Mariátegui sobre o niilismo, ceticismo e a fé revolucionária (1925)

Nota do blog: Nestes ensaios, o grande dirigente comunista peruano, fundador do PCP e um dos maiores marxistas da América Latina – José Carlos Mariátegui – combate, numa linguagem poética, a concepção de mundo burguesa e pequeno-burguesa. Partindo da análise dos efeitos da primeira guerra mundial imperialista, Mariátegui demonstra a caducidade da sociedade burguesa e de seus mitos. Após a guerra, diz ele, “o viver docemente” da burguesia, alimentado no pré-guerra – no desenvolvimento relativamente pacífico do capitalismo, nas palavras de Lenin, após o fim da revolução burguesa mundial e antes do início da revolução proletária mundial – foi quebrado, despedaçado, não mais atingível. O mundo sacudido por grandes tormentas, guerras, revoluções impede sua realização. O fascismo, analisa, é uma resposta de parte da burguesia, temente ante os bolcheviques, os comunistas. Fascismo que é uma “tese extravagante” demais para a velha burguesia, que quer derrotar a revolução parlamentarmente, “com bons modos, se possível”. Mas a democracia burguesa, assim como todo o mundo espiritual da burguesia, seu “viver docemente”, já não corresponde.

Em contraponto, desenvolve-se a nova humanidade – a “humanidade da alegria” nas palavras do Presidente Gonzalo.O proletariado e os comunistas são movidos por um mito – uma “fé religiosa” na revolução, nas massas; fé assentada numa ciência e na verdade universal do marxismo, mas, ainda assim, uma fé, uma paixão e um ímpeto revolucionários – e, por isso, derrubarão os velhos mitos, “julgaram a obra dos revolucionários do século dezoito”, levantam novos mitos. Mariátegui argumenta: o homem, em tempos como este, precisa de um mito para mover-se, para crer. A burguesia está incrédula, perdeu seus mitos da revolução burguesa, está cética, niilista, só sabe duvidar e não se sai do lugar, moribunda; o proletariado está com seus mitos em plena vitalidade, pulsando, suas massas têm fé e paixão, creem na humanidade, no futuro, na revolução, têm uma certeza. O caráter “religioso” do marxismo para os comunistas e proletários, ou seja, sua fé e certeza absoluta nessa sua grande razão de existir, é onde reside a força dos revolucionários. Estão dispostos a, nas palavras de Mariátegui, “viver perigosamente” para alcançar seus mitos, para travar sua luta final. O homem letrado, diz, frequentemente busca sempre ter certeza de tudo para mover-se, como se fosse possível, e caem na dúvida estéreo, paralisante, e definham no niilismo; o homem não letrado, as massas, têm fé e movem-se e, por isso, frequentemente “alcançam seu caminho” antes daqueles. O homem simples, proletário, “não ambiciona mais do que pode e deve ambicionar todo homem: cumprir bem sua jornada”.


A alma matinal

A emoção de nosso tempo

Duas concepções da vida[1]

A guerra mundial não modificou nem fraturou somente a economia e a política do Ocidente. Ela modificou ou fraturou, também, sua mentalidade e seu espírito. As consequências econômicas, definidas e precisadas por John Maynard Keynes, não são mais evidentes nem mais sensíveis que as consequências espirituais e psicológicas. Os políticos, os estadistas encontrarão, talvez, através de uma série de experimentos, uma fórmula e um método para resolver as primeiras; mas não encontrarão, seguramente, uma teoria e uma prática adequada para anular as segundas. Mais provável me parece que devam acomodar seus programas à pressão da atmosfera espiritual, a cuja influência seu trabalho não pode subtrair. O que diferencia os homens desta época não é tão pouco só a doutrina, mas sobretudo o sentimento. Duas opostas concepções da vida, uma pré-bélica, outra pós-bélica, impedem a inteligência de homens que, aparentemente, servem ao mesmo interesse histórico. Eis aqui o conflito central da crise contemporânea.

A filosofia evolucionista, historicista, racionalista unia nos tempos pré-bélicos, por cima das fronteiras políticas e sociais, as duas classes antagônicas. O bem-estar material, a potência física das cidades havia engendrado um respeito supersticioso pela ideia do progresso. A humanidade parecia ter encontrado uma via definitiva. Conservadores e revolucionários aceitavam praticamente as consequências da tese evolucionista. Uns e outros coincidiam na mesma adesão à ideia do progresso e na mesma aversão à violência.

