Nota do blog: O seguinte artigo é de autoria da comunista alemã Clara Zetkin relatando diálogo com Lenin, chefatura do Partido bolchevique e da Revolução Russa – sobre a questão feminina. Retirado do Marxists Internet Archive.
Lênin e o Movimento Feminino
O camarada Lênin falou-me várias vezes sobre a questão feminina, à qual atribuía grande importância, uma vez que o movimento feminino era para ele parte integrante e, em certas ocasiões, parte decisiva do movimento de massas. É desnecessário dizer que ele considerava a plena igualdade social da mulher como um princípio indiscutível do comunismo.
Nossa primeira conversação longa sobre esse assunto teve lugar no outono de 1920, no seu grande gabinete, no Kremlin. Lêninestava sentado diante de sua mesa coberta de livros e de papéis, que indicavam seu tipo de ocupação e seu trabalho, mas sem exibir «a desordem dos gênios».
«Devemos criar necessariamente um poderoso movimento feminino internacional, fundado sobre uma base teórica clara e precisa» — começou ele, depois de haver-me saudado. «É claro que não pode haver uma boa prática sem teoria marxista. Nós, comunistas, devemos manter sobre tal questão nossos princípios, em toda sua pureza. Devemos distinguir-nos claramente de todos os outros partidos. Infelizmente, nosso II Congresso Internacional não teve tempo de tomar posição sobre esse ponto, embora a questão feminina tivesse sido ali levantada. A culpa é da comissão, que faz com que as coisas se arrastem. Ela deve elaborar uma resolução, teses, uma linha precisa. Mas até agora seus trabalhos não avançaram muito. Deveis ajudá-la.»
Já ouvira falar do que agora me dizia Lênin e expressei-lhe meu espanto. Era uma entusiasta de ,tudo quanto haviam feito as mulheres russas durante a revolução, de tudo quanto ainda faziam para defendê-la e para ajudá-la a desenvolver-se. Quanto à posição e à atividade das mulheres no Partido bolchevique, parecia-me que, por este lado, o Partido se mostrava realmente à altura de sua tarefa. Só o Partido bolchevique fornece quadros experimentados, preparados, para o movimento feminino comunista internacional e, ao mesmo tempo, serve de grande exemplo histórico.
«Exato, exatíssimo» — observou Lênin com um leve sorriso. «Em Petrogrado, em Moscou, nas cidades e nos centros industriais afastados, o comportamento das mulheres proletárias durante a revolução foi soberbo. Sem elas, muito provavelmente não teríamos vencido. Essa é minha opinião. De que coragem deram provas e que coragem mostram ainda hoje! imaginai todos os sofrimentos e as privações que suportaram. . . Mas mantêm-se firmes, não se curvam, porque defendem os sovietes, porque querem a liberdade e o comunismo.
Sim, as nossas operárias são magníficas, são verdadeiras lutadoras de classes. Merecem nossa admiração e nosso afeto.
Sim, possuíamos em nosso Partido companheiras seguras, capazes e incansáveis. Podemos confiar-lhes postos importantes nos sovietes, nos comitês executivos, nos Comissariados do Povo, na administração. Muitas delas trabalham dia e noite no Partido ou entre as massas proletárias e camponesas, ou no Exército Vermelho. Tudo isso é muitíssimo precioso para nós. E é importante para as mulheres do mundo inteiro, porque comprova a capacidade das mulheres e o elevado valor que tem seu trabalho, para a sociedade.
A primeira ditadura do proletariado abre verdadeiramente o caminho para a completa igualdade social da mulher. Elimina mais preconceitos que a montanha de escritos sobre, a igualdade feminina. E apesar de tudo isso, não possuímos ainda um movimento feminino comunista internacional. Mas devemos chegar a formá-lo, a todo custo. Devemos proceder imediatamente à sua organização. Sem esse movimento, o trabalho de nossa Internacional e das suas seções será incompleto e assim permanecerá.
Nosso trabalho revolucionário deve ser conduzido até o fim. Mas, dizei-me, como vai o trabalho comunista no exterior?»
Transmiti-lhe todas as informações que havia conseguido recolher; informações limitadas, em virtude dos elos débeis e irregulares que então existiam entre os partidos aderentes à Internacional Comunista. Lênin, um pouco inclinado para a frente, escutava atento, sem nenhum sinal de aborrecimento, de impaciência ou cansaço. Interessava-se vivamente mesmo por detalhes de importância secundária.
