Economia política: a produção mercantil e suas contradições (L. Segal)

Pulicamos a seguir trechos do capítulo II do manual soviético Noções fundamentais de economia política, de Luis Segal, publicado na década de 1930. Este capítulo, intitulado A produção mercantil e suas contradições, lança bases para compreender o fundamental sobre o estudo do nosso grande fundador – Karl Marx – acerca da mercadoria, seu valor e sua circulação ao longo de toda a história da produção mercantil e, em particular, no capitalismo.

O primeiro capítulo deste manual já foi publicado neste blog, repartido em cinco partes, sob o título geral de O desenvolvimento econômico da sociedade, onde estuda-se sinteticamente a história das sociedades comunista primitiva, escravista, feudal e burguesa.


Noções fundamentais de economia política

Luis Segal

Capítulo II – A produção mercantil e suas contradições

Marx inicia o estudo da produção capitalista analisando a mercadoria. É levado a isso porque, na sociedade capitalista, domina a produção de mercadorias. Por outros termos, porque, nessa sociedade, os produtos não são destinados ao consumo individual imediato, mas, em lugar disso, são levados ao mercado para serem trocados.

No regime da produção mercantil, as relações de produção entre os homens apresentam-se sob a forma de relações entre mercadorias. Consideremos a relação de produção fundamental na sociedade capitalista: a exploração do proletariado pela burguesia. Para que o capitalista possa explorar o operário, tem que comprar a sua “força de trabalho” como se esta fosse uma mercadoria. O operário recebe do capitalista o preço dessa mercadoria – o salário, com o qual, por sua vez, ele compra outras mercadorias: seus meios de existência.

Quais as relações dos capitalistas entre si? Compram e vendem mercadorias uns aos outros. Na mercadoria, pois, estão caracterizadas e definidas as relações de produção da sociedade burguesa.

A riqueza das sociedades nas quais domina o regime capitalista de produção, equivale a um “imenso arsenal de mercadorias” e sua forma elementar é a própria mercadoria [1]

I – A mercadoria

A mercadoria é, em primeiro lugar, um objeto que se troca por outro. [2]

O valor de uso

Chama-se “valor de uso” a possibilidade que a mercadoria tem de satisfazer tal ou qual necessidade do homem. Toda mercadoria deve ter um “valor de uso”, sem esta condição não seria mercadoria.

Para que alguma coisa tenha um “valor de uso”, pouco importa a necessidade que venha a satisfazer: alimentação, vestuário, objetos de luxo, etc. É indispensável somente, que existe uma necessidade e a mercadoria seja capaz de satisfazê-la. “O caráter dessas necessidades, quer sejam, por exemplo, do estômago ou da fantasia, não interesse de modo algum” [3].

O objeto que tem valor de uso satisfaz necessidades, quer sejam diretas, como os meios de existência (artigos de alimentação, habitação, roupas, etc.) quer indiretas, como os meios de produção (máquinas e matérias-primas).

Toda mercadoria deve ter um valor de uso; mas nem tudo que tenha valor de uso é necessariamente uma mercadoria. O ar, por exemplo, tem um valor de uso, mas não é mercadoria. Não o é, tampouco, o pão que o camponês fabrica para seu consumo individual e não para a venda. Na futura sociedade comunista, todos os objetos fabricados continuarão a ter um valor de uso, embora não sejam mercadorias. O objeto que tem um valor de uso só se transforma em mercadoria quando é produzido para o mercado.

A troca de mercadorias

No mercado, não se troca diretamente uma mercadoria por outra. Vendem-se e compram-se mercadorias por intermédio do dinheiro. Para se compreender as relações sociais expressas na venda e compra de mercadorias, devemos abstrair, no momento, a função do dinheiro e examinar a troca diretas das mercadorias, tal como era realizada nas primeiras etapas do desenvolvimento da produção mercantil. Não poderíamos compreender a natureza do dinheiro, sem antes termos examinado as relações mais simples do comércio de mercadorias, ou seja – “a troca”.

Unicamente mercadorias diferentes são permutáveis. Seria insensato trocar trigo por trigo ou sapatos por sapatos da mesma qualidade. No mercado, trocam-se valores de uso diferentes. Por exemplo, o trigo é trocado por sapatos. Mas, as quantidades a serem trocadas devem ser determinadas. O camponês não dá, por um par de sapatos, uma quantidade ilimitada de trigo, mas, digamos, 60 quilos. O sapateiro, por 60 quilos de trigo, não entrega ao camponês um determinado número de sapatos, mas apenas um par. Além disso, a quantidade de trigo trocado por um par de sapatos não é determinado por um camponês e um sapateiro. Qualquer camponês que queira trocar trigos por sapatos terá que ceder (pagar) a qualquer sapateiro 60 quilos de trigo, a troco de um par de sapatos de determinada qualidade.

O valor de troca

A relação quantitativa que se estabelece na troca de mercadorias denomina-se valor de troca da mercadoria. No nosso exemplo, o valor de troca de um par de sapatos são 60 quilos de trigo, e o valor de 60 quilos de trigo é um par de sapatos.

Como se determina, pois, o valor de troca de uma mercadoria? Por que razão se troca um par de sapatos por 60 quilos de trigo e não por 30 ou 90 quilos?

A troca de uma mercadoria por outra, numa proporção determinada, significa que as mercadorias, como valores de troca, são iguais entre si. Mas como pode ser iguais mercadorias como trigos e sapatos? Não têm, por acaso, valores de uso completamente diferentes? Cada uma delas não satisfaz a uma necessidade desigual? Por que, pois, podem ser medidas pelo mesmo padrão? Pode-se comparar o comprimento de uma sala com o de uma mesa, o peso do ferro com o do cobre e dizer que a sala é mais comprida do que a mesa e este pesado de ferro mais pesado do que aquele pedaço de cobre? Os objetos só podem ser medidos e comparados entre si, quando oferecerem algum traço comum. Tomamos em consideração a característica comum do comprimento da sala e da mesa, e as comparamos pelo índice encontrado. Comparamos o ferro e o cobre por uma propriedade comum a ambos, o peso.

A experiência diária ensina-nos que milhões e bilhões de trocam tornam todas as mercadorias, mesmo as mais diversas e dessemelhantes, constantemente equiparadas, umas às outras, nos seus valores de uso. [4]

As mercadorias são comparadas umas com as outras e isso significa que têm uma propriedade em comum, diferente de seu valor de uso. Qual é essa propriedade em comum a todas as mercadorias? Consiste essa propriedade comum em que todas são produto de trabalho, isto é, para se produzir mercadorias, é necessário dispender uma quantidade determinada de trabalho. Isso é que torna comparáveis entre si todas as mercadorias.