Não faltavam homens a quem essa chata e cômoda filosofia não conseguia seduzir ou captar. Jorge Sorel, um dos escritores mais agudos da França pré-bélica, denunciava, por exemplo, as ilusões do progresso. Don Miguel de Unamuno predicava quixotismo. Mas a maioria dos europeus perdeu então o gosto das aventuras e dos mitos heroicos. A democracia conseguia o favor das massas socialistas e sindicais, satisfeitas de suas fáceis conquistas graduais, orgulhosas de suas cooperativas, de sua organização, de suas “casas do povo” e de sua burocracia. Os capitães e os oradores da luta de classes gozavam de uma popularidade sem riscos, que adormecia em suas almas toda veleidade revolucionária. A burguesia deixava-se conduzir por líderes inteligentes e progressistas que, persuadidos da estolidez e da imprudência de uma política de perseguição das ideias e dos homens do proletariado, preferiam uma política dirigida a domesticá-los e ablandá0los com sagazes transações.

Um humor decadente e esteticista se difundia, sutilmente, nos estratos superiores da sociedade. O crítico italiano Adriano Tilgher, em um de seus remarcáveis ensaios, define assim a última geração da burguesia parisiense: “Produto de uma civilização muitas vezes secular, saturada de experiência e de reflexão, analítica e introspectiva, artificial e livresca, a esta geração crescida antes da guerra tocou-lhe viver em um mundo que parecia consolidado para sempre e assegurado contra toda a possibilidade de mudanças. E a este mundo adaptou-se sem esforço. Geração toda nervos e cérebro gastos e cansada pelas grandes fatigas de seus genitores: não suportava os esforços tenazes, as tensões prolongadas, as bruscas sacudidas, os rumores fortes, as luzes vivas, o ar livre e agitado; amava a penumbra e os crepúsculos, as luzes doces e discretas, os sons apagados e longes, os movimentos medidos e regulares”. O ideal desta geração era viver docemente.

II

Quando a atmosfera da Europa, próxima à guerra, se carregou de eletricidade em demasiado, os nervos desta geração sensual, elegante e hiperestésica sofreram um raro desconforto e uma estranha nostalgia. Um pouco entediados de vivre avec douceur, se estremeceram com uma apetência morbosa, com um desejo enfermiço. Reclamaram, quase com ansiedade, quase com impaciência, pela guerra. A guerra não aparecia como uma tragédia, como um cataclismo, mas como um deporte, como um alcaloide ou como um espetáculo. Oh!, a guerra, – como em uma novela de Jean Bernier, esta gente sentiu pressentia e augurava –, ele serait três chic la guerre.

Mas a guerra não correspondeu a esta previsão frívola e estúpida. A guerra não queria ser tão medíocre. Paris sentiu, em sua entranha, a garra do drama bélico. Europa, conflagrada, lacerada, mudou de mentalidade e de psicologia.

Todas as energias românticas do homem ocidental, anestesiadas por longos lustros de paz confortável e abundante, renasceram tempestuosas e prepotentes. Ressuscitou o culto da violência. A Revolução Russa insuflou na doutrina socialista uma alma guerreira e mística. E ao fenômeno bolchevique seguiu o fenômeno fascista. Bolcheviques e fascistas não se pareciam aos revolucionários e conservadores pré-bélicos. Careciam da antiga superstição do progresso. Eram testemunhas, conscientes ou inconscientes, de que a guerra havia demonstrado à humanidade que ainda poderiam sobrevir feitos superiores à previsão da Ciência e também feitos contrários ao interesse da Civilização.