Não conheço ninguém que saiba escutar melhor que ele, classificar tão rapidamente os fatos e coordená-los, como se podia ver pelas perguntas breves, mas sempre muito precisas, que me dirigia, de vez em quando, enquanto eu falava e pela maneira de voltar depois a algum detalhe de nossa conversa. Ele havia tomado algumas anotações breves.
Naturalmente falei principalmente da situação na Alemanha. Disse-lhe que Rosa(1) considerava da maior importância conquistar para a luta revolucionária as massas femininas. Quando se formou o Partido Comunista, Rosa insistiu para que se publicasse um jornal dedicado ao movimento feminino. Quando Leo Jogiches examinava comigo o plano de trabalho do Partido, durante nosso último encontro, trinta e seis horas antes que o assassinassem, e me confiava algumas tarefas a realizar, “incluía também um plano de organização para as operárias. Essa questão já fora tratada na primeira conferência ilegal do Partido. Os propagandistas e os dirigentes mais preparados e experientes, que se haviam distinguido antes da guerra e durante a mesma, haviam permanecido quase todos nos partidos social-democratas das duas tendências, exercendo uma grande influência sobre as massas conscientes e ativas de operárias. Todavia, mesmo entre as mulheres, se havia formado um núcleo de camaradas enérgicas e cheias de abnegação, que participavam de todo o trabalho e da luta de nosso Partido. O Partido, por sua parte, estava desenvolvendo uma ação metódica entre as operárias. Tratava-se apenas do começo, mas de um bom começo.
«Não vai mal, de fato não vai mal» — disse Lênin. «A energia, o espírito de abnegação e o entusiasmo das mulheres comunistas, sua coragem e sua inteligência no período da ilegalidade ou de semi-legalidade, abrem uma bela perspectiva para o desenvolvimento desse trabalho. Apoderar-se das massas e organizar sua ação, eis os elementos preciosos para o desenvolvimento e o reforço da partido.
Mas, em que ponto estais, no que se refere à compreensão exata da base dessa ação? Como ensinais às camaradas ? Esse problema tem uma importância decisiva para o trabalho que se deve desenvolver entre as massas. Exerce uma grande influência, porque penetra justamente no coração da massa, porque a atrai para nós e a inflama. Não consigo recordar-me agora quem foi que disse: nada se faz de grande sem paixão. Ora, nós e os trabalhadores do mundo inteiro temos ainda, de fato, grandes coisas a realizar.
Assim, que anima vossas camaradas, as mulheres proletárias da Alemanha? Em que ponto está sua consciência de classe, de proletárias? Seus interesses, sua atividade se voltam para as reivindicações políticas do momento? Sobre que se concentra sua atenção?
A esse respeito, ouvi dizer coisas estranhas, às camaradas russas e alemãs. Devo contar-vos. Foi-me dito que uma comunista muito qualificada publica em Hamburgo um jornal para as prostitutas e tenta organizar essas mulheres para a luta revolucionária. Rosa agiu como comunista ao escrever um artigo no qual tomava a defesa das prostitutas, que são lançadas à prisão por infrações a qualquer regulamento da polícia referente à sua triste profissão. Duplamente vítimas da sociedade burguesa, as prostitutas merecem ser lamentadas. São vítimas, antes de tudo, do maldito sistema da propriedade, depois do maldito moralismo hipócrita. Somente os brutos ou os míopes podem esquecê-lo.
No entanto, não se trata de considerar as prostitutas como, por assim dizer, um setor especial da frente revolucionária e de publicar para elas um jornal especial.
Será que não existem, talvez, na Alemanha, operárias industriais para organizar, para educar com um jornal, para arrastar à luta? Eis aí um desvio mórbido. Isso me recorda muito a moda literária em que toda prostituta era apresentada como uma doce madona. É verdade que mesmo naquele caso a ‘raiz’ era sã: a compaixão social, a indignação contra a hipocrisia virtuosa da honrada burguesia. Mas essa raiz sã, sofrendo a contaminação burguesa, apodreceu. Em geral, a prostituição, mesmo no nosso país, colocará diante de nós numerosos problemas de difícil solução. Trata-se de reconduzir a prostituta ao trabalho produtivo, de indicar-lhe um lugar na economia social; o que, no estado atual de nossa economia e nas condições atuais, é uma coisa complicada e dificilmente realizável. Eis portanto um aspecto da questão feminina que, depois da conquista do poder pelo proletariado, se apresenta em toda a amplitude e exige solução. Na Rússia soviética, esse problema dará ainda pano para mangas. Mas voltemos ao vosso caso particular na Alemanha. O Partido não pode tolerar, em nenhum caso, semelhantes atos, não autorizados, por parte de seus membros. Isso confunde as coisas e desagrega nossas forças. Que fizestes para impedi-lo?»
Sem esperar minha resposta, Lênin continuou:
«A lista de vossos pecados, Clara, ainda não terminou. Ouvi dizer que, em vossas reuniões noturnas dedicadas à leitura e aos debates com as operárias, ocupai-vos sobretudo com as questões do sexo e do casamento. Esse assunto estaria no centro de vossas preocupações, de vossa instrução política e de vossa ação educativa! Não acreditei no que ouvi.
O primeiro estado no qual se realizou a ditadura proletária está cercado de contra-revolucionários de todo o mundo. A situação da própria Alemanha exige a máxima união de todas as forças revolucionárias proletárias para repelir os ataques sempre mais vigorosos da contra–revolução. E, agora, justamente agora, as comunistas ativas tratam da questão sexual, das formas de casamento no passado, no presente e no futuro, julgam que seu primeiro dever é instruir as operárias nessa ordem de idéias. Disseram-me que o folheto de uma comunista vienense sobre a questão sexual tivera amplíssima difusão. Que tolice, esse folheto! As poucas noções exatas que contém, as operárias já as conhecem desde Bebel e não sob a forma de um esquema árido e desinteressante, como no folheto, mas sob a forma de uma propaganda apaixonante, agressiva, cheia de ataques contra a sociedade burguesa. As hipóteses freudianas mencionadas no folheto em questão conferem ao mesmo um caráter que se pretende ‘científico’, mas no fundo se trata de uma confusão superficial. A própria teoria de Freud não é hoje senão um capricho da meda. Não tenho confiança alguma nessas teorias expostas em artigos, apreciações, folhetos etc., em resumo, nessa literatura específica que floresce com exuberância no terriço da sociedade burguesa. Desconfio daqueles que estão absorvidos constante e obstinadamente com as questões do sexo, como o faquir hindu com a contemplação do próprio umbigo.
Parece-me que essa abundância de teorias sexuais, que não são em grande parte senão hipóteses arbitrárias, provém de necessidades inteiramente pessoais, isto é, da necessidade de justificar aos olhos da moral burguesa a própria vida anormal ou os próprios instintos sexuais excessivos e de fazê-la tolerá-los.
Esse respeito velado pela moral burguesa repugna-me tanto quanto essa paixão pelas questões sexuais. Tem um belo revestimento de formas subversivas e revolucionárias, mas essa ocupação não passa, no fim das contas, de puramente burguesa. A ela se dedicam de preferência os intelectuais e as outras camadas da sociedade que lhes são próximas. Para tal tipo de ocupação não há lugar no Partido, entre o proletariado que luta e tem consciência de classe.»
Fiz notar que as questões sexuais e matrimoniais, no regime de propriedade privada, suscitavam múltiplos problemas, que eram causa de contradições e de sofrimentos para as mulheres de todas as classes e de todas as camadas sociais. A guerra e suas conseqüências, disse eu, agravaram ao extremo para a mulher as contradições e os sofrimentos que existiam antes, nas relações entre os sexos. Os problemas, ocultos até então, foram agora revelados aos olhos das mulheres e isto na atmosfera da revolução recém-começada. O mundo, dos velhos sentimentos, das velhas idéias desmorona por toda parte. Os vínculos sociais, de uma só vez, se enfraquecem e se rompem. Vêem-se surgir os germes de novas premissas ideológicas, que ainda não tomaram forma, para as relações entre os homens. O interesse que essas questões suscitam exprime a necessidade de uma nova orientação. Surge ainda a reação que se produz contra as deformações e as mentiras da sociedade burguesa. A mudança das formas matrimoniais e familiares no curso da História, em sua dependência da economia, constituem um bom meio para varrer do espírito das operárias a crença na perpetuidade da sociedade burguesa. Fazer a crítica histórica dessa sociedade significa dissecar sem piedade a ordem burguesa, desnudar sua essência e suas conseqüências e estigmatizar além disso a falsa moral sexual. Todos os caminhos levam a Roma. Toda análise verdadeiramente marxista de uma parte importante da superestrutura ideológica da sociedade ou de um fenômeno social importante deve conduzir à análise da ordem burguesa e de sua base, a propriedade privada; cada uma dessas análises deve conduzir a esta conclusão: «É preciso destruir Cartago.»
Lênin sorria e fazia com a cabeça sinais de aprovação
«Muito bem. Tendes o ar de um advogado que defende seus companheiros e seu partido. Sem dúvida, o que dissestes é justo. Mas poderia servir apenas para desculpar o erro cometido na Alemanha, não para justificá-lo. Um erro cometido continua a ser um erro. Podeis garantir-me seriamente que as questões sexuais e matrimoniais são discutidas em vossas reuniões sempre do ponto de vista do materialismo histórico vital, bem compreendido? Isso exige conhecimentos vastos, aprofundados, conhecimento marxista, claro e preciso, de uma enorme quantidade de materiais. Dispondes, neste momento, das forças necessárias? Em caso afirmativo, não teria sucedido que um folheto, como aquele do qual falamos, fosse usado como material de estudo em vossas reuniões noturnas, dedicadas à leitura e ao. debate. Aquele folheto é recomendado e difundido, ao invés de ser criticado . A que conduz, na final das contas, esse exame insuficiente e não marxista da questão? Ao seguinte: a que os problemas sexuais e matrimoniais não sejam vistos como parte da principal questão social e que, ao contrário, a grande questão social, apareça como parte, como apêndice do problema sexual. A questão fundamental é relegada a segundo plano, como secundária. Isso não só prejudica a clareza da questão, mas obscurece o pensamento em geral, a consciência de classe das operárias.
Outra observação, que não é inútil. O sábio Salomão dizia: cada coisa a seu tempo. Peço-vos responder: é precisamente este o momento de manter ocupadas as operárias, meses inteiros, para falar-lhes do modo como se ama ou se é amado, do modo como se faz a corte ou se aceita a corte entre os vários povos, tanto no passado, como no presente e no futuro? E é isso que se denomina orgulhosamente de materialismo histórica! Neste momento, todos os pensamentos das operárias, das mulheres trabalhadoras devem estar voltados para a revolução proletária. Ela é que criará inclusive base para as novas condições de casamento e novas relações entre os sexos. Agora, realmente, devem passar para primeiro plano outras problemas, que não aqueles que se referem às formas de casamento entre os maorís da Austrália ou os casamentos realizados entre consanguíneos na antiguidade.
A História põe hoje na ordem do dia do proletariado alemão a questão dos sovietes, do tratado de Versalhes e da sua influência sobre a vida das massas femininas, o problema do desemprego, da rebaixa dos salários, dos impostos e muitas outras coisas. Em suma, penso que tal modo de educação política e social das operárias não é absolutamente o que deve ser feito. Como vos pudestes calar? Devíeis ter usado vossa autoridade!»
Ao meu amigo, que me criticava, expliquei que não havia perdido ocasião para criticar, para replicar às camaradas dirigentes, para fazer ouvir minha voz em diferentes lugares, mas ele devia saber que ninguém é profeta em sua terra, nem em sua família. Com a minha crítica tornava-me suspeita de continuar ainda fiel às sobrevivências da ideologia social-democrata e do espírito pequeno-burguês de velho estilo. No entanto, minha crítica acabou por dar seus frutos. Os problemas do sexo e do casamento não estavam mais no centro das nossas discussões em nossos círculos e em nossas reuniões noturnas destinadas aos debates.
Lênin continuou a desenvolver seu pensamento.
«Eu sei, eu sei» — disse ele. «Também me acusam de filisteísmo. Mas isso não me perturba. Os pássaros que mal saíram do ovo das concepções burguesas crêem-se sempre terrivelmente inteligentes. É preciso ter calma. O próprio movimento juvenil está contaminado pela tendência moderna e pela predileção desmedida pelos problemas sexuais.»
Lênin sublinhou com ironia a palavra «moderna», com ar de desaprovação.
«Disseram-me que os problemas sexuais são mesmo um assunto predileto das vossas organizações juvenis. Nunca faltam relatores sobre esse assunto. Isto é particularmente escandaloso, particularmente deletério para o movimento juvenil. Tais assuntos podem contribuir facilmente para excitar, para estimular a vida sexual de certos indivíduos, para destruir a saúde e a força da juventude. Deveis lutar também contra essa tendência. O movimenta feminino e o juvenil têm muitos pontos de contacto. Nossas camaradas comunistas devem fazer, portanto, junto com os jovens, um trabalho sistemático. Isso trará como resultado elevá-las, transportá-las do mundo da maternidade individual para o da maternidade social. É preciso contribuir para todo despertar da vida social e da atividade da mulher, para ajudá-la a elevar-se acima da mentalidade estreita pequeno-burguesa, individualista, da sua vida doméstica e familiar.
Mesmo entre nós, uma grande parte da juventude trabalha diariamente para rever a concepção burguesa da ‘moral’ nos problemas sexuais. E devo dizê-lo, é a elite de nossa juventude, aquela que realmente promete muito. Como observastes, nas condições criadas pela guerra e pela revolução, os antigos valores ideológicos são abalados, perdem sua força. Os novos valores só se cristalizam lentamente, através da luta.
As concepções sobre as relações entre o homem e a mulher são transtornadas, assim como os sentimentos e as idéias. Delimitam-se de novo os direitos do indivíduo e os da coletividade e, por isso, os deveres do indivíduo. É um processo lento e muitas vezes doloroso, de perecimento e de nascimento. Isso é igualmente verdade no terreno das relações sexuais, do casamento e da família. A decadência, a putrefação, a lama do casamento burguês, com as suas dificuldades de dissolução, com a liberdade para o marido e a escravidão para a mulher, a mentira infame da moral sexual e das relações sexuais enchem os melhores homens de um desgosto profundo.
O jugo que as leis do Estado burguês fazem pesar sobre o casamento e a família agrava ainda mais o mal e torna os conflitos mais agudos. É o jugo da ‘sagrada propriedade’ que sanciona a venalidade, a baixeza, a obscenidade. E a hipocrisia convencional da ‘honrada’ sociedade burguesa faz o resto.
As pessoas começarão a revoltar-se contra essas deformações da natureza. E na época em que vacilam Estadas poderosos, em que desaparecem antigas formas de dominação, em que todo um mundo social perece, os sentimentos do indivíduo isolado se modificam rapidamente.
Difunde-se uma sede ardente de prazeres fáceis. As formas do casamento e das relações entre os sexos, no sentido burguês, já não satisfazem. Nesse terreno, aproxima-se uma revolução que corresponde à revolução proletária. Compreende-se que todo esse novelo extraordinariamente intricado de problemas preocupa profundamente tanto às mulheres como os jovens. Uns e outros sofrem particularmente da atual confusão nas relações sexuais. A juventude protesta contra esse estado de coisas com o ardor barulhento própria da idade. É compreensível. Nada seria mais falsa que pregar à juventude o ascetismo monástico e a santidade da imundície burguesa. Mas não está bem, penso eu, que os problemas sexuais colocados em primeiro plano por razões naturais, se tornem nestes anos a preocupação principal dos jovens. As conseqüências, algumas vezes, poderiam ser fatais.
Em sua nova atitude diante das questões concernentes à vida sexual, a juventude se apega, naturalmente, aos princípios, à teoria. Muitos qualificam sua posição de ‘revolucionária’ e ‘comunista’. Crêem sinceramente que assim seja. Não nos ouvem, a nós, velhos. Embora eu não seja absolutamente um asceta melancólico, essa nova vida sexual da juventude e freqüentemente, dos adultos, me parece muitas vezes totalmente burguesa, um dos múltiplos aspectos de um lupanar burguês. Tudo isso nada tem a ver com a ‘liberdade do amor’, tal como nós comunistas a concebemos. Conheceis, sem dúvida, a famosa teoria segundo a qual, na sociedade comunista, satisfazer o instinto sexual e o impulso amoroso é tão simples e tão insignificante como beber um copo de água. Essa teoria do ‘copo de água’ deixou a nossa juventude louca, inteiramente louca.
Ela foi fatal a muitos rapazes e moças. Seus defensores afirmam que é uma teoria marxista. Belo marxismo esse para o qual todos os fenômenos e todas as modificações que se dão na superestrutura ideológica da sociedade decorrem de pronta, em linha direta e sem quaisquer reservas, unicamente da base econômica! A coisa não é tão simples como parece. Um certo Frederico Engels, já há muito tempo, salientou em que consiste verdadeiramente o materialismo histórico.
Considero a famosa teoria do ‘copo de água’ como não marxista e, além disso, como anti-social. Na vida sexual se manifesta não só aquilo que deriva da natureza, mas também o que nos dá a cultura, quer se trate de coisas elevadas ou inferiores.
Engels, em sua Origem da Família, mostra toda a importância do desenvolvimento e da aprimoramento do amor sexual. As relações entre os sexos não são simplesmente a expressão da ação da economia social e da necessidade física, dissociadas no pensamento por uma análise psicológica.
A tendência a atribuir diretamente à base econômica da sociedade a modificação dessas relações, separando-as de sua conexão com toda a ideologia, já não seria marxismo, mas racionalismo. Sem dúvida, a sede deve ser saciada, Mas será que um homem normal, em condições igualmente normais, se deitará no chão, na rua, para beber água suja de um lameiro? Ou beberá. em um copo marcado nas beiradas por dezenas, de outros lábios? Todavia o mais importante é o aspecto social. De fato, beber água é coisa pessoal. Mas, no amor, estão interessadas duas pessoas e pode vir uma terceira, um novo ser. É disso que surge o interesse social, o dever para com a coletividade. Como comunista, não sinto simpatia alguma pela teoria do ‘copo de água’, embora traga a etiqueta de ‘amor livre’. Além de não ser comunista, essa teoria nem é nova sequer. Recordai-vos, certamente, de que foi ‘pregada’ na literatura em meados do século passado, como ’emancipação do coração’, que a prática burguesa transformou depois em ’emancipação da carne’. Então, se pregava com mais talento que hoje. Quanto à prática, não posso julgá-la.
Não desejo, absolutamente, com minha crítica, pregar o ascetismo. Longe disso. O comunismo deve trazer não o ascetismo, mas a alegria de viver e o bem-estar físico, devidos também, à plenitude do amor. Penso que o excesso que.se observa hoje, na vida sexual não produz nem a alegria de viver nem o bem-estar físico, mas, pelo contrário, os diminuem. Ora, em épocas revolucionárias isto, é mau, muito mau.
Particularmente a juventude necessita da alegria de viver e do bem-estar físico. Esporte, ginástica, natação, excursões, todo tipo de exercícios físicos, variados interesses intelectuais, estudos, análises, pesquisas: aprender, estudar, pesquisar, quanto mais possível, em comum. Tudo isso dará à juventude muito mais que a teoria e as discussões intermináveis sobre a questão sexual e sobre a assim chamada maneira de ‘gozar a vida’.
Mente sã em corpo são. Nem monge, nem D. Juan e nem mesmo, como meio-termo, filisteu alemão. Conheceis bem vosso jovem camarada Huz. É um jovem perfeito, bem dotado, mas receio que não dê nada de bom. Lança-se de uma aventura amorosa a outra. Isto é um mal para a luta política e para a revolução. Não confiarei, quanto à segurança e à firmeza na luta, nas mulheres cujos romances pessoais se misturam cem a política, nem nos homens que correm atrás de todas as saias e os que se deixam enfeitiçar pela primeira moça que surge. Não, isso não é compatível com a revolução.»
Lênin se ergueu bruscamente, bateu na mesa e deu alguns passos pela sala.
«A revolução exige concentração, tensão das forças, tanto das massas, como dos indivíduos. Não pode tolerar estados orgíacos, do tipo peculiar às heroínas e aos heróis decadentes de D’Annunzio. Os excessos na vida sexual são sinal de decadência burguesa. O proletariado é uma classe em ascensão. Não necessita inebriar-se, atordoar-se, excitar-se. Não precisa embriagar-se nem com excessos sexuais, nem com álcool. Não deve olvidar, e não olvidará a baixeza, a lama e a barbárie do capitalismo. Haure seus maiores impulsos de luta na situação de sua classe e no ideal comunista. O que lhe é necessário é clareza e sempre clareza. Assim, repito, nada de fraqueza, nada de desperdício ou destruição de forças. Dominar-se, disciplinar os próprios atos não é escravidão, e é igualmente necessário no amor.
Mas, desculpai-me, Clara, afastei-me muito do ponto de partida de nossa conversação. Por que não me chamaste à ordem? Deixei–me levar pelo ardor. O futuro de nessa juventude me preocupa muito. A juventude é uma parte da revolução. Ora, se as influências nocivas da sociedade burguesa começam a atingir até mesmo o mundo da revolução, como as raízes amplamente ramificadas de algumas ervas, é melhor reagir em tempo. Tanto mais quanto essas questões também dizem respeito ao problema feminino.»
Lênin falara com muita vivacidade e convicção. Eu sentia que cada uma de suas palavras vinha do fundo do coração; a expressão de seu rosto comprovava isso. Um movimento enérgico da mão sublinhava às vezes seu pensamento. O que me assombrava era vê-lo, embora enfronhado nos problemas políticos mais urgentes e graves, dar tanta atenção às questões secundárias e analisá-las com tanto cuidado, não se limitando apenas ao que se referia à Rússia soviética, mas ocupando-se também dos países capitalistas. Como perfeito marxista, Lênin concebia cada fenômeno isolado, sob qualquer forma e em qualquer lugar que surgisse, relacionado com o geral, com o todo, apreciando o valor do primeiro na dependência do segundo. Sua vontade, sua aspiração vital, sua energia, irresistível como uma força da natureza, estavam inteiramente voltadas para acelerar a revolução, na qual vira a causa das massas. Lênin avaliava cada fenômeno do ponto de vista da influência que pudesse exercer sobre as forças de combate nacionais e internacionais da revolução, porque via sempre diante de si, — levando em conta as particularidades históricas nos diferentes países e as diversas etapas de seu desenvolvimento — uma única e indivisível revolução proletária mundial.
«Como lamento, camarada Lênin, — exclamei eu — que centenas e milhares de pessoas não tenham ouvido vossas palavras. A mim, sabeis bem, não precisais convencer. Mas seria extremamente importante que vossa opinião fosse conhecida por nossos amigos e por nossos inimigos.»
Lênin sorriu.
«Um dia talvez pronuncie um discursa ou escreva sobre este assunto. Não agora, mais tarde. Hoje devemos concentrar todo o nosso tempo e todas as nossas forças em outras questões. Agora, temos outros problemas mais graves e mais árduas. A luta pela manutenção e consolidação do poder soviético ainda está muito longe de seu termo. Ainda precisamos tirar as melhores vantagens possíveis da guerra com a Polônia. Wrangel continua no sul. Tenho a firme convicção, é verdade, de que a venceremos; o que dará que pensar aos imperialistas franceses e ingleses e a seus pequenos vassalos. Mas a parte mais difícil de nosso trabalho, a reconstrução, ainda está por realizar.
Através desse processo ganharão igualmente importância a questão das relações entre os sexos, e as questões de casamento e família. Enquanto isso, deveis lutar sempre e em toda parte. Não deveis permitir que tais questões sejam tratadas de maneira não marxista, que criem um terreno favorável a desvios e deformações prejudiciais. E agora passemos ao vosso trabalho.»
Lênin olhou o relógio.
«O tempo de que dispunha — disse ele — já se reduziu à metade. Falei demais. Apresentai por escrito vossas propostas para o trabalho comunista entre as mulheres. Conheço vossos princípios e vossa experiência: nossa conversa por isso será breve. Ao trabalho, pois! Quais são vossos projetos?»
Eu os expus. Enquanto falava, Lênin fez muitas vezes sinais de aprovação. Quando terminei, olhei-o interrogativamente.
«De acordo — disse Lênin. — Discuti com Zinoviev e seria bom se pudésseis discutir também numa reunião de dirigentes comunistas. É pena, realmente pena, que a camarada Inês não esteja aqui; Está doente, partiu para o Cáucaso. Depois da discussão, apresentai as propostas por escrito. Uma comissão as examinará e depois o Executivo decidirá. Desejo esclarecer apenas alguns pontas nos quais compartilho de vossa opinião. Parecem-me importantes para o nosso atual trabalho de agitação e propaganda, se esse trabalho pretender de fato conduzir à ação e a uma luta coroada de êxito. As teses devem deixar bastante claro que somente através do comunismo se realizará a verdadeira libertação da mulher. É preciso salientar os vínculos indissolúveis que existem entre a posição social e a posição humana da mulher: isto servirá para traçar uma linha clara e indelével de distinção entre a nossa política e o feminismo. Esse ponto será mesmo a base para tratar o problema da mulher como parte da questão social, como problema que toca aos trabalhadores, para uni-lo sòlidamente à luta de classe do, proletariado. O movimento comunista feminino deve ser um movimento de massas, uma parte do movimento geral de massas, não só do proletariado, mas de todos os explorados e de todos os oprimidos, de todas as vítimas do capitalismo e de qualquer outra forma de escravidão. Nisso está sua significação no quadro da luta de classes do proletariado e de sua criação histórica: a sociedade comunista.
Temos o direito de estar orgulhosos de possuir no Partido e na Internacional a fina flor das mulheres revolucionárias. Mas isso não basta. Devemos atrair para o nosso campo milhões de mulheres trabalhadoras das cidades e do campo. Devemos atrai-las para o nosso lado a fim de que contribuam em nossa luta e particularmente na transformação comunista da sociedade. Sem as mulheres não pode existir um verdadeiro movimento de massas. Nossas concepções ideológicas comportam problemas específicos de organização. Nenhuma organização especial para as mulheres. Uma mulher comunista é membro do Partido tanto como um homem comunista. Não deve existir quanto a isso nenhuma imposição especial. Todavia, não devemos esquecer que o Partido deve possuir pessoas, grupos de trabalho, comissões, comitês, escritórios ou o que mais for preciso, com a tarefa específica de despertar as massas femininas, de manter contacto com elas e de influenciá-las. Isso. exige, é evidente, um trabalho sistemático.
Devemos educar as mulheres que ganharmos para nessa causa e torná-las capazes de participar da luta de classe do proletariado, sob a direção do Partido Comunista. Não me refiro apenas às mulheres proletárias, que trabalham na fábrica ou em casa. Também as camponesas pobres, as pequeno-burguesas, são vítimas do capitalismo e o são ainda mais em caso de guerra. A mentalidade antipolítica, anti-social e atrasada dessas mulheres, o isolamento a que as obriga sua atividade, todo o seu modo de vida; eis fatos que seria absurdo, completamente absurdo, subestimar. Necessitamos de organismos apropriados para realizar o trabalho entre as mulheres. Isso não é feminismo: é o caminho prático, revolucionário.»
Disse a Lênin que suas palavras me infundiam coragem: muitos camaradas e além disso bons camaradas, se opunham decididamente à idéia de que o Partido constituísse organizações especiais para o trabalho entre as mulheres. Rejeitavam-na como feminismo e como retorno às tradições social-democratas e afirmando que os Partidos Comunistas, ao adotar como princípio a igualdade de direitos entre homens e mulheres, deviam trabalhar sem fazer diferenças entre as massas trabalhadoras. As mulheres devem ser admitidas rias nossas organizações como os homens e sem distinção alguma. Qualquer discriminação tanto na agitação como na organização, decorrente das circunstâncias descritas por Lênin, era tachada deoportunismo, por parte daqueles que a ela se opunham, como uma capitulação e uma traição.
«Isso não é uma novidade nem uma prova — disse Lênin — e não vos deveis deixar desviar. Por que nunca tivemos no Partido um número igual de homens e mulheres, nem mesmo na República soviética? Por que é tão diminuto o número de mulheres trabalhadoras filiadas aos sindicatos? Tais fatos devem levar-nos a refletir. Não reconhecer a necessidade de organização diferenciada para o nosso trabalho entre as massas femininas significa ter uma concepção, idêntica à dos nossos ma;s radicais e altamente morais amigos do Partido Comunista(2) Operário, segundo os quais devia existir uma única forma de organização: os sindicatos operários. Conheço-os. Muitos revolucionários atacados de confusionismo se apegam aos princípios quando lhes faltam idéias’, ou seja, quando sua inteligência está fechada para os fatos puros e simples, para os fatos a considerar. Mas como podem os guardiães dos ‘princípios puros’ adaptar suas idéias às exigências da política revolucionária que o momento histórico comporta? Todo aquele palavrório se desfaz, diante da necessidade inexorável. Somente se milhões de mulheres estiverem conosco poderemos exercer a ditadura do proletariado, poderemos construir segunda diretrizes comunistas. Devemos encontrar a maneira de uni-las, devemos estudar para encontrar essa maneira. Por isso é justo formular reivindicações em favor das mulheres: já não se trata de um programa mínimo, de um programa de reformas, no sentido dos social-democratas da II Internacional. Não é um reconhecimento da eternidade ou pelo menos da longa duração do poder da burguesia e da sua forma estatal. Não é uma tentativa de satisfazer as mulheres com reformas e desviá-las do caminho da luta revolucionária. Não se trata disso nem de outros truques reformistas. Nossas exigências se apóiam nas conclusões práticas que tiramos das necessidades prementes, da vergonhosa humilhação da mulher e dos privilégios do homem.
Odiamos, sim; odiamos tudo aquilo que tortura e oprime a mulher trabalhadora, a dona de casa, a camponesa, a mulher do pequeno comerciante e, em muitos casos, a mulher das classes possuidoras. Exigimos da sociedade burguesa uma legislação social em favor da mulher, porque compreendemos a situação destas e seus interesses, aos quais dedicaremos nossa atenção durante a ditadura do proletariado. Naturalmente, não o exigimos como fazem os reformistas, utilizando palavras brandas para convencer as mulheres a permanecer inativas, contendo-as. Não, naturalmente não, mas como convém a um revolucionário, chamando-as para trabalhar lado a lado a fim de transformar a velha economia e a velha ideologia.»
Disse a Lênin que compartilhava de suas idéias, as quais teriam certamente encontrado resistência e seriam julgadas oportunismo perigoso por parte de elementos inseguros e temerosos. Nem se poderia negar, aliás, que nossas reivindicações imediatas em favor das mulheres teriam podido ser mal interpretadas e mal expressas.
«Tolice!» — respondeu Lênin quase colérico. «Esse perigo é inato a tudo que dizemos e fazemos. Se esse receio devesse dissuadir-nos de fazer o que é justo e necessário, então seria melhor nos tornarmos hipnotizadores hindus. Não te movas, não te movas! Contemplemos nossos princípios do alto de uma coluna! Naturalmente, preocupamo-nos não só com o conteúdo de nossas reivindicações, mas também com o modo de as formular. Naturalmente, não formularemos nessas reