente. Essa medida só é realizável, bem entendido, sob a condição de expropriar os proprietários atuais e de instalar em seus imóveis os trabalhadores sem habitação ou vivendo atualmente em habitações superlotadas. Conquistado o poder político pelo proletariado, essa medida, ditada pelo interesse público, será tão facilmente realizável como as expropriações e seqüestros de imóveis levados a efeitos atualmente pelo Estado.

O que se encara aqui não é a mudança de forma do poder político, mas a sua atividade. O Estado atual efetua expropriações e seqüestros de casas. Do ponto de vista formal, o Estado proletário “efetuará”, também, expropriações e seqüestros de imóveis. Mas, é claro que o antigo aparelho executivo, em outras palavras, o corpo de funcionários, inseparável da burguesia, seria inteiramente incapaz de executar as decisões do Estado proletário.

É preciso constatar que a apropriação, feita pelo povo trabalhador, de todos os instrumentos de trabalho e de toda a indústria está em completa oposição com o “resgate” preconizado por Proudhon. Segundo este, cada operário torna-se proprietário de sua habitação, do seu palmo de terra e das suas ferramentas, enquanto que no outro sistema é o “povo trabalhador” em bloco que fica proprietário das casas, das fábricas e dos instrumentos de trabalho. O usufruto dessas casas, fábricas, etc., pelo menos no período de transição, não pode ser atribuído aos indivíduos ou às sociedades privadas, sem indenização. Assim também, a supressão da propriedade fundiária não implica na supressão da renda fundiária, mas na sua entrega à sociedade, pelo menos sob uma forma um pouco modificada. Por conseqüência, a posse real de todos os instrumentos de trabalho pelo povo trabalhador não exclui de modo algum a conservação do aluguel e da locação.

No capítulo seguinte, examinaremos a questão, aqui apenas tocada, das bases econômicas do definhamento do Estado. Engels exprime-se com uma prudência extrema quando diz que o Estado proletário “não poderá” distribuir as habitações sem aluguel, “pelo menos no período de transição”. A locação das habitações, propriedade de todo o povo, a esta ou àquela família, mediante um determinado aluguel, acarreta a percepção desse aluguel, um certo controle e o estabelecimento de determinadas normas de distribuição das habitações. Tudo isso exige uma determinada forma de Estado, mas não carece, de modo algum, de um aparelho militar e burocrático especial, com funcionários privilegiados. Assim, a passagem para um estado de coisas em que se possam fornecer habitações gratuitamente depende do “definhamento” total do Estado.

Falando dos blanquistas (7), que, depois da Comuna e instruídos pelas suas lições, adotaram os princípios gerais do marxismo, Engels enuncia de passagem esses princípios, da seguinte forma:

Necessidade da ação política e da ditadura do proletariado, com transição para a supressão das classes e, ao mesmo tempo, do Estado.

É possível que certos amadores de crítica literária, certos burgueses, “devoradores de marxismo”, vejam uma contradição entre essa afirmação da “supressão do Estado” e a negação dessa mesma fórmula, considerada como anarquista, na citação que fizemos do Anti-Dühring. Não seria de admirar que os oportunistas também enfileirassem Engels no número dos “anarquistas”. Nos nossos tempos, é hábito cada vez mais espalhado entre os social-patriotas acusar de anarquismo os internacionalistas.

Que a supressão do Estado deva coincidir com a supressão das classes, eis o que o marxismo sempre ensinou. A célebre passagem do Anti-Dühring sobre o definhamento do Estado não acusa os anarquistas de quererem a supressão do Estado, mas, sim, de pretenderem que ela se realize “de um dia para outro”.

Tendo os doutrinários da “social-democracia” falseado completamente as relações entre o marxismo e o anarquismo no que respeita à questão da supressão do Estado, é conveniente recordar uma polêmica de Marx e Engels com os anarquistas.


(7) Partidários de Blanqui (N. de A.L.)

 

  1. Polêmica com os anarquistas

Essa polêmica remonta a 1873. Marx e Engels tinham inserto, numa publicação socialista italiana, uns artigos contra os prudhonianos “autonomistas” ou “antiautoritários”, e só em 1913 é que esses artigos apareceram na Neue Zeit, em tradução alemã.

Se a luta política da classe operária – escrevia Marx ridicularizando os anarquistas pela sua negação da política – adquire formas revolucionárias, se os operários, em lugar da ditadura da burguesia, estabelecem a sua ditadura revolucionária, cometem um espantoso crime de lesa-princípios, pois que, para satisfazerem as necessidades do momento, necessidades lamentáveis e profanas, para quebrarem a resistência da burguesia, dão ao Estado uma forma revolucionária e passageira, em vez de deporem as armas e suprimirem o Estado.

Eis aí essa apregoada “supressão” do Estado contra a qual Marx protestava tão violentamente na sua polêmica com os anarquistas! Não é, de maneira nenhuma, contra o desaparecimento do Estado simultaneamente ao das classes, nem contra a abolição do Estado simultaneamente à abolição das classes, mas contra a renúncia dos operários a fazer uso das suas armas, a organizar o emprego da força, isto é, o emprego do Estado, para “quebrar a resistência da burguesia”, que se insurgia Marx.

Marx sublinha propositadamente, afim de que não deturpem o verdadeiro sentido da sua luta contra o anarquismo, “a forma revolucionária e passageira” do Estado, necessária ao proletariado. O proletariado precisa do Estado só por um certo tempo. Sobre a questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os exploradores, os instrumentos, os meios e os processos de poder político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é indispensável a ditadura provisória da classe oprimida. Marx escolhe a forma mais incisiva e clara de colocar a questão contra os anarquistas: repelindo o “jugo dos capitalistas”, devem os operários “depor as armas”, ou, ao contrário, delas fazer uso contra os capitalistas, a fim de quebrar-lhes a resistência? Ora, se uma classe faz sistematicamente uso das suas armas contra uma outra classe, que é isso senão uma “forma passageira” de Estado?

Que todo social-democrata pergunte a si mesmo: Foi a questão do Estado bem colocada na polêmica com os anarquistas? Foi essa questão bem colocada pela imensa maioria dos partidos socialistas oficiais da II Internacional?

Engels desenvolve as mesmas idéias por uma forma bem mais detalhada e mais popular. Em primeiro lugar, põe a ridículo o erro dos prudhonianos, que se intitulam “antiautoritários”, isto é, inimigos de toda autoridade, de toda subordinação, de todo poder. Suponhamos uma fábrica, uma estrada de ferro ou um navio no alto-mar – diz Engels. Não será evidente que, sem uma certa subordinação e, por conseqüência, uma certa autoridade ou um certo poder, é impossível fazer funcionar qualquer desses aparelhos técnicos complicados, baseados no emprego das máquinas e na colaboração metódica de um grande número de pessoas?

Se eu opuser esses argumentos – escreve Engels – aos adversários exasperados da autoridade, eles se entrincheirarão atrás desta única resposta: “Sim, é verdade, mas não se trata da autoridade que conferimos a esses delegados, e sim da missão de que os encarregamos”. Essa gente imagina que pode mudar as coisas modificando-lhes o nome. Assim, esses profundos pensadores zombam realmente do mundo.

Depois de ter assim demonstrado que autoridade e autonomia são noções relativas, que o seu emprego varia segundo as fases do desenvolvimento social e que é absurdo considerá-las como absolutas; depois de ter acrescentado que o papel das máquinas e da grande indústria vai aumentando constantemente, Engels passa, das considerações gerais sobre a autoridade, para a questão do Estado.

Se os autonomistas se tivessem contentado em dizer que a organização social do futuro não admitirá a autoridade senão nos limites que lhe são traçados pelas condições mesmas da produção, poderíamos entender-nos com eles; mas eles são cegos para todos os fatos que tomam indispensável a autoridade, e declaram guerra a esta palavra.

Por que é que os adversários da autoridade não se limitam a gritar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estudo e, com ele, a autoridade política desaparecerão em conseqüência da revolução social futura; isso significa que as funções públicas perderão o seu caráter político e transformar-se-ão em simples funções administrativas que zelarão pelos interesses sociais. Mas, os adversários da autoridade exigem que o Estado político seja suprimido de uma vez, antes mesmo que sejam suprimidas as condições sociais que o criaram. Reclamam que o primeiro ato da revolução social seja a supressão da autoridade.

Esses senhores já terão visto alguma revolução?

Uma revolução é, certamente, a coisa mais autoritária que há, um ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra, com auxílio dos fuzis, das baionetas e dos canhões, meios por excelência autoritários; e o partido que triunfou tem de manter a sua autoridade pelo temor que as suas armas inspiram aos reacionários. Se a Comuna de Paris não se tivesse utilizado, contra a burguesia, da autoridade do povo em armas, teria ela podido viver mais de um dia? Não poderemos, pelo contrário, censurá-la por não ter recorrido suficientemente a essa autoridade?

Assim, pois, de duas uma: ou os adversários da autoridade não sabem o que dizem, e nesse caso só fazem criar a confusão, ou o sabem, e nesse caso traem a causa do proletariado. Em qualquer dos casos não fazem senão servir à reação.

As questões abordadas nessa passagem serão examinadas no capítulo seguinte, quando tratarmos das relações da política e da ciência econômica no momento do definhamento do Estado, como sejam a questão da transformação das funções públicas, de funções políticas que são, em simples funções administrativas, e a do “Estado político “. Esta última expressão, suscetível, aliás, de provocar mal-entendidos, evoca o processo do definhamento do Estado: um momento há em que o Estado em vias de definhar pode ser chamado de não-político.

Na passagem de Engels, o que há de mais notável é a forma como ele coloca a questão contra os anarquistas. Os social-democratas, que pretendem ser discípulos de Engels, desde 1873 já entraram milhões de vezes em polêmica com os anarquistas, mas o fizeram precisamente como os marxistas não podem nem devem fazê-lo. A idéia da supressão do Estado, nos anarquistas, é confusa e desprovida de alcance revolucionário – foi como Engels pôs a questão. Os anarquistas recusam-se justamente a ver a revolução na sua origem e no seu desenvolvimento, nas suas tarefas próprias em face da violência, da autoridade, do poder e do Estado.

A crítica do anarquismo, para os social-democratas contemporâneos, reduz-se a esta pura banalidade burguesa: “Nós somos partidários do Estado, os anarquistas não!”. Compreende-se que uma tal chatice não deixe de provocar a aversão dos operários, por menos refletidos e revolucionários que sejam. A linguagem de Engels é outra: ele faz ver que todos os socialistas admitem o desaparecimento do Estado, como uma conseqüência da revolução socialista. Em seguida, ele formula concretamente a questão da revolução, a questão precisamente que os social-democratas oportunistas deixam habitualmente de lado, abandonando, por assim dizer, aos anarquistas o monopólio desse “estudo”. Ao formular essa questão, Engels pega o boi pelos chifres: não deveria ter a Comuna se utilizado melhor do poder revolucionário do Estado, isto é, do proletariado armado, organizado como classe dominante?

A social-democracia oficial e majoritária tem sempre evitado a questão da missão concreta do proletariado na revolução, ora por um simples sarcasmo farisaico, ora, quando muito, por esta frase evasiva e sofisticada: “Mais tarde se verá!”. Mas, também, estão os anarquistas em boa situação para revidar a essa social-democracia que ela está faltando ao seu dever, que é o de fazer a educação revolucionária dos operários. Engels, esse, aproveita a experiência da última revolução proletária para estudar, da forma mais concreta, as medidas que o proletariado deve tomar em relação aos Bancos e ao Estado, e como deve torná-las.

  1. Carta a Bebel

Uma das mais notáveis, senão a mais notável, das passagens de Marx e Engels, a propósito do Estado, é o seguinte trecho de uma carta de Engels a Bebel, de 18-28 de março de 1875. Notaremos, entre parênteses, que essa carta foi impressa, pela primeira vez, se não nos falha a memória, em 1911, no tomo 11 das Memórias de Minha Vida, de Bebel, isto é, trinta e seis anos depois de redigida e enviada. Criticando o projeto do programa de Gotha, igualmente criticado por Marx na sua célebre carta a W. Bracke, Engels trata especialmente da questão do Estado, e escreve a Bebel:

O livre Estado popular transforma-se em Estado livre. Ora, gramaticalmente, um Estado livre é um Estado que é livre em relação aos seus cidadãos e, por conseguinte, um Estado com um governo despótico. Seria preciso decidir, de uma vez por todas, toda a tagarelice a respeito do Estado, principalmente depois da Comuna, que já não era um Estado no sentido próprio da palavra. Os anarquistas já nos quebraram bastante a cabeça com o “Estado popular”, muito embora Marx, já na sua obra contra Proudhon e, depois, no Manifesto Comunista, tenha dito expressamente que, com o advento do regime socialista, o Estado se dissolverá por si próprio (sich auflost) e desaparecerá. Como o Estado não é, afinal, senão uma organização provisória que se emprega na luta durante a revolução, para esmagar pela força o adversário, falar de um Estado popular livre é um contra-senso. Enquanto o proletariado ainda usa o Estado, não o faz no interesse da liberdade, mas sim para triunfar sobre o adversário, e, desde que se possa falar de liberdade, o Estado como tal deixará de existir. Portanto, proporíamos substituir por toda parte a expressão Estado por Gemeinweisen, velha e excelente palavra alemã, cujo sentido equivale ao da palavra Commune em francês.

É preciso notar que esta carta se refere ao programa do partido, criticado por Marx numa carta escrita apenas algumas semanas depois daquela (a carta de Marx é de 5 de maio de 1875), e que Engels vivia então com Marx em Londres. Não há dúvida, portanto, de que Engels, que diz “nós”, na primeira frase, fala em seu próprio nome e no de Marx, quando propõe ao chefe do partido operário alemão suprimir no programa a palavra “Estado”, substituindo-a pela palavra “Comuna”.

Como não gritariam logo contra o anarquismo os chefes do “marxismo” moderno temperado ao sabor do oportunismo, se fosse proposta uma tal emenda ao seu programa!

Pois que berrem; a burguesia os louvará.

Quanto a nós, cumpriremos a nossa tarefa. Revendo o programa do nosso partido, devemos ter absolutamente em conta o conselho de Engels e de Marx, para nos aproximarmos da verdade, para ressuscitarmos o verdadeiro marxismo, purificado de todas as falsificações, para melhor dirigirmos a classe operária na luta pela sua libertação. É pouco provável que a recomendação de Engels e Marx encontre adversários entre os bolcheviques. Não há, a nosso ver, senão uma dificuldade de vocabulário. Em alemão, há duas palavras para significar “Comuna”; e Engels escolheu, não a que designa uma comuna determinada, mas a que exprime um conjunto, um sistema de comunas. Em russo, não existe o termo equivalente, e teremos que recorrer talvez ao francês “Commune”, apesar de oferecer também os seus inconvenientes.

“A Comuna já não era um Estado, no sentido rigoroso da palavra”, eis a afirmação de Engels, capital sob o ponto de vista teórico. Depois do desenvolvimento acima dado, esta afirmação é perfeitamente compreensível. A Comuna deixava de ser um Estado, pois que não tinha mais a oprimir a maioria da população, mas sim uma minoria (os exploradores); quebrara a máquina de Estado burguesa, já não era uma força especial de opressão, era o próprio povo que entrava em cena. Tudo isto já não corresponde à definição de Estado no sentido literal da palavra. Se a Comuna se tivesse mantido, os vestígios do Estado ter-se-iam “extinto” automaticamente; ela não teria tido a necessidade de “suprimir” as suas instituições, que teriam cessado de funcionar à medida que não tivessem mais emprego.

“Os anarquistas nos quebram a cabeça com o Estado popular”. Ao dizer isso, Engels tem em vista principalmente Bakunine e seus ataques contra os social-democratas alemães. Engels reconhece a justeza desses ataques na medida em que o “Estado popular” é um contra-senso e uma concepção estranha ao socialismo, tão condenável como o “Estado popular livre”. Engels esforça-se por retificar a ação dos social-democratas alemães contra os anarquistas, por basear esta ação em princípios justos, por libertá-la dos preconceitos oportunistas a respeito do “Estado”. Mas – ai! – a carta de Engels dormiu trinta e seis anos numa gaveta. Mais adiante, veremos que, mesmo depois da publicação dessa carta, Kautsky se obstina a repetir, no fundo, os mesmos erros contra os quais Engels prevenia.

Bebel respondeu a Engels em 21 de setembro de 1875. Entre outras coisas, declara estar “inteiramente de acordo” com ele a respeito do programa e que censurou Liebknecht por seu espírito conciliador. Ora, se abrirmos a brochura de Bebel, intitulada Os Nossos Objetivos, veremos nela, a respeito do Estado, considerações inteiramente errôneas: “O Estado baseado na dominação de uma classe deve ser transformado em Estado popular”. (Unsere Ziele, edição alemã, 1886, página 14).

Eis o que está impresso na 9.ª (nona!) edição da brochura de Bebel. Não é de admirar que a social-democracia alemã tenha teimado tanto em repisar essas considerações oportunistas sobre o Estado, tanto mais quanto os comentários revolucionários de Engels ficavam no tinteiro e que as circunstâncias faziam com que os social-democratas “desaprendessem” a revolução.

  1. Critica do projeto do programa de Erfurt

A crítica do projeto do programa de Erfurt, enviada por Engels a Kautsky em 29 de junho de 1891 e publicada somente dez anos mais tarde na Neue Zeit, não pode ser desprezada numa análise da doutrina marxista sobre o Estado, porque é consagrada precisamente à critica das concepções oportunistas da social-democracia no que concerne ao Estado.

Note-se de passagem, que, sobre as questões econômicas, Engels, na sua carta a Kautsky, dá uma indicação extremamente preciosa, que mostra com que atenção e profundeza de pensamento ele seguia as transformações do capitalismo moderno e como pressentiu, assim, até certo ponto, os problemas da nossa época imperialista. Essa indicação é a seguinte. A propósito da expressão “ausência de plano” (PIanlosigkeit), empregada no projeto de programa, para caracterizar o capitalismo, escreve Engels:

Se, das sociedades por ações, passarmos aos trustes que comandam e monopolizam ramos inteiros da indústria, veremos cessar não só a produção privada como ainda a ausência de plano. (Neue Zeit, XX, 1901-1902, vol. 1, p. 8).

Temos aqui o traço fundamental, do ponto de vista teórico, do capitalismo moderno ou imperialismo, sob cujo regime o capitalismo se transforma em capitalismo de monopólios. Isso convém ser acentuado, pois um dos erros mais espalhados é o dos reformistas burgueses, para quem o capitalismo dos monopólios, privado ou de Estado, já não sendo mais capitalismo, poderá ser chamado de “socialismo de Estado”. Os trustes nunca chegaram até hoje e nunca chegarão a uma organização da produção inteiramente calculada sobre, um plano. Mas, na medida em que instituem uma certa organização metódica e calculada, na medida em que os magnatas do capital calculam antecipadamente o rendimento da produção nacional e mesmo internacional, na medida em que regulam essa produção segundo um plano, não deixamos por isso de estar em regime capitalista, se bem que numa nova fase desse regime. O ‘parentesco” desse capitalismo com o socialismo deve ser, para os verdadeiros representantes do proletariado, um argumento em favor da proximidade, da facilidade, da possibilidade, da necessidade imediata da revolução socialista, e não um pretexto para se mostrarem tolerantes com os que, como os reformistas, repudiam essa revolução e pintam do capitalismo um quadro encantador.

Mas, voltemos à questão do Estado. Engels, na sua carta a Kautsky, nos fornece três indicações particularmente preciosas: a primeira, sobre a República; a segunda, sobre a relação entre a questão nacional e a organização do Estado; e, finalmente, a terceira, sobre a administração local.

Engels volta a sua crítica principalmente para a questão da República. Se nos lembrarmos da importância que o programa de Erfurt adquiriu na social-democracia de todos os países e de que ele serviu de modelo para toda a II Internacional, poderemos dizer sem exagero que Engels critica, aqui, o oportunismo da 11 Internacional inteira.

As reivindicações políticas do projeto, escreve ele, têm um grande defeito. O que era necessário dizer antes de tudo, não foi dito(8).

Engels, mais adiante, demonstra que a constituição alemã é uma cópia da constituição ultra-reacionária de 1850; que o Reichtag não é, segundo a expressão de Wilhelm Liebknecht, senão a “folha de parra do absolutismo”, e que pretender realizar, na base de uma constituição que consagra a existência de pequenos Estados alemães e da confederação desses pequenos Estados, a “transformação dos meios de produção em propriedade comum”, é “manifestamente absurdo”.

“É perigoso tocar nisso”, acrescenta Engels, sabendo muito bem que, na Alemanha, não se pode inscrever legalmente no programa a República. Mas ele não se conforma sem mais nem menos com esta consideração com que “todos” se contentam, e continua:

Mas, no entanto é preciso, de um modo ou de outro, atacar a questão. E o que prova precisamente, hoje, quanto isso é necessário é o oportunismo que começa a fazer estragos numa grande parte da imprensa social-democrata. Pelo temor de um restabelecimento da lei contra os socialistas, sob a influência de toda sorte de opiniões levianamente emitidas durante a vigência dessa lei, pretende-se agora que o partido reconheça a situação legal atual na Alemanha como suficiente, de uma vez por todas, para a realização de todas as nossas reivindicações pela via pacifica.

Que os social-democratas alemães tenham agido sob o receio do revigoramento da lei de exceção, tal é o fato essencial que Engels faz ressaltar e que sem rodeios classifica de oportunismo. Declara que é precisamente por falta de República e de liberdade na Alemanha que são insensatos os sonhos de ação “pacífica”. Engels, tem o cuidado de não se atar as mãos. Concede que, nos países de República ou de grande liberdade, “pode-se conceber” (apenas “conceber”!) uma evolução pacífica para o socialismo; mas, na Alemanha, repete ele:

O mesmo não se dá na Alemanha, onde o governo é quase onipotente e onde o Reichtag e todos os outros corpos representativos são desprovidos de poder real; e proclamar semelhantes coisas na Alemanha, ainda sem necessidade alguma, é retirar ao absolutismo a folha de parra para cobrir com ela a própria nudez.

Efetivamente são, na sua grande maioria, os chefes oficiais da social-democracia alemã que vêm encobrindo o absolutismo e deixando no tinteiro os avisos de Engels.

Uma tal política só pode acabar iludindo o nosso próprio partido. Põem-se no primeiro plano as questões políticas gerais e abstratas, e ocultam-se, assim, as questões concretas mais urgentes, as questões que diante dos primeiros acontecimentos importantes, diante da primeira crise política, surgirão por si mesmas na ordem do dia. Que resultará disto senão que, de repente, no momento decisivo, o partido será tomado de surpresa e que haverá confusão e divergências sobre os pontos mais decisivos, visto que esses postos nunca foram discutidos?

Esse esquecimento dos pontos de vista principais diante dos interesses momentâneos do dia, essa competição desenfreada ao sucesso do momento, sem a preocupação das conseqüências ulteriores, esse abandono do futuro movimento em favor do presente, tudo isso talvez tenha o seu ponto de partida em interesses “honestos”, mas é e será sempre oportunismo, e talvez seja o oportunismo “honesto” mais perigoso de todos…

O que é absolutamente certo é que o nosso partido e a classe operária só podem chegar ao poder sob a forma da República democrática. É mesmo essa a forma específica da ditadura do proletariado, como já o demonstrou a grande Revolução francesa.

Engels não faz mais que repetir aqui, com mais relevo, a idéia fundamental de todas as obras de Marx, ou seja que a República democrática é a etapa que conduz diretamente à ditadura do proletariado. Não é essa República, de fato, que porá termo à dominação do Capital nem, por conseguinte, à servidão das massas e à luta de classes; mas, dará a essa luta uma profundidade, uma extensão, uma rudeza tais que, uma vez surgida a possibilidade de satisfazer os interesses essenciais das massas oprimidas, essa possibilidade se realizará fatalmente e unicamente pela ditadura do proletariado, arrastando consigo as massas. Para toda a II Internacional, essas são ainda “palavras esquecidas” do marxismo, e esse esquecimento manifestou-se de forma flagrante na história do Partido menchevique durante os primeiros seis meses da revolução russa de 1917.

A propósito do problema das nacionalidades e da República federativa, escreve Engels:

“Que deve substituir a Alemanha atual?” (com a sua constituição monárquica reacionária e a sua subdivisão, não menos reacionária, em pequenos Estados, subdivisão que perpetua o “prussianismo”, em vez de absorvê-lo dentro de toda a Alemanha).

Na minha opinião, o proletariado só pode utilizar a forma dita República una e indivisível. No domínio imenso dos Estados Unidos, a República federativa é ainda hoje, em suma, uma necessidade, embora já comece a ser um entrave no Estado. Ela seria um progresso na Inglaterra, onde as duas ilhas são habitadas por quatro nações e onde, a despeito do Parlamento único, existem, simultaneamente, já hoje, três sistemas diferentes de leis. Tomou-se, há muito tempo, um obstáculo na pequena Suíça, suportável somente porque a Suíça se contenta com um papel de membro puramente passivo no sistema europeu de Estados. Para a Alemanha, uma organização federalista à moda suíça seria um enorme regresso. Dois traços distinguem um Estado federativo de um Estado unitário: primeiramente, é que cada Estado confederado, cada cantão, tem o seu próprio Código civil e penal, sua própria organização judiciária; em seguida, é que, a par de uma Câmara do povo, há uma Câmara dos Estados, na qual cada cantão, pequeno ou grande, vota como cantão…

Aliás (na Alemanha), o nosso “Estado federativo” é, em geral, uma transição para o Estado unitário. E não nos cabe fazer retrogradar a “revolução de cima” feita em 1866 e 1870; ao contrário, devemos é dar-lhe o complemento e o melhoramento necessários por um movimento de baixo.

Não só Engels não se desinteressa pelas formas do Estado como se esforça por analisar, com a maior atenção, as formas transitórias, para determinar, segundo suas particularidades históricas e concretas, a natureza da etapa que elas assinalam: de onde, para onde.

Engels, da mesma forma que Marx, defende, do ponto de vista do proletariado e da revolução proletária, a centralização democrática, a República una e indivisível. Ele considera a República federativa, seja como uma exceção à regra e um obstáculo ao desenvolvimento, seja como uma transição entre a monarquia e a República centralizada, seja como um “progresso” em certos casos determinados, quando, por exemplo, se apresenta a questão das nacionalidades.

Criticando impiedosamente, embora, o espírito reacionário dos pequenos Estados, embora se insurgindo contra a tendência de utilizar a questão nacional para fins reacionários, nem Engels nem Marx procuram evitar essa questão – falta essa freqüentemente cometida pelos marxistas holandeses e polacos, ainda que o seu ponto de partida (a luta contra o nacionalismo estreitamente burguês de “seus” pequenos Estados) seja absolutamente legítimo.

Mesmo na Inglaterra, onde as condições geográficas, a comunidade de língua e uma história mais que secular puseram termo, segundo parece, às brigas nacionais, Engels reconhece nitidamente que a etapa das querelas nacionais ainda não foi ultrapassada e que a República federativa constituiria um “progresso”. Bem entendido, ele está longe de renunciar à crítica dos defeitos da República federativa e à agitação mais resoluta em favor da República unitária, centralizada, democrática.

Apenas, essa centralização democrática, entende-a Engels, não no sentido burocrático em que a entendem habitualmente os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses, inclusive os anarquistas. Para Engels, a centralização não exclui de forma alguma uma ampla autonomia local, que permita a supressão completa de todo burocratismo e de toda “ordem” do alto, contanto que as comunas e as regiões mantenham espontaneamente a unidade do Estado. Engels desenvolve os pontos de vista que constituem o programa marxista sobre a questão do Estado.

Assim, pois, República unitária. Mas, não no sentida da República francesa atual, que não é outra coisa senão o império fundado em 1799, sem imperador. De 1792 a 1799, cada departamento francês, cada comuna (Gemeinde) teve uma autonomia completa, segundo o modelo americano; e é o de que também precisamos. Como organizar essa administração, foi o que nos mostraram a América e a primeira República francesa; é o que nos mostram ainda hoje a Austrália, o Canadá e as outras colônias inglesas. Uma tal autonomia provincial e comunal é muito mais livre que, por exemplo, o federalismo suíço, onde, sem dúvida, o cantão é muito independente em face da Confederação, mas onde ele também o é em face do distrito (Bezírk) e da comuna. São os governos cantonais que nomeiam os governadores de distrito (Bezirksstatthalter) e os prefeitos, que não se conhecem nos países de língua inglesa e que, no futuro, pediremos sejam dispensados, da mesma forma que os conselheiros provinciais e governamentais (Landrat e Regierungsrat) prussianos.

Assim, Engels propõe que se redija da seguinte forma o artigo do programa relativo ao self-government:

Administração autônoma completa na província, no distrito, na comuna, com funcionários eleitos por sufrágio universal. Supressão de todas as autoridades locais e provinciais nomeadas pelo governo.

Na Pravda, n.º 68, maio de 1917, interdita pelo governo de Kerensky e dos outros ministros ditos a “socialistas”, já tive ocasião de mostrar que, nesse ponto, como em muitos outros, os nossos pseudo-representantes socialistas de uma pseudodemocracia pretensamente revolucionária, se afastam indignamente do princípio democrático. Claro está que essa gente, ligada pela sua “coligação” com a burguesia imperialista, se manteve surda às minhas palavras.

É muito importante notar que Engels, servindo-se de fatos, desmente, com exemplos precisos, o preconceito extraordinariamente propagado, principalmente na democracia pequeno-burguesa, de que uma República federativa é forçosamente mais liberal do que uma República centralizada. Isso é falso. A prova está nos fatos citados por Engels e relativos à República francesa, centralizada, de 1792 a 1799, e à República federativa suíça. Com efeito, a República democrática centralizada deu mais liberdade que a República federativa. Por outras palavras: o máximo de liberdade local, regional ou qualquer outra, conhecido na história, foi atingido pela República centralizada e não pela República federativa.

A nossa propaganda partidária sempre teve e continua a ter muito pouco em conta esse fato, como em geral tudo o que diz respeito ao federalismo, à centralização e à autonomia local.


(8) Grifado por Engels.

  1. O Prefácio de 1891 à ‘Guerra Civil’ de Marx

No prefácio da terceira edição da Guerra Civil em França, datado de 18 de março de 1891 e publicado primeiramente na Neue Zeit, a par de reflexões incidentes do mais alto interesse sobre o Estado, Engels dá um notável resumo das lições da Comuna. Esse resumo, enriquecido com toda a experiência dos vinte anos decorridos desde a Comuna, e que é especialmente dirigido contra essa “crença supersticiosa no Estado” tão espalhada na Alemanha, pode, a justo título, ser considerado a última palavra do marxismo sobre a questão.

Em França, depois de cada revolução, observa Engels, os operários continuavam armados:

E o primeiro cuidado dos burgueses chegados ao poder era desarmá-los. Assim, após cada revolução em que o povo combatera, uma nova batalha rebentava, a qual terminava pelo esmagamento dos trabalhadores.

Esse resumo da experiência das revoluções burguesas é tão sucinto quanto expressivo. A natureza do problema – entre outras, na questão do Estado (a classe subjugada possui armas?) – está admiravelmente bem apanhada. É esse precisamente o ponto que os professores influenciados pela ideologia burguesa e os democratas da pequena burguesia silenciam. Na revolução russa de 1917, o menchevique Tseretelli, “marxista de meia-tigela”, teve a honra (a honra de um Cavaignac) de trair, por descuido, esse segredo das revoluções burguesas. No seu discurso “histórico” de 9 de junho, Tseretelli teve a imprudência de anunciar que a burguesia estava resolvida a desarmar os operários de Petrogrado, resolução que ele apresentava como sendo também a sua e como uma necessidade “política” em geral.

O discurso histórico de Tseretelli será, para qualquer historiador da revolução de 1917, uma das melhores provas de que o bloco dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, dirigido por Tseretelli, tinha abraçado a causa da burguesia contra o proletariado revolucionário.

De passagem, Engels faz outra observação ligada igualmente à questão do Estado e relativa à religião. Como se sabe, a social-democracia alemã, à medida que a gangrena oportunista a tomava, caía cada vez mais numa interpretação errônea e sofística da célebre fórmula: “A religião é questão privada”. Essa fórmula era interpretada como se, para o partido do proletariado revolucionário, a religião fosse uma questão privada! Contra essa traição formal do programa revolucionário do proletariado, insurgiu-se Engels, que, em 1891, ainda não podendo observar, em seu partido, senão germes muito fracos de oportunismo, se exprime com grande prudência.

Como na Comuna só houvesse operários ou representantes reconhecidos da classe operária, seus decretos foram marcados de um cunho nitidamente proletário. Sua obra consiste, com efeito, ou em reformas que a burguesia republicana abandonara por covardia e que constituíam a necessária base para o desenvolvimento livre do proletariado como, por exemplo, as medidas inspiradas no princípio de que, em relação ao Estado, a religião é coisa privada – ou em reformas que interessavam diretamente a classe operária e, por vezes, abriam fundas brechas na antiga ordem social.

Foi intencionalmente que Engels sublinhou as palavras “em relação ao Estado”, atacando assim, de frente, o oportunismo alemão, que declarava a religião uma questão privada em relação ao partido e que rebaixava assim o partido do proletariado revolucionário ao nível das mais pequena burguesia “livre pensadora”, pronta a admitir a neutralidade em matéria religiosa, mas repudiando a luta do partido contra a religião, ópio do povo.

O futuro historiador da social-democracia alemã, aprofundando as causas da vergonhosa bancarrota desse partido em 1914, encontrará sobre a questão muito material interessante, desde as declarações evasivas do principal teórico do partido, Kautsky, declarações que escancaravam a porta ao oportunismo, até a atitude do partido em relação ao Losvon-Kirche-Bewegung (movimento de separação da Igreja) em 1913.

Mas, vejamos como, vinte anos depois da Comuna, Engels resumia os ensinamentos por ela dados ao proletariado militante.

Eis os ensinamentos que Engels coloca em primeiro plano:

E o exército, a polícia, a burocracia, esses instrumentos de opressão de que se tinham servido todos os governos até então, que Napoleão criara em 1799 e que, depois disso, todo novo governo acolhera como preciosos instrumentos de dominação – que pretendia fazer deles a Comuna? Ora, precisamente destruí-los; por toda a parte, como já o estavam em Paris!

A Comuna teve logo que reconhecer que a classe operária, ao chegar ao poder, não podia servir-se da antiga máquina governamental, e que, para não cair sob o jugo de novos senhores, devia abolir todo o sistema de opressão que, até então, só funcionara contra ela, e precaver-se contra seus próprios subordinados e funcionários, declarando os amovíveis, sem exceção e em qualquer tempo.

Engels acentua, mais uma vez, que, não só numa monarquia como também numa República democrática, o Estado continua a ser Estado, isto é, conserva o seu caráter distintivo fundamental, que é o de transformar os empregados, órgãos e “servidores da sociedade”, em senhores da sociedade.

Para evitar essa transformação – até então inevitável em todos os regimes – do Estado, de servidor em senhor da sociedade, a Comuna empregou dois meios infalíveis. Primeiro, ela submeteu todos os cargos, na administração, a justiça e o ensino, à escolha, dos interessados, por eleição, por sufrágio universal. Depois, retribuiu esses serviços, superiores como inferiores, com um salário igual ao que recebem os outros trabalhadores. O maior vencimento fixado foi de 6.000 francos (9). Dessa forma, foi posto um freio à caça aos empregos e ao arrivismo, sem contar com o mandato imperativo que era imposto, além do mais, aos delegados às assembléias representativas.

Engels aborda aqui o ponto interessante em que a democracia conseqüente, por um lado, se transforma em socialismo e, por outro, reclama o socialismo. De fato, para aniquilar o Estado, é preciso transformar as funções do Estado em funções de fiscalização e registro tão simples que estejam ao alcance da enorme maioria da população e, em seguida, de toda a população. Ora, para suprimir completamente o arrivismo, é preciso que um emprego público “honorário”, mas não retribuído, não possa servir, de algum modo, de ponte para atingir empregos altamente rendosos nos Bancos e nas sociedades por ações, como constantemente sucede em todos os países capitalistas, mesmo nos mais liberais.

Engels tem o cuidado de evitar o erro que cometem, por exemplo, alguns marxistas, a respeito do direito de as nações disporem de si mesmas. Em regime capitalista, dizem eles, esse direito é irrealizável; e em regime socialista torna-se supérfluo. Este raciocínio, espirituoso, talvez, mas absolutamente errôneo, poderia aplicar-se a qualquer instituição democrática e, mesmo, ao modesto vencimento dos funcionários, pois que uma democracia rigorosamente conseqüente é impossível em regime capitalista e, em regime socialista, toda democracia desaparece.

É esse um sofisma que se assemelha a esta piada irrisória: Qual é o momento preciso em que o homem que perde um a um os cabelos pode ser qualificado de calvo?

Desenvolver a democracia até o fim, procurar as formas desse desenvolvimento, submetê-las à prova da prática, etc., eis um dos problemas fundamentais da luta pela revolução social. Considerada isoladamente, nenhuma democracia dará o socialismo, mas, na vida, a democracia nunca será “considerada isoladamente”, mas sim “em conjunto”, e exercerá a sua influência sobre a economia, cuja transformação precipitará, sofrendo também ela a influência do desenvolvimento econômico, etc. Tal é a lógica da história viva.

Engels continua:

Essa destruição do Estado, tal como ele foi até agora, e a sua substituição por uma nova organização verdadeiramente democrática é o que está escrito com profundeza no terceiro capítulo da Guerra Civil. Mas, era necessário acentuar ligeiramente, aqui, alguns traços, porque, na Alemanha, a superstição do Estado passou da filosofia para a consciência de toda a burguesia e mesmo de muitos operários. Segundo a filosofia, o Estado é “a realização da Idéia”, o que, em linguagem filosófica, é o reino de Deus sobre a terra, o domínio em que se realizaram ou devem realizar-se a verdade e a justiça eternas. Daí, esse respeito supersticioso pelo Estado e por tudo que toca ao Estado, respeito que tanto mais facilmente se instala nos espíritos quanto se está habituado, desde o berço, a pensar que os negócios e os interesses gerais da sociedade inteira não poderiam ser regulados diferentemente do que se tem feito até aqui, isto é, pelo Estado e pelos seus subalternos, devidamente instalados nas suas funções. E já se pensa ter feito um progresso extraordinariamente audacioso, emancipando-se da crença na monarquia hereditária para jurar pela República democrática. Porém, na realidade, o Estado não é outra coisa senão uma máquina de opressão de uma classe por outra, e isso tanto numa república democrática como numa monarquia. E o menos que dele se pode dizer é que é um flagelo que o proletariado herda na sua luta pela dominação de classe, mas cujos piores efeitos ele deverá atenuar, na medida do possível, como fez a Comuna, até o dia em que uma geração, educada em uma nova sociedade de homens livres e iguais, puder livrar-se de todo esse aparato governamental.

Engels prevenia os alemães contra o esquecimento dos princípios socialistas a respeito do Estado em geral. As suas advertências, hoje, parecem dirigir-se especialmente aos Srs. Tseretelli e Tchernov, que também manifestaram, na sua política de “coligação”, uma fé e uma veneração supersticiosa pelo Estado!

Ainda duas observações:

1.ª) Quando Engels diz que numa República democrática, “tanto como” numa monarquia, o Estado continua sendo “uma máquina de opressão de uma classe por outra”, não quer dizer que a forma de opressão seja indiferente ao operariado, como o “professam” certos anarquistas. Uma forma de opressão e de luta de classe mais ampla, mais livre, mais franca, facilitará enormemente ao proletariado a sua luta pela abolição das classes em geral.

2.ª) A questão de saber por que só uma nova geração poderá livrar-se do aparato governamental se liga à de eliminação da democracia, a que chegamos agora.


(9) O que, em curso nominal, representa cerca de 2.400 rublos, e 6.000 rublos ao curso atual. Os bolcheviques que propõem, por exemplo, nas municipalidades, ordenados de 9.000 rublos, em lugar de propor um máximo de 6.000 para toda a Rússia, cometem um erro imperdoável.

  1. A eliminação da democracia, segundo Engels

Engels pronunciou-se sobre esse ponto ao tratar da denominação cientificamente errônea de “social-democrata”.

No prefácio de uma coletânea de seus artigos de 1870-1880, que versam, principalmente, sobre temas “internacionais” (Internationales aus dem Volksstaat), prefácio datado de 3 de janeiro de 1894, isto é, um ano e meio antes da sua morte, Engels explica que, em todos esses artigos, emprega a palavra “comunista” e não “social-democrata”, sendo esta última denominação a dos prudhonianos na França, e dos lassallianos na Alemanha.

Para Marx como para mim, continua Engels, havia, portanto, absoluta impossibilidade de empregar, para exprimir o nosso ponto de vista próprio, uma expressão tão elástica. Atualmente, o caso é outro, e essa designação de “social-democrata” poderia, em rigor, passar (mag passieren), se bem que continue imprópria (unpassend) para um partido cujo programa econômico não é apenas socialista, mas comunista, para um partido cuja finalidade política é a supressão de toda espécie de Estado, e, por conseguinte, de toda democracia. Os partidos políticos verdadeiros (grifado por Engels) nunca têm uma denominação que lhes convenha completamente; o partido se desenvolve e a denominação fica.

O dialético Engels, no fim de sua vida, mantém-se fiel à dialética. Marx e eu., diz ele, tínhamos um nome excelente, cientificamente exato, para o nosso partido, mas então não havia um verdadeiro partido, isto é, um partido que unisse as massas proletárias. Agora, no fim do século XIX, possuímos um partido verdadeiro, mas a sua denominação é cientificamente inexata. Não importa; poderá “passar”, contanto que o partido se desenvolva e contanto que a inexatidão científica do seu nome não lhe seja dissimulada e não o impeça de caminhar na boa direção.

Um gracejador poderia consolar-se também, a nós, bolcheviques, à maneira de Engels: Temos, um verdadeiro partido que se desenvolve à maravilha; “passaremos” por sobre o nome absurdo e bárbaro de “bolchevique”, que não exprime absolutamente nada, a não ser a circunstância puramente acidental de termos tida a maioria no Congresso da Bruxelas-Londres, em 1903… Agora, que a perseguição do nosso partido, pelos republicanos e pela democracia burguesa “revolucionária”, em julho-agosto de 1917, tornou tão popular e tão honroso o nome de “bolchevique”, confirmando, além disso, o imenso progresso histórico realizado pelo nosso partido no seu desenvolvimento real, talvez eu mesmo hesitasse em propor, como fiz em abril, a mudança de denominação do Partido. Talvez propusesse aos camaradas um “compromisso”: chamarmo-nos Partido Comunista, conservando entre parênteses a palavra “bolchevique”…

Mas a questão do nome do partido é infinitamente menos grave que a das relações entre o proletariado revolucionário e o Estado.

Raciocinando a respeito do Estado, repete-se constantemente o erro contra o qual Engels nos põe de sobreaviso e que, de passagem, indicamos mais atrás: esquece-se que a supressão do Estado é igualmente a supressão da democracia e que o definhamento do Estado é o definhamento da democracia.

À primeira vista, essa afirmação parece estranha e ininteligível; alguns poderiam mesmo recear que nós desejássemos o advento de uma ordem social em que caísse em desuso o princípio da submissão da minoria â maioria, que, ao que se diz, é o princípio essencial da democracia. Mas, não! A democracia não se identifica com a submissão da minoria à maioria, isto é, a organização da violência sistematicamente exercida por uma classe contra a outra, por uma parte da população, contra a outra.

Nosso objetivo final é a supressão do Estado, isto é, de toda violência, organizada e sistemática, de toda coação sobre os homens em geral. Não desejamos o advento de uma ordem social em que caducasse o princípio da submissão da minoria à maioria. Mas, em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele tomará a forma do comunismo e que, em conseqüência, desaparecerá toda necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão de um homem a outro de uma parte da população à outra. Os homens, com efeito, habituar-se-ão a observar as condições elementares da vida social, sem constrangimento nem subordinação.

Para salientar esse elemento de adaptação, Engels fala da nova geração “educada em uma nova sociedade de homens livres e iguais” e que “poderá livrar-se de todo aparato governamental”, de qualquer forma de Estado, inclusive a República democrática.

Para esclarecer esse ponto, temos de analisar as condições econômicas do definhamento do Estado.