A burguesia, assustada pela violência bolchevique, apelou à violência fascista. Confiava muito pouco que suas forças legais bastassem para defende-la dos assaltos da revolução. Mas, pouco a pouco, apareceu logo em seu ânimo a nostalgia da grosseira tranquilidade pré-bélica. Esta vida de alta tensão lhe é desgostosa e a fatiga. A velha burocracia socialista e sindical compartilha esta nostalgia. Por que não voltar – se pergunta – ao bom tempo, pré-bélico? Um mesmo sentimento da vida vincula e acorda espiritualmente estes setores da burguesia e do proletariado que trabalham, em comandita, por desqualificar, ao mesmo tempo, o método bolchevique e o método fascista. Na Itália, este espírito da crise contemporânea tem os mais nítidos e precisos contornos. Ali, a velha guarda burguesa abandonou o fascismo e acordou no terreno da democracia com a velha guarda socialista. O programa de toda esta gente se condensa em uma só palavra: normalização. A normalização seria a volta à vida tranquila, o despejo e o terreno de todo o romanticismo, de todo heroísmo, de todo quixotismo de direita e de esquerda. Nada de regressar, com os fascistas, até Medio Evo. Nada de avançar com os bolcheviques, até a utopia.

O fascismo fala uma linguagem beligerante e violenta que alarma a quem só ambiciona a normalização. Mussolini, em um discurso, disse: “Não vale a pena viver como homens e como partido, e sobretudo não valeria a pena chamar-se fascistas, se não se sabe que se está em meio à tormenta. Qualquer um é capaz de navegar em um mar de bonança, quando os ventos inflam as velas, quando não há ondas nem ciclones. O belo, o grande, e mais, o que é contundente, é navegar quando a tempestade se enfurece. Um filósofo Maman dizia: vive perigosamente. Eu digo que essa fora a palavra de ordem do jovem fascismo italiano: viver perigosamente. Isto significa estar pronto para tudo, a qualquer sacrifício, qualquer perigo, qualquer ação, quando se trata de defender a pátria e o fascismo”. O fascismo não concebe a contrarrevolução como um empreendimento vulgar e policial, mas como um empreendimento épico e heroico[2]. Tese excessiva, tese incandescente, tese exorbitante para a velha burguesia, que não quer absolutamente ir tão longe. Que se detenha e se frustre a revolução, claro, mas, se possível, com boas maneira. O cassetete não deve ser aplicado a não ser em caso extremo. E não há que tocar, em nenhum caso, na Constituição nem no Parlamento. Deve-se deixar as coisas como estavam. A velha burguesia anseia viver doce e parlamentarmente. “Livre e tranquilamente”, escrevia polemizando com Mussolini Il Corriere dalla Sera de Milão. Mas uns e outros termos designam o mesmo anseio.

Os revolucionários, como os fascistas, propõem-se, por sua parte, viver perigosamente. Nos revolucionários, como nos fascistas, se adverte análogo impulso romântico, análogo humor quixotesco.

A nova humanidade, em suas duas expressões antitéticas, acusa uma nova intuição da vida. Esta intuição da vida não aparece, exclusivamente, na prosa beligerante dos políticos. Em umas divagações de Luis Bello encontro esta frase: “Convém corrigir a Descartes: combato, logo existo”. A correção resulta, na realidade, oportuna. A fórmula filosófica de uma idade racionalista tem que ser: “Penso, logo existo”. Mas a esta idade romântica, revolucionária e quixotesca, não serve já a mesma fórmula. A vida, mais que pensamento, quer ser hoje ação, isto é, combate. O homem contemporâneo tem necessidade de fé. E a única fé que pode ocupar-se seu eu profundo, é uma fé combativa. Não voltarão, quem sabe até quando, os tempos de viver com doçura. A doce vida pré-bélica não gerou mais que ceticismo e niilismo. E da crise deste ceticismo e deste niilismo, nasce a rude, a forte, a peremptória necessidade de uma fé de um mito que mova os homens a viver perigosamente.

O homem e o mito

I

Todas as investigações da inteligência contemporânea sobre a crise mundial desembocam nesta unânime conclusão: a civilização burguesa sofre da falta de um mito, de uma fé, de uma esperança. Falta esta que é expressão de sua quebra material. A experiência racionalista teve esta paradoxa eficácia de conduzir a humanidade à desconsolada convicção de que a Razão não pode dar-lhe nenhum caminho. O racionalismo não tem serviço a não ser para desacreditar a razão. A ideia Liberdade, que disse Mussolini, matou os demagogos. Mais exato é, sem dúvida, que a ideia Razão matou os racionalistas. A Razão extirpou da alma da civilização burguesa os resíduos de seus antigos mitos. O homem ocidental colocou, durante algum tempo, no retábulo dos deuses mortos, a Razão e a Ciência. Mas nem a Razão e nem a Ciência podem ser um mito. Nem a Razão nem a Ciência podem satisfazer toda a necessidade de infinito que há no homem. A própria Razão encarregou-se de demonstrar aos homens que ela não lhes basta. E que unicamente o Mito possui a preciosa virtude de preencher seu eu profundo.