Se – o trigo e os sapatos – têm valores de uso diferentes, o trabalho do camponês e o do sapateiro são também distintos um do outro. Cabe perguntar, então, se, apesar de serem diferentes, podem haver um traço comum ao trigo e aos sapatos?

As duas características do trabalho

Ao dizer que o traço comum a todas as mercadorias é o trabalho gasto em sua produção, consideramos o trabalho como um dispêndio de energia humana, sem levar em conta a forma sob a qual é gasta, seja a forma do trabalho do sapateiro ou do camponês.

Os trabalhos do alfaiate e do tecelão, ainda que representem atividades qualitativamente diferentes, têm em comum o fato de representarem um desgaste produtivo do cérebro humano, de músculos, de nervos, de braços, etc… E, portanto, ambos são, nesse sentido, trabalhos humanos. [5]

Nota-se, pois, que o trabalho que produz mercadorias possui duas características. Uma, é o trabalho útil, pessoal, direto, de uma qualidade particular, de uma espécie e de uma finalidade pré-estabelecidas; esse é o trabalho concreto, que cria um valor de uso determinado. E a outra é uma:

…aplicação da “força humana de trabalho”, sem se considerar, de modo algum, qual a forma em que ela é empregada. [6]

Explicando de outra maneira, diremos que o trabalho humano em geral é designado por trabalho abstrato.

Consequentemente, tudo que há de comum em todas as mercadorias não é o “trabalho concreto” de um determinado ramo de produção, nem tampouco uma espécie determinada de trabalho, mas o que há de comum é o “trabalho humano abstrato”, o trabalho humano em geral. [7]

O valor

Deve-se distinguir o trabalho da mercadoria, esta que é produto do trabalho. O trabalho é um processo, um gasto de força humana. Depois de produzir a mercadoria, o processo de trabalho deixa de existir. O que passa, então, a existir é somente a mercadoria, e não mais o trabalho. Mas, essa mercadoria é a cristalização do “trabalho humano abstrato” despedido na sua produção. À propriedade comum a todas as mercadorias, a esse fenômeno de uma mercadoria materializar o trabalho humano abstrato gasto em sua produção, é a isso que se chama valor da mercadoria.

Num de seus aspectos, o trabalho é sempre um gasto de “força de trabalho”, no sentido fisiológico. Considerado, assim, como trabalho humano igual em todas as mercadorias, ou seja, “trabalho abstrato”, ele forma o valor das mercadorias. [8]

A mercadoria possui, pois, duas propriedades: um valor de uso e um valor de troca. O “valor de troca” da mercadoria é a relação quantitativa, segundo a qual a mercadoria é trocada por outra. Não é determinada pelo valor de uso das mercadorias trocadas.

O valor da mercadoria é determinado pelo trabalho gasto de sua produção. Quanto mais trabalho se tem empregado para produzi-lo, maior será, consequentemente, seu valor. Se a produção de um par de sapatos exige 20 horas de trabalho e a de 12 quilos de trigo exige 4 horas, o valor de um par de sapatos será cinco vezes superior ao de 12 quilos de trigo. Um par de sapato não será trocado a não ser por cinco vezes 12 quilos de trigo.

O tempo de trabalho socialmente necessário

A primeira vista pareceria que, quanto mais preguiçoso e inábil fosse o produtor e quanto mais lentamente trabalhasse, o valor da mercadoria deveria ser maior, pois, consumiria mais tempo de trabalho que os demais. Se todos os sapateiros demoram 20 horas para confeccionar um par de sapatos e um único sapateiro gasta 24 horas, pode-se perguntar se o par fabricado por esse último terá maior valor, podendo, portanto, trocar-se por seis vezes 12 quilos de trigo.

Evidentemente que não, pois o valor da mercadoria não é determinado pelo tempo de trabalho individual de cada produtor de mercadorias, mas pela média de tempo de trabalho necessário (ou socialmente necessário) para a produção de uma determinada mercadoria.

Se são necessárias em média 20 horas de trabalho, em condições determinadas de produção, para confeccionar um par de sapatos, pouco importa que um sapateiro gaste 20 ou 15 horas. Sua mercadoria representará 20 horas de trabalho socialmente necessário.

Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele que se requer para produzir um valor de uso qualquer nas condições socialmente normais de produção e com um grau médio de destreza e intensidade de trabalho imperante na sociedade. [9]

A magnitude do valor

Se é introduzido um aperfeiçoamento técnico, uma nova máquina ou um novo processo de trabalho, de modo a permitir que se produza em tempo menor a mesma quantidade de determinada mercadoria, a quantidade de trabalho consumida para a produção de uma unidade dessa mercadoria diminui e, por isso mesmo, diminui também o valor daquela mercadoria.

Quanto maior é a produtividade do trabalho social, isto é, quanto maior o número de unidades se possa produzir num tempo delimitado, tanto mais baixa será o valor de cada unidade. Inversamente, quanto menos for a capacidade produtiva do trabalho social, maior será o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção e, portanto, maior também o valor.

II – O valor como relação social

O valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário gasto na sua produção. Todos sabem, porém, que ninguém pergunta, por ocasião da troca, quanto tempo de trabalho socialmente necessário está contido na mercadoria. Nem mesmo o produtor poderia dizer quanto tempo socialmente necessário contém a mercadoria que produziu. O carpinteiro sabe, provavelmente, quanto tempo empregou para transformar madeira em tábuas, mas, no entanto, ignora o tempo de trabalho socialmente necessário que requer a operação que ele realiza diariamente. Não sabe, tampouco, quanto trabalho socialmente necessário está contido no formão (instrumento de trabalho), na madeira, na serra e nos outros meios que emprega no processo de produção. Diante de tais problemas, fica indiferente. O que lhe interessa é saber quanto dinheiro gastou na compra de materiais e de ferramentas, quanto tempo necessita para trabalhar madeira, por quanto venderá as tábuas e quantas mercadorias de outras espécies poderá comprar com o dinheiro resultante da venda.

Surge, então, um problema. Qual o significado da nossa teoria que afirma que o valor de troca das mercadorias é determinado pelo seu “valor” e este é determinado pelo seu trabalho socialmente necessário? Qual o alcance dessa teoria, se ninguém, na realidade, pensa em medir o valor por meio do trabalho?

O fato do valor da mercadoria ser determinado pelo trabalho está em evidente contradição com o fato dos produtores não medirem o valor pelo tempo de trabalho. Não há, no entanto, contradição entre a teoria de Marx e a realidade. A contradição que existe é inerente à própria produção mercantil.

A divisão social do trabalho

O produtor de mercadorias não produz para seu próprio consumo, mas para o mercado. Os produtos de que necessita, adquire-os trocando suas mercadorias pelas dos outros produtores. Isto é possível porque estes últimos também produzem para o mercado, ou seja, porque produzem também mercadorias. Todo produto tem um valor de uso capaz de satisfazer uma necessidade social determinada. Um deles produz trigo, outro produz roupas, um terceiro objetos caseiros, um quarto instrumentos de trabalho, etc..

Pela divisão do trabalho, os produtores, tomados em conjuntos, representam uma coletividade, na qual os membros dependem uns dos outros. Nenhum produtor pode dedicar-se exclusivamente à fabricação de uma mercadoria única, se os demais não produzem, ao mesmo tempo, as matérias e ferramentas que ele precisa, assim como os artigos necessários à sua existência. Quanto maior é a divisão social do trabalho na sociedade, maior número de ramos existe na produção e mais estrita é a interdependência entre os produtores.

A contradição essencial da produção mercantil

A divisão do trabalho dentro da sociedade significa que o trabalho de cada produtor é um trabalho social, um átomo do conjunto do trabalho social. Cada produtor representa uma partícula do sistema de trabalho de toda a sociedade, mesmo que cada um seja proprietário dos seus meios de produção e de seus produtos. Na sociedade em que prevalece a produção de mercadorias, o trabalho não está dividido de acordo com um plano concebido de antemão, e, além disso, cada produtor está na dependência do conjunto da produção social, apesar de produzir suas mercadorias autônoma e independentemente.

O trabalho de cada produtor é um trabalho social, em essência, mas continua a ser, ao mesmo tempo, um trabalho particular, privado.

Eis aí a contradição fundamental da produção entre trabalho social e trabalho privado. O trabalho do produtor, social por sua natureza, tem, ao mesmo tempo, o aspecto de um trabalho privado. No regime capitalista, o caráter social do trabalho está dissimulado, pois que, de maneira direta, não é um trabalho social.

Como então se manifesta o caráter social do trabalho na sociedade capitalista? Quando os produtores individuais entram em contato por intermédio da troca de suas mercadorias.

O que acontece, de fato, na troca de mercadorias? Quais são as relações sociais na troca? Marx não procura saber o que os homens pensam disso, mas apenas o que eles fazem, praticamente, quando trocam suas mercadorias. Demonstra então que, na troca, os homens proclamam a igualdade de seus diferentes trabalhos na categoria de trabalho humano em geral, e também que, na troca, se manifesta estreita interdependência entre os produtores.

A troca de mercadorias exprime um laço entre os produtores isolados, por intermédio do mercado. O dinheiro indica que essa relação se torna mais estreita unindo um todo, inseparavelmente, toda a vida econômica dos produtores isolados. [10]

Não é na troca, entretanto, que se estabelece essa relação, pois esta já existia muito antes dos produtores irem ao mercado para trocar seus produtos. Como já vimos, essa relação existe no próprio processo de produção. Mas só no decorrer da troca no mercado é que ela se manifesta e se revela. Na sociedade produtora de mercadorias, a relação de trabalho entre os homens não é direta, imediata, pelo contrário, é indireta, quer dizer, é realizada através das coisas. Esta é a razão porque o valor da mercadoria criado pelo trabalho não pode ser expresso praticamente, nem ser medido pelas horas de trabalho. O valor de uma mercadoria só se apresenta em comparação com alguma outra mercadoria. Não exprime propriedades físicas, químicas nem de qualquer outra espécie. Exprime uma relação social revelada pelos objetos.

O valor de uma mercadoria não pode exprimir-se senão por sua relação de troca com outra mercadoria. A relação representada pela troca de uma mercadoria por outra é o valor de troca. O valor de troca é a forma porque se exprime e se mede o valor da mercadoria. Ou melhor: o valor de troca é a forma do valor.

III – A forma do valor

A forma pela qual se exprime o valor não permaneceu inalterada nas diversas etapas do desenvolvimento da economia mercantil. A forma monetária é a mais adiantada. Mas, para compreender-se como o dinheiro representa o valor das mercadorias, deve-se estudar as formas mais simples do valor, que precederam à forma monetária e a fizeram nascer.

A forma-simples do valor

No início da economia mercantil, os produtos eram destinados ao consumo direto e não ao comércio. Somente os excedentes fortuitos da produção eram trocados. Desse modo, a troca era fenômeno puramente acidental. O número de produtos transformados em mercadorias era extremamente limitado. As mercadorias eram trocadas diretamente umas pelas outras. A troca supunha tão somente a existência de determinadas mercadorias: um par de sapatos por 60 quilos de trigo, 15 metros de tecido por um cordeiro. Cada uma dessas trocas representava uma forma de valor simples, ou de caráter acidental. Cada uma das mercadorias trocadas exprimia seu valor somente numa outra mercadoria.

Nas relações de troca, um par de sapatos é igual a 60 quilos de trigo, e, portanto, os 60 quilos de trigo representavam o valor de um par de sapatos e vice-versa. Como se exprime o valor dos sapatos? Exprime-se em 60 quilos de trigo. Indiretamente, pode-se exprimir por outra mercadoria, mas não em horas de trabalho. O valor de um par de sapatos está representado de maneira  relativa na relação dessa mercadoria com outra, ou seja, com 60 quilos de trigo.

Nesta forma de troca, não se conhece o número de horas consumidas na produção do trigo e dos sapatos.

Quando, por exemplo, digo que este relógio vale tanto como esse pedaço de pano e que cada um dos objetos vale 50 marcos, estou dizendo que no relógio, no pano e no dinheiro se encerra a mesma quantidade de trabalho social. Considero que o tempo de trabalho social representado em cada um dos três objetos foi medido socialmente com resultados iguais. Não medido porém por horas de trabalho, pelos dias consumidos, etc., mas, dando-se um rodeio, de um modo relativo, pelo intercâmbio. Não posso exprimir, portanto, nem essa quantidade de tempo de trabalho em horas cujo número ignoro e, nesse caso, me valho também de um rodeio, de um recurso relativo, tomando uma outra mercadoria que representa a mesma quantidade de trabalho social. Por isso, digo que o relógio vale tanto quanto o pedaço de pano. [11]

A mercadoria que exprime o valor de outra é chamada de equivalente. Em nosso exemplo, o trigo é o equivalente de um par de sapatos. Desempenha o papel de um material que exprime o valor de um par de sapatos.

Para se conhecer o peso de um objeto, do trigo, por exemplo, colocamo-lo num prato de balança e no outro pomos um volume de ferro, cujo o peso conhecemos de antemão. Esse pedaço de ferro representa o peso do trigo. Pouco importa a natureza desse metal, pois os pesos podem ser de cobre ou de qualquer outra coisa, já que a espécie de metal influi para se estabelecer o peso do trigo. O ferro apresenta-se,unicamente, como a expressão e a medida do peso do trigo.

O equivalente representa um papel análogo a esse na relação de troca. Na forma simples de valor (um par de sapatos é igual a 60 quilos de trigo), o trigo não se apresenta como trigo, isto é, como um valor de uso determinado, mas exclusivamente como expressão do valor de um par de sapatos – como seu equivalente. O par de sapatos exprime seu valor relativo pelo trigo e não por si mesmo. O par de sapatos parece como um valor de uso preciso e determinado, como um par de sapatos e não como um valor. Vê-se, pois, que na forma simples do valor, o valor de uso e o valor se separaram, de certa maneira, um do outro. Uma das mercadorias, o par de sapatos, cujo valor é expresso, apresenta-se como valor de uso, enquanto a outra (o trigo), que exprime o valor da primeira, apresenta-se exclusivamente como a encarnação ou a expressão do valor.

Nem a primeira nem a segunda mercadoria podem exprimir o próprio valor por si mesmas, mas apenas por meio de sua ação recíproca..Em nosso exemplo, o trigo exprime seu valor por um par de sapatos, isto é, de maneira relativa. Mas, quando se trata de exprimir o valor do trigo, são os sapatos, e não o próprio trigo, que representam o equivalente.

A forma-total desenvolvida do valor

A forma simples do valor corresponde ao estado primitivo do desenvolvimento da economia mercantil, quando os únicos produtos que se trocavam eram os excedentes fortuitos. Mas a generalização da troca dos excedentes levou, pouco a pouco, à produção de objetos destinados à troca. Em tais condições, a troca já não é fato acidental.

Existe então um mercado no qual se defrontam as diversas mercadorias. Cada mercadoria pode ser trocada por qualquer outra e não só por uma determinada.

1 par de sapatos = 60 quilos de trigo;

1 par de sapatos = 15 metros de fazenda;

1 par de sapatos = 1 cordeiro;

1 par de sapatos = 1 machado;

1 par de sapatos = 1 vestido; etc., etc.

Nessa forma de valor, cada mercadoria terá seu valor expresso por muitas outras mercadorias. Chama-se forma total ou desenvolvida do valor.

A forma-geral do valor

Com o desenvolvimento da economia mercantil e da troca, aparece a forma-geral do valor. No conjunto das mercadorias, algumas são trocadas com menor frequência do que as outras. Se uma mercadoria é trocada frequentemente e porque muitas outras exprimem nela o seu valor, servindo, pois, esta mercadoria geralmente como equivalente. A mercadoria que se troca com mais frequência começa a desempenhar, pouco a pouco, o papel de equivalente geral de todas as demais. Se, por exemplo, a mercadoria mais trocada é o gado, as demais terão por expressão geral de seu valor – o gado – que se transforma, dessa forma, em equivalente geral do valor. Esta forma geral do valor pode-se exprimir do seguinte modo:

1 par de sapatos = 1 cordeiro

60 quilos de trigo = 1 cordeiro

15 metros de pano = 1 cordeiro

1 machado = 1 cordeiro

Etc., etc.

Comparando a forma-geral com a forma-total do valor, a forma-geral representa um grau mais avançado de desenvolvimento. Na primeira, cada mercadoria exprimia o seu valor em várias mercadorias, tinha vários equivalentes. Na forma-geral, todas as mercadorias exprimem seus valores num único equivalente. Isto serve-nos para demonstrar que o valor de todas as mercadorias é distinto e separado de seus valores de uso e, na sua qualidade de valores, todas as mercadorias possuem uma propriedade comum. As mercadorias são comparáveis umas às outras, não diretamente, mas com a ajuda de uma terceira mercadoria – o equivalente geral. De tal modo que o par de sapatos é igual a 60 quilos de trigo, pois, isoladamente, cada uma das mercadorias é igual a uma terceira – o cordeiro – que exprime e mede a propriedade comum a cada uma das outras.

A forma-dinheiro do valor

O equivalente geral nasceu espontaneamente, não obedecendo a nenhum plano estabelecido pelos produtores de mercadorias. A mercadoria, que era trocada com mais frequência pelas outras, converteu-se em equivalente geral.

O equivalente geral correspondeu a diversas mercadorias: gado, flechas, conchas, pedaços de ferro, cobre, marfim, sal, etc., conforme as épocas e regiões onde se processava. As trocas estenderam-se e, devido a isso, as mercadorias, que desempenhavam o papel de equivalente geral, foram substituídas por um só tipo de mercadoria, os metais preciosos – ouro e prata. A forma-geral do valor teve sua função desempenhada em todas as partes definitivamente com o ouro e a prata. A forma-geral do valor transformou-se, então, em forma dinheiro e o equivalente geral em dinheiro.

O dinheiro é uma espécie determinada de mercadoria, o outro e a prata, que só desempenha a função social de exprimir o valor de todas as demais mercadorias.

É natural que, se o ouro e a prata não fossem mercadorias, isto é, se não tivessem valor, não poderiam exprimir o valor de outras mercadorias e não poderiam ser o equivalente geral do valor.

O ouro e a prata ocuparam o lugar de equivalente geral justamente porque, graças às suas propriedades, ofereceram mais vantagens para essa função do que as outras mercadorias. Não estão sujeitas às influências exteriores (não se oxidam, não se decompõem), são divisíveis em partes pequeníssimas caso se queira, fáceis de transportar etc..

O dinheiro exprime e mede o valor de todas as mercadorias. O valor das mercadorias expresso em dinheiro é o preço. Dizer que uma cadeira vale 20 cruzeiros significa o mesmo que dizer que a cadeira encerra o mesmo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma peça de ouro de 20 cruzeiros. O dinheiro é a expressão e a medida do valor das mercadorias, não de um modo absoluto, não em horas de trabalho, mas de modo relativo. O ouro e a prata também possuem valor, cuja grandeza depende do tempo de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção. O valor do ouro e da prata pode exprimir-se, não por eles próprios, mas por meio de outras mercadorias. O dinheiro não tem preço, pois o preço é a expressão do valor em dinheiro, não podendo então o dinheiro exprimir-se por si mesmo o próprio valor.

Todas as mercadorias exprimem seu valor pelo dinheiro e não por si mesmas. Devido a isso, parece que o valor das mercadorias não reside nelas, mas no dinheiro. Aparentemente, elas dão a impressão de ter apenas valor de uso e seu valor depende unicamente da troca por dinheiro, mas, na realidade, é graças ao valor que possuem que elas podem ser trocadas por dinheiro. A forma dinheiro do valor dissimula a natureza do mesmo e oculta o fato do valor não ser mais que trabalho socialmente representado na mercadoria.

IV – A função do valor

Seria erro supor que as mercadorias se vendem e se compram sempre pelo seu valor, isto é, que as mercadorias contenham sempre tanta quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-las quanto contenha o valor pago para adquiri-las.

Os adversários de Marx pretendem refutar a doutrina marxista baseados no fato de que, frequentemente, as mercadorias não são vendidas pelo seu valor. Semelhante “refutação” não tem fundamento, pois Marx jamais afirmou que as mercadorias se vendem rigidamente pelo seu valor. Longe dessa ideia, Marx fez notar que, na maioria dos casos, as mercadorias são vendidas pelo seu valor aproximado e é necessários haver condições muito especiais para que se vendam pelo seu valor exato.

A diferença entre preço e valor

Como o preço é a forma monetário do valor, o movimento dos preços é determinado, no fundo, pela mudança do valor das mercadorias. O crescimento de produção de todo trabalho social provoca a diminuição do valor das mercadorias e, geral e simultaneamente, a baixa dos preços.

O valor é, porém, uma relação social determinada na economia mercantil, na qual o trabalho não é dividido, entre os produtores, segundo um plano, mas, ao contrário, se efetua espontaneamente. Cada produtor dirige por si próprio sua economia. Como ignora quantas mercadorias de uma dada espécie serão necessárias para o mercado, utiliza seu trabalho, sem considerar a quantidade de mercadorias que é possível vender. Assim, é inevitável que uma espécie de mercadorias – as mesas, por exemplo – seja fabricada em maior quantidade do que a necessária no mercado e uma outra pelo contrário, o seja em menor quantidade.

O que acontecerá se, como no nosso primeiro exemplo, houver superprodução de mesas? A produção de cada uma das mesas exigiu determinado gasto de tempo de trabalho socialmente necessário. Produziu-se, porém, mais do que o exigido pelo mercado e, em sua produção, gastou-se mais tempo do que necessitava a sociedade. Cada fábrica de móveis, obrigada pela concorrência das outras, procura desfazer-se de suas mesas com a maior rapidez possível e, para consegui-lo, vê-se forçada a baixar seus preços. O preço das mesas desce muito abaixo de seu valor, o que ocasiona a ruína de alguns produtores, a diminuição da oferta e, finalmente, a recuperação dos preços primitivos situados, agora, ao nível do valor exato.

Quando, entretanto, ao contrário do exemplo acima, a alta dos preços sobe até um nível acima do valor, é porque uma mercadoria foi produzida em quantidade inferior à exigida pelo mercado, e, nesse caso, começam os produtores a fabricar maiores quantidades e o preço baixa até o nível do valor exato.

A diferença entre o preço e o valor é inevitável. Provém da condição mercantil, do fato de o trabalho se efetuar sob a forma de trabalho privado. Dessa forma, o preço de cada mercadoria, em regra geral, não pode coincidir com o seu valor. O valor da mercadoria determina-se, pois, graças a essas diferenças e a essa flutuação dos preços, acima e abaixo do próprio nível do valor. Compensam-se, reciprocamente, durante um período mais ou menos longo, a média dos preços do conjunto das mercadorias e a média do total de seus valores.

Numa sociedade de dispersos produtores de mercadorias, articulados, entre si, somente pelo mercado, é perfeitamente natural que a sujeição a uma lei não se possa manifestar senão como um fenômeno de média, social, de massa, no qual os desvios individuais num e noutro sentido se neutralizaram mutuamente. [12]

O valor e a distribuição do trabalho social

Quando se inverte demasiado trabalho num dado ramo da produção social, os preços das mercadorias descem a um nível inferior ao seu valor. Como consequência, diminui logo após a massa total do trabalho consumido nesse ramo da produção. Invertendo-se menos trabalho social do que o necessário, sobrevém uma alta de preços até nível superior ao valor, de onde resulta o afluxo de mais trabalho para esse ramo.

As oscilações dos preços em torno ao valor exprimem, pois, a divisão do trabalho social entre diversos ramos da produção.

A repartição proporcional de trabalho, numa sociedade em que o conjunto do trabalho social se desenvolve como troca privada de produtos individuais de trabalho, manifesta-se precisamente sob a forma do valor de troca dos produtos. [13]

A divisão proporcional do trabalho não se deve entender no sentido de que no regime de produção mercantil sempre exista uma proporção ou correspondência entre os diversos ramos da produção, nem tampouco no de que as desproporções na referida divisão sejam fenômenos temporários ou acidentais. Tais opiniões nada têm de comum com a teoria marxista, constituindo uma deformação mecânica da mesma, embora tenham sido defendidas por Bukarin, quando, em 1919, escreveu sua obra “A economia do período de transição”, onde consta que, na sociedade capitalista:

“Pode haver desvios, oscilações; todo o sistema se estende, se desenvolve, se complica, está em perpétuo movimento e oscilação, mas, em suma, permanece em estado de equilíbrio”.

Há, constantemente, diferença entre os preços e os valores. Quando o preço desce a um nível inferior ao do valor, a produção de mercadoria em jogo diminui e seu preço volta ao nível anterior, mas só por curto espaço de tempo.

O excesso da oferta em relação à procura, provocando baixo de preço, existe em função da anarquia da produção social, anarquia que provocará o descenso da produção, sem se deter, nem mesmo quando a oferta e a procura, assim como o preço e o valor, tenham alcançado o mesmo nível. A baixa de preço continuará, a oferta será inferior à procura. O valor elevar-se-à acima do preço, etc… Vemos, pois, que a nivelação do preço com o valor é apenas momentânea.

De modo idêntico, a lei do valor influi pelas oscilações incessantes dos preços em torno ao nível do valor.

…esta tendência constante das diversas esferas de produção a manter-se em equilíbrio manifesta-se somente como reação contra desequilíbrio constante. [14]

O valor, lei da economia mercantil

A lei do valor não é a lei do equilíbrio da produção mercantil, pois, assim considerando, seria fazer abstração das contradições da produção mercantil representadas no valor.

O conceito do valor é a expressão mais geral e, portanto, mais ampla das condições econômicas que presidem à produção de mercadorias. [15]

Por esse motivo, a importância do valor está no fato das contradições da produção mercantil terem nele sua expressão mais geral e completa. O trabalho social, gasto na produção da mercadoria, toma a forma do valor, fenômeno que provém da contradição fundamental da economia mercantil entre o trabalho social e o trabalho privado.

Devido a tal contradição, a forma-simples do valor converte-se na forma monetária e o produto toma o caráter de mercadoria, no sentido vulgar da palavra, ou o caráter de dinheiro (ouro, prata). O dinheiro, em relação a todas as outras mercadorias, torna-se a encarnação de seu valor. Daí se compreende a discrepância entre o preço da mercadoria e seu valor. Essas diferenças contínuas entre o preço e o valor são a forma espontânea da repartição do trabalho social entre os diversos ramos de produção. O valor exprime as contradições da produção mercantil e, em seguida, as desenvolve.

O dinheiro é a materialização do trabalho humano. Toda mercadoria representa trabalho humano materializado sob uma forma particular, enquanto o dinheiro constitui a forma geral da materialização do trabalho humano, razão pela qual se pode comprar com ele qualquer mercadoria. No dinheiro, acha-se concentrado o poder de compra a ser exercido sobre o conjunto da produção mercantil e, nesse sentido, o dinheiro é a forma absoluta da riqueza no regime da produção mercantil.

Estendendo-se a circulação das mercadorias, cresce o poder do dinheiro, forma sempre conveniente e absolutamente social da riqueza. [16]

Pode-se acumular dinheiro, acumulando-se, desse modo, um poder sobre os produtos do trabalho e sobre o próprio trabalho, pois que, com o dinheiro, não só se podem comprar mercadorias as mais diversas, mas também, além disso, a mesma força de trabalho. Uma parte exprime o capital e a outra o assalariado explicado pelo primeiro.

O capitalismo é o resultado inevitável do desenvolvimento da produção mercantil.

No conceito do valor está encerrado não só o germe do conceito do dinheiro, mas também o de todos os demais caracteres desenvolvidos da produção e intercâmbio de mercadorias… Na forma do valor dos produtos está contida, já em embrião, toda a armação capitalista de produção, o antagonismo entre capitalistas e operários assalariados, o exército industrial de reserva, as crises. [17]

Lançada a sociedade pelo caminho da produção mercantil, na qual o trabalho social não é diretamente social, pois aparece sob a forma de valor, o nascimento do capitalismo é inevitável e o desenvolvimento traz consigo a intensidade de suas contradições e sua transformação inevitável na sociedade comunista.

O valor é, em resumo, a lei do desenvolvimento ou do movimento da produção social.

V – O caráter fetichista da mercadoria

Tanto o valor como os demais fenômenos que com ele se relacionam são determinados pela contradição fundamental da produção mercantil existente entre o trabalho social e o privado. Disso se conclui que a supressão da produção mercantil, da forma mercantil do produto do trabalho, resultaria no desaparecimento do duplo caráter do valor e também do trabalho.

O caráter histórico da mercadoria e do valor

Comparemos, efetivamente, a produção mercantil com a socialista, na qual o produto do trabalho não toma a forma de mercadoria. Não existe, no socialismo, a propriedade privada dos meios de produção, pertencendo estes à coletividade. Cada produtor, em lugar de trabalhar isoladamente, torna-se membro de uma coletividade, organizada de acordo com um plano traçado de antemão, para cuja preparação foram levados em consideração os valores de uso (isto é, meios de produção e meios de consumo) que se deve produzir, assim como a quantidade de trabalho social necessária para tal empreendimento. Cada operário recebe da sociedade seu programa de trabalho e, segundo seu adiantamento na execução, vai recebendo sua parte de objetos de consumo.

Na sociedade socialista, os produtores não se opõem uns aos outros, como o fariam se fossem produtores autônomos. O resultado disso é que não há concorrência entre as mercadorias produzidas pelo seu próprio trabalho, pois as relações entre os homens efetuam-se de maneira direta e não através da troca entre produtores privados.

No seio de uma ordem social comunistas, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos. Da mesma forma, o trabalho que foi incorporado aos produtos não aparece então como o valor destes produtos, como uma qualidade real possuída por eles. Isso se deve a que, daí por diante, ao contrário do que ocorre na sociedade capitalista, não será por meio do rodeio, mas diretamente, que os trabalhos de cada indivíduo se transformarão em parte integrante do trabalho total da comunidade. [18]

No regime socialista, as relações sociais entre os homens não tomam a forma de mercadorias, como que encobrindo estas mesmas relações.

…as relações sociais que os homens têm com seu trabalho e com os produtos do seu trabalho são perfeitamente claras e simples, no que se refere tanto à produção como à distribuição. [19]

O caráter social específico do trabalho na produção mercantil

Tudo sucede de outra maneira na sociedade baseada na produção mercantil. Nela, os produtores são autônomos e, ao mesmo tempo, dependem uns dos outros. O trabalho que desenvolvem é, do mesmo passo, social e privado. O caráter social aparece indiretamente de modo deturpado. No regime de produção mercantil:

…o conjunto do trabalho social se afirma pela troca privada dos produtos individuais do trabalho. [20]

A relação social entre os produtores realiza-se sob a forma de trato entre os produtores autônomos, pois que o caráter social de seu trabalho pode ser expresso, considerando-se a igualdade de seus trabalhos tomados como gasto de força de trabalho humano, no sentido fisiológico da palavra. O trabalho humano abstrato é, pois, trabalho social específico, característico exclusivamente da produção mercantil.

É natural que, no regime socialista, o trabalho seja também um dispêndio de energia humana (força de trabalho), no sentido fisiológico do termo, isto é, gasto de músculo, nervos, substância cerebral etc.. Mas, o caráter social do trabalho não é expresso desse modo, na sociedade socialista. O caráter social do trabalho de um membro dessa socialista consiste, na própria função concreta, particular, no trabalho especial para cuja realização ele foi designado pela sociedade. Desse modo, trata-se de um trabalho diretamente social, que não oferece o duplo caráter de trabalho concreto e trabalho abstrato.

O valor encobre relações sociais

O valor é trabalho materializado na mercadoria, isto é, trabalho que tomou o aspecto de uma coisa, de um objeto que se opõe ao produtor como algo independente dele, pois que, depois de confeccionada, a mercadoria escapa ao controle de quem a produziu, passando mesmo a contrariar os interesses de seu produtor. [21] A oferta e a procura dessa mercadoria, assim como as flutuações de preços, desenvolvem-se independentemente da vontade e da consciência do produtor. Cada produtor procura vender sua mercadoria a preço mais vantajoso, o que não é sempre possível. E, ainda mais, ele não pode sequer, em muitas ocasiões, vender sua produção, coisa que depende das condições criadas, como diz Marx, “às escondidas” dos produtores. Por seus próprios atos (produção e venda de mercadorias), cada produtor participa e contribui para a criação de tais condições. Mas estas demonstram ser espontâneas, anárquicas, e impossíveis de serem dominadas pelos produtores. As relações sociais entre os homens efetuam-se por intermédio das relações entre as coisas. Não é o produtor que domina o produto de seu trabalho, nem suas relações com os outros produtores. Ao contrário, o produto de seu trabalho é que domina o produtor, bem como suas relações com os demais produtores.

Os produtos do trabalho humano apresentam-se como algo independente do homem, como um objeto, na realidade, dominante. Esse fenômeno é chamado por Marx de “caráter fetichista da mercadoria”. Este termo é empregado pelo fundador do socialismo científico como uma analogia aos fenômenos religiosos.

Os produtos da mente humana assemelham-se, o mais das vezes, a serem dotados de vida própria, seres que têm existência independente, relacionados entre si e com os homens. A mesma coisa acontece, no mundo das mercadorias, com os produtos da mão do homem. [22]

O valor é uma relação social entre homens, representada por uma relação entre os objetos. Por isso é que os produtores supõem que as mercadorias possuem a propriedade valor pela sua qualidade de objetos.

A ideia de que o valor é uma qualidade natural, intrínseca e não social, da mercadoria, é completamente falsa. Esse erro, no entanto, tem suas raízes na aparente realidade. O produtor só vê a superfície da vida social, percebe unicamente a envoltura material em que se dissimulam as relações entre os homens.

O fato da vida do produtor depender do movimento das mercadorias e de seus preços reforça ainda mais essa falsa noção das relações sociais.

Sob o regime de produção mercantil, o próprio caráter das relações sociais dá origem a noções e ideias correlatas desse gênero no espírito dos homens.

VI – As teorias burguesas do valor

O caráter de classe da ciência burguesa

Foi o economista burguês Petty (1623-1687) o descobridor de que o valor das mercadorias é criado pelo trabalho. Essa teoria foi desenvolvida, mais tarde, por Adam Smith (1723-1790) e, sobretudo, por Ricardo (1772-1823). Todos esses autores, porém, eram economistas burgueses e, para eles, a produção mercantil e o capitalismo constituíam um regime econômico eterno, próprio mesmo da natureza humana. Não viam e não podiam notar que o trabalho, fonte de valor, é um trabalho específico, particular. Marx destacou a contradição da produção mercantil e o duplo caráter do trabalho que está contido na mercadoria. Desenvolvendo a teoria do valor, demonstrou por que o trabalho, na sociedade baseada na produção mercantil, deve tomar a forma de valor, destinado este a dissimular o próprio trabalho.

No mesmo ponto em que os economistas burgueses viam uma relação entre coisas (troca de umas mercadorias por outras), Marx descobriu uma relação entre pessoas. [23]

A elaboração científica da teoria do valor devia conduzir necessariamente à revelação dos antagonismos de classe na sociedade burguesa, ao esclarecimento, portanto, do mistério da exploração capitalista. Foi Marx quem realizou esse esforço, tendo demonstrado, depois de analisar as contradições do capitalismo, que a revolução socialista é inevitável. Daí por diante, a economia política burguesa, limitando-se apenas a registrar o que se vê na superfície da vida social, transformou-se numa economia político apologética para, com desprezo à verdade, tratar de justificar o capitalismo e apresentá-lo como o melhor os mundos possíveis.

O agravamento da luta de classes mostra-nos:

…o estertor de agonia da economia científica burguesa. O problema já não consiste em saber se tal ou qual teorema é verdadeiro, mas descobrir o que é útil ou prejudicial para o capital, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. A investigação desinteressada cedeu lugar à polêmica remunerada e o trabalho científico e imparcial foi substituído pelo compromisso da consciência e pela apologética. [24]

A luta por uma economia político científica, assim como pelas demais ciências sociais, é tarefa do proletariado, a classe mais oprimida, na sociedade capitalista, essa classe que não teme a revelação do mistério do capitalismo e está, pelo contrário, interessada em revelá-lo, afim de conseguir sua libertação. A única economia política científica é a do proletariado – a economia política marxista – pois o interesse de classe do proletariado corresponde ao trabalho da ciência, da análise das relações sociais e das eis do desenvolvimento da sociedade capitalista.

Os interesses de classe da burguesia, pelo contrário, impedem o progresso da ciência, como o prova o seguinte fato: quando os economistas burgueses declararam guerra à teoria que explica o valor pelo trabalho, um dos discípulos de Malthus (célebre por ter “demonstrado cientificamente” que a pobreza e a falta de trabalho existiriam eternamente), escreveu em 1832:

A teoria que faz do trabalho a única fonte da riqueza é tão perigosa quanto falsa, pois dela se servem, como ponto de apoio, os que pretendem que toda a propriedade pertence à classe operária, da qual as classes dirigentes roubam uma parte. [25]

Vemos os economistas burgueses afirmarem, abertamente, que a ciência é prejudicial, considerando-a, portanto, perigosa para a burguesia.

As teorias burguesas e socialdemocratas do valor

Depois de Marx ter criado uma teoria completa do valor e relevado, por ela, o mistério da exploração capitalista, demonstrando que é inelutável a queda do capitalismo, os economistas burgueses consideraram um dever refutá-la. Todos trataram de provar que o valor é criado por qualquer coisa, menos pelo trabalho.

O economista austríaco Bohm-Bawerk é o fundador da mais “harmoniosa” das teorias burguesas do valor, em contraposição à de Marx. Segundo Bohm-Bawerk, o valor provém da utilidade da mercadoria, isto é, do seu valor de uso. De acordo com essa teoria, não só as mercadorias têm valor, pois este é inerente a todas as coisas úteis, produzidas para o consumo imediato ou fornecidas pela natureza, desde que sua quantidade seja limitada, como, por exemplo, a terra e a água nas regiões áridas. Encontramos essa teoria também nos economistas burgueses da França, especialmente em Carlos Gide. Entretanto, embora os valores de uso das mercadorias trocadas sejam diferentes, como sabemos, as mercadorias que são comparadas por ocasião da troca devem possuir, necessariamente, um traço comum. Além disso, o grau de utilidade de uma mesma mercadoria é diferente para cada indivíduo, enquanto que a grandeza do valor de uma mercadoria (expressa no seu preço) é independente das apreciações individuais de tal ou qual pessoa, pois os preços dessas mercadorias não variam para os diversos compradores. A teoria de Bohm-Bawerk não se distingue, em suma, da do economista vulgar Bailey, o qual, já em 1825, escrevia:

A riqueza (valor de uso) é atributo do homem; o valor é atributo das mercadorias. Um homem ou uma sociedade são ricos; uma pérola ou um diamante são valiosos…Uma pérola ou um diamante encerram valor como qualquer pérola ou qualquer diamante. [26]

Os economistas burgueses não querem ou não podem analisar o que se oculta sob a aparência dos fenômenos, porque não querem reconhecer que o valor é criado pelo trabalho. Pretendem, ao invés disso, dissimular as contradições da produção mercantil e do capitalismo. Os “teóricos” reformistas situam-se também no ponto de vista burguês, embora se considerem marxistas. Identificam, tanto como os economistas burgueses, o valor com o preço, e explicam a magnitude do primeiro conceito pelas condições da troca. Tratam de explicar o valor, não pela produção, mas pela circulação (pela troca), negando assim que o valor tenha sido criado pelo trabalho.

A teoria reformista serve de base a uma outra, segundo a qual o socialismo não tem necessidade de realizar a expropriação dos capitalistas. Bastaria, simplesmente, que o Estado (burguês, é claro) fosse dono dos órgãos destinados a regulamentar a circulação (teoria denominada “socialização por meio da circulação”). Os reformistas falsificam, assim, a teoria marxista do valor, para justificar teoricamente sua traição ou combate ao socialismo.

A importância da teoria marxista do valor

A teoria marxista do valor não se separa das questões palpitantes da luta de classes. Quem se opõe a ela, está se colocando contra o proletariado. Distanciando-se dela, com um ou outro pretexto, amparando-se até em determinadas frases marxistas, abandona-se de uma vez o proletariado e a ciência e toma-se o partido da burguesia.

A teoria do valor, de Marx, demonstra, primeiramente, que o trabalho constitui o conteúdo ou a substância material do valor. Daí conclui-se que não é a burguesia, mas o proletariado, quem cria todas as riquezas da sociedade burguesa. Descobre Marx, em segundo lugar, o caráter real das relações sociais da economia mercantil. Revela o mistério da exploração capitalista escondido nas relações de troca que existem entre operários e capitalistas (o operário vende sua força de trabalho e compra do capitalista seus meios de existência). Em terceiro lugar, esta teoria demonstra que o valor é a lei do desenvolvimento da economia mercantil, no qual o homem não é o dono dos produtos de seu trabalho, sendo, pelo contrário, dominado por esses produtos. Põe em evidência, finalmente, que com a supressão do capitalismo e da produção mercantil em geral, desaparecerá também a lei do valor, tornando-se os homens, com pleno conhecimento de causa, donos de suas relações sociais.

Toda a doutrina de Marx, bem como a sua teoria do valor, constituem, segundo Engels, a crítica socialista da sociedade burguesa.

A doutrina de Marx e Engels, segundo a qual a produção mercantil engendra inevitavelmente o capitalismo, foi aproveitada e desenvolvida por Lenin, ao tempo de sua luta contra os “populistas”, que pretendiam que, na Rússia, se podia evitar o desenvolvimento capitalista baseando-se no fato da economia dominante se dizer “comunalista”. Apoiado na teoria de Marx, Lenin demonstrou que a decomposição da economia camponesa comunalista estava já avançada, que o dinheiro transformava a economia nacional em mercantil e o desenvolvimento desta última engendra relações capitalistas. Lenin insistiu em diversas ocasiões sobre esse assunto. Pouco depois da Revoluções de Outubro e durante a transição do comunismo de guerra para a Nova Política Econômica (NEP), Lenin demonstrou que, mesmo sob condições de uma ditadura do proletariado, a pequena produção engendra capitalismo. Por esse motivo, a político do Estado proletário deve limitar e deter o crescimento do capitalismo, forjado pela pequena produção mercantil, preparando-se, ao mesmo tempo, as condições para a passagem da pequena produção para a grande produção socialista.

Mais tarde, Stalin demonstrou que a luta contra a coletivização agrícola perpetuaria a pequena produção mercantil e, em consequência, o germe do desenvolvimento do capitalismo.

…a pequena produção…gera, constantemente, o capitalismo e a burguesia, dia a dia, hora a hora, por um processo espontâneo e universal. [27]


[1] Marx – O capital – Tomo I.

[2] Lenin – Karl Marx.

[3] Marx – O capital – Tomo I.

[4] Lenin – Karl Marx.

[5] Marx – O capital – Tomo I.

[6] Marx – O capital – Tomo I.

[7] Lenin – Karl Marx.

[8] Marx – O capital – Tomo I.

[9] Marx – O capital – Tomo I.

[10] Lenin – Karl Marx.

[11] Engels – Antiduhring.

[12] Lenin – Karl Marx.

[13] Marx – Cartas a Kugelmann – Ed. Sociais Internacionais – Paris – pp. 100-101.

[14] Marx – O capital – Tomo I.

[15] Engels – Antiduhring – Editorial Calvino Limitada – Rio.

[16] Marx – O capital – Tomo I.

[17] Engels – Antiduhring – Editorial Calvino Limitada – Rio.

[18] Marx – Crítica dos Programas de Gotha e de Erfurt – Livraria Bergua – Madrid.

[19] Marx – O capital – Tomo I.

[20] Marx – Cartas a Kugelmann

[21] Marx – O capital – Tomo I.

[22] Marx – O capital – Tomo I.

[23] Lenin – Karl Marx.

[24] Marx – História das doutrina econômicas – Tomo II de “O Capital”.

[25] Marx – História das doutrina econômicas – Tomo II de “O Capital”.

[26] Marx – O capital – Tomo I.

[27] Lenin – O esquerdismo, doença infantil do comunismo – Calvino Filho, Editor – 1932.