A Razão e a Ciência corroeram e dissolveram o prestígio das antigas religiões.

Eucken, em seu livro sobre o sentido e o valor da vida, explica clara e certeiramente o mecanismo deste trabalho dissolvente. As criações da ciência deram ao homem uma sensação nova de sua potência. O homem, antes assustado ante o sobrenatural, descobriu de pronto um exorbitante poder para corrigir e retificar a Natureza. Esta sensação desalojou de sua alma as raízes da velha metafísica.

Mas o homem, como a filosofia o define, é um animal metafísico. Não se vive fecundamente sem uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem um mito, a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história é feita pelos homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança super-humana; os demais homens são o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa apareceu evidente desde o instante em que esta civilização constatou sua carência de um mito. Renán remarcava melancolicamente, em tempos de orgulhoso positivismo, a decadência da religião, e se inquietava pelo porvir da civilização europeia. “As pessoas religiosas – escrevia – vivem de uma sombra. Do que viverá depois de nós?”. A desolada interrogação aguarda uma resposta ainda.

A civilização burguesa caiu no ceticismo. A guerra pareceu reanimar os mitos da revolução liberal: a Liberdade, a Democracia, a Paz. Mas a burguesia aliada os sacrificou, em seguida, a seus interesses e a seus rancores na conferência de Versalhes. O rejuvenescimento desses mitos serviu, no entanto, para que a revolução liberal se cumprisse na Europa. Sua invocação condenou à morte as defasagens da feudalidade e de absolutismo sobreviventes ainda na Europa Central, na Rússia e na Turquia. E, sobretudo, a guerra provou uma vez mais, confiável e trágica, o valor do mito. Os povos capazes da vitória foram os povos capazes de um mito multitudinário.

II

O homem contemporâneo sente a peremptória necessidade de um mito. O ceticismo é infecundo e o homem não se conforma com a infecundidade. Uma exasperada e às vezes impotente “vontade de crer”, tão aguda no homem pós-bélico, era já intensa e categórica no homem pré-bélico. Um poema de Henri Frank, La Danza delante del Arca, é o documento que tenho mais a mão a respeito do estado de ânimo da literatura dos últimos anos pré-bélicos. Neste poema late uma grande e funda emoção. Por isto, sobretudo, quero citá-lo. Henri Frank nos disse sua profunda “vontade de crer”. Israelita, trata, primeiro, de ligar em sua alma a fé no deus de Israel. O intento é vão. As palavras do Deus de seus pais soam estranha nesta época. O poema não as compreende. Se declara surdo a seu sentido. Homem moderno, o verbo do Sinaí não pode captá-lo. A fé morta não é capaz de ressuscitar. Pesam sobre ela vinte séculos. “Israel está morto de ter dado um Deus ao mundo”. A voz do mundo moderno propõe seu mito fictício e precário: a Razão. Mas Henri Frank não pode aceitá0lo. “A Razão – disse – a razão não é o universo”.

“La raison sons Dieu c’est la chambre sans lampe”.

O poeta parte em busca de Deus. Tem urgência de satisfazer sua sede de infinito e de eternidade. Mas a peregrinação é infrutuosa. O peregrino queria contentar-se com a ilusão cotidiana. “Ah! Sache franchement saisir de tout moment – la fuyante fumée et le suc éphémére”. Finalmente pensa que “a verdade é o entusiasmo sem esperança”. O homem porta a sua verdade em si mesmo.

“Si l’ Arche est vide oú tu pensais trouver la loi, rien n’est réel que ta danse”.

III

Os filósofos não aportam uma verdade análoga à dos poetas. A filosofia contemporânea varreu o medíocre edifício positivista. Esclareceu e demarcou os modestos confins da razão. E formulou as atuais teorias do Mito e da Ação. Inútil é, segundo estas teorias, buscar uma verdade absoluta. A verdade de hoje não será a verdade de amanhã. Uma verdade é válida só para uma época. Contentemo-nos com uma verdade relativa.

Mas esta linguagem relativista não é acessível, não é inteligível para o vulgo. O vulgo não sutiliza tanto. O homem se resiste a seguir uma verdade enquanto não a crê absoluta e suprema. É em vão recomendar-lhe a excelência da fé, do mito, da ação. Há que propor-lhe uma fé, um mito, uma ação. Onde encontrar o mito capaz de reanimar espiritualmente a ordem que tramonta?

A pergunta exaspera a anarquia intelectual, a anarquia espiritual da civilização burguesa. Algumas almas pugnam por restaurar o Medio Evo e o ideal católico. Outras trabalham por um retorno ao Renascimento e o ideal clássico. O fascismo, pela boca de seus teóricos, se atribui uma mentalidade medieval e católica; crê representar o espírito da Contrarreforma; ainda que, por outra parte, pretende encarnar a ideia da Nação, ideia tipicamente liberal. A teorização parece satisfazer na invenção dos mais alambicados sofismas. Mas, todos os intentos de ressuscitar mitos pretéritos resultam, em seguida, destinados ao fracasso. Cada época quer ter uma intuição própria do mundo. Nada mais estéril que pretender reanimar um mito extinto. Jean R. Bloch, em um artigo publicado na revista Europe, escreve a este respeito palavras de profunda verdade. Na catedral de Chartres sentiu a voz maravilhosamente crente do longínquo Medio Evo. Mas adverte quanto e como essa voz é estranha às preocupações desta época.

“Seria uma loucura – escreve – pensar que a mesma fé repetiria o mesmo milagre. Procura a vosso redor, em alguma parte, uma mística nova, ativa, suscetível de milagres, apta a preencher aos desgraçados de esperança, a suscitar mártires e a transformar o mundo com promessas de bondade de virtude. Quando a haveis encontrado, designado, nomeado, não sereis absolutamente o mesmo homem”.

Ortega e Gasset fala da “alma desencantada”. Romain Rolland fala da “alma encantada”. Qual dos dois tem razão? Ambas as almas coexistem. A “alma desencantada” de Ortega e Gasset é a alma da decadente civilização burguesa: a “alma encantada” de Romain Rolland é a alma dos forjadores da nova civilização. Ortega e Gasset não vê nada além do pôr do sol, o tramonto, der Untergang. Romain Rolland vê o orto, o alba, der Aurgang. O que mais esclarece e diferença nesta época a burguesia e o proletariado é o mito. A burguesia não tem já nenhum mito. Está incrédula, cética, niilista. O mito liberal renascentista envelheceu em demasiado. O proletariado tem um mito: a revolução social. Para alcançar esse mito se move com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa se entretém em uma crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está em sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escreve em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos têm-se movido do céu à terra. Não são divinos; são humanos, são sociais[3].

Faz algum tempo que se constata o caráter religioso, místico, metafísico do socialismo. Jorge Sorel, um dos maiores representantes do pensamento francês do século XX, dizia em suas Reflexões sobre a Violência: “Se encontrou uma analogia entre a religião e o socialismo revolucionário, que se propõe a preparação e ainda a reconstrução do indivíduo para uma obra gigantesca. Mas Bergson nos ensinou que não só a religião pode ocupar a região do eu profundo; os mitos revolucionários podem também a ocupas com o mesmo título”. Renán, como o mesmo Sorel o recorda, advertia a fé religiosa dos socialistas, constatando sua inexpugnabilidade a todo desalento. “A cada experiência frustrada, recomeçam. Se não encontraram a solução: a encontrarão. Jamais os assalta a ideia de que a solução não exista. Eis aqui sua força”.

A mesma filosofia que nos ensina a necessidade do mito e da fé, resulta incapaz geralmente de compreender a fé e o mito dos novos tempos. “Miséria da filosofia”, como dizia Marx. Os profissionais da Inteligência não encontrarão o caminho da fé; o encontrarão as multidões. Aos filósofos lhes tocará, mais tarde, codificar o pensamento que emerge da grande gesta multitudinária. Souberam os filósofos, por acaso, da decadência romana compreender a linguagem do cristianismo? A filosofia da decadência burguesa não pode ter melhor destino.

A luta final

I

Madeleine Marx, uma das mulheres de letras mais inquietas e modernas da França contemporânea, reuniu suas impressões da Rússia em um livro que leva este título: C’est la lutte finale… A frase do canto de Eugenio Pottier adquire um relevo histórico. “É a luta final!”.

O proletário russo saúda a revolução com este grito que é o grito ecumênico do proletário mundial. Grito multitudinário de combate e de esperança que Madeleine Marx tem ouvido nas ruas de Moscou e que eu ouvi nas ruas de Roma, de Milão, de Berlim, de Paris, de Viena e de Lima. Toda a emoção de uma época está nele. As multidões revolucionárias creem travar a luta final.

Travam-na verdadeiramente? Para as céticas criaturas da velha ordem esta luta final é apenas uma ilusão. Para os fervorosos combatentes da nova ordem é uma realidade. Au dessus de la Melée, uma nova e sagaz filosofia da história nos propõe outro conceito: ilusão e realidade. A luta final da estrofe de Eugenio Pottier é, ao mesmo tempo, uma realidade e uma ilusão.

Se trata, efetivamente, da luta final de uma época e de uma classe. O progresso – ou o processo humano – se cumpre por etapas. Por conseguinte, a humanidade tem perenemente a necessidade de sentir-se próximo a uma meta. A meta de hoje não será seguramente a meta de amanhã; mas, para a teoria humana em marcha, é a meta final. O messiânico milênio não virá nunca. O homem chega para partir de novo. Não pode, no entanto, prescindir da crença de que a nova jornada é a jornada definitiva. Nenhuma revolução prevê a revolução que virá em seguida, ainda que na entranha porte o seu germe. Para o homem, como sujeito da história, não existe além de sua própria e pessoal realidade. Não lhe interessa a luta abstratamente, mas sua luta concretamente. O proletariado revolucionário, portanto, vive a realidade de uma luta final. A humanidade, enquanto isso, desde seu ponto de vista abstrato, vive a ilusão de uma luta final.

II

A revolução francesa teve a mesma ideia de sua magnitude. Seus homens creram também inaugurar uma nova era. A Convenção quis gravar para sempre no tempo, o começo do milênio republicano. Pensou que a era cristã e o calendário gregoriano não podiam conter a República. O hino da revolução saudou o alba de um novo dia; le jour de gloire est arrivé. A república individualista e jacobina aparecia como o supremo desideratum da humanidade. A revolução se sentia definitiva e insuperável. Era a luta final. A luta final pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Menos de um século e meio bastou para que este mito envelhecesse. A Marselhesa deixou de ser um canto revolucionário. O “dia de glória” perdeu seu prestígio sobrenatural. Os próprios fautores da democracia se mostram desencantados da prestancia do parlamento e do sufrágio universal. Fermenta no mundo outra revolução. Um regime coletivista pugna por substituir o regime individualista. Os revolucionários do século vinte se preparam a julgar sumariamente a obra dos revolucionários do século dezoito.

A revolução proletária é, no entanto, uma consequência da revolução burguesa. A burguesia criou, em mais de um século de vertiginosa acumulação capitalista, as condições espirituais e materiais de uma nova ordem. Dentro da revolução francesa se aninharam as primeiras ideias socialistas. Logo, o industrialismo organizou gradualmente em suas usinas os exércitos da revolução. O proletariado, confundido antes com a burguesia no estado simples, formulou então suas reivindicações de classe. O seio abundante de bem-estar capitalista alimentou o socialismo. O destino da burguesia quis que esta abastecesse, com ideias e com homens, a revolução dirigida contra seu poder.

III

A ilusão da luta final resulta, pois, uma ilusão muito antiga e muito moderna. Cada dois, três ou mais séculos, esta ilusão reaparece com distinto nome. E, como agora, é sempre a realidade de uma inumerável falange humana. Possui aos homens para renová-los. É o motor de todos os progressos. É a estrela de todos os renascimentos. Quando a grande ilusão tramonta é porque se criou já uma nova realidade humana. Os homens repousam então de sua eterna inquietude. Se fecha um ciclo romântico e se abre o ciclo clássico. No ciclo clássico desenvolve-se, estiliza e degenera uma forma que, realizada plenamente, não poderá conter em si as novas forças da vida. Só nos casos em que sua potência criadora se enerva, a vida dormita, estancada, dentro de uma forma rígida, decrépita, caduca. Mas estes êxtases dos povos ou das sociedades não são ilimitados. A sonolenta laguna, a quieta palude, acaba por agitar-se e transbordar. A vida recupera então sua energia e seu impulso. A Índia, a China, a Turquia contemporâneas são um exemplo vivo e atual destes renascimentos. O mito revolucionário sacudiu e reanimou, potentemente, esses povos em colapso.

O Oriente desperta-se para a ação. A ilusão renasceu em sua alma milenar.

IV

O ceticismo se contentava com contrastar a irrealidade das grandes ilusões humanas. O relativismo não se conforma com o mesmo negativo e infecundo resultado. Começa por ensinar que a realidade é uma ilusão; mas conclui por reconhecer que a ilusão é, por sua vez, uma realidade. Nega que existam verdades absolutas; mas se dá conta de que os homens têm que crer em suas verdades relativas como se fossem absolutas. Os homens têm necessidade de certeza. O que importa se a certeza dos homens de hoje não seja a certeza dos homens de amanhã? Sem um mito os homens não podem viver fecundamente. A filosofia relativista nos propõe, por conseguinte, obedecer a lei do mito.

Pirandello, relativista, oferece o exemplo aderindo-se ao fascismo. O fascismo seduz Pirandello porque enquanto a democracia voltou-se cética e niilista, o fascismo representa uma fé religiosa, fanática na hierarquia e na Nação. (Pirandello que é um pequeno burguês siciliano, carece de aptidão psicológica para compreender e seguir o mito revolucionário). O literato de exasperado ceticismo não ama, em política, a dúvida. Prefere a afirmação violenta, categórica, apaixonada, brutal. A multidão, mais ainda que o filósofo cético, mais ainda que o filósofo relativista, não pode prescindir de um mito, não pode prescindir de uma fé. Não lhe é possível distinguir sutilmente sua verdade da verdade pretérita ou futura. Para ela não existe além da verdade. Verdade absoluta, única, eterna. E, conforme esta verdade, sua luta é realmente uma luta final.

O impulso vital do homem responde a todas as interrogações da vida antes da investigação filosófica. O homem não letrado não se preocupa da relatividade de seu mito. Não lhe seria possível sequer compreendê-la. Mas geralmente encontra, melhor que o literato e que o filósofo, seu próprio caminho. Posto que deve atuar, atua. Posto que deve crer, crê. Posto que deve combater, combate. Nada sabe da relativa insignificância de seu esforço no tempo e no espaço. Seu instinto o desvia da dúvida estéril. Não ambiciona mais do que pode e deve ambicionar todo homem: cumprir bem sua jornada.


[1] Publicado em Mundial: Lima, 9 de janeiro de 1925, transcrito em Amauta: Nº 31 (págs 4-7). Lima, junho-julho de 1930. E incluído na antologia de José Carlos Mariátegui, que a Universidade Nacional do México editou, em 1937, como segundo volume de sua série de “Pensadores da América” (págs. 124-129).

[2] Esta afirmação diz respeito aos anos ascensionais do movimento fascista, porque então procurou Mussolini conservar a aparência constitucional de seu regime e ainda tolerou uma oposição que te oferecera luta. Mas depois da crise sofrida pelo regime durante os anos de 1925-1930, não cabe dúvida de que José Carlos Mariátegui alteraria os termos de sua afirmação, pois tendo definido seu caráter reacionário, a “empresa épica e heroica” do fascismo trocou-se em mera declamação e sua realidade permanente foi a ação policial.

[3] Refere-se a um artigo inicialmente publicado em Variedades (Lima, 11 de outubro de 1924) e depois incluído em A Cena Contemporânea (págs. 251-259). Ali, planteia e enuncia seu pensamento da seguinte forma: “Acaso a emoção revolucionária não é uma emoção religiosa? Acontece no Ocidente que a religiosidade tem caído do céu à terra. Seus motivos são humanos, são sociais; não são divinos. Pertencem à vida terrena e não à vida celeste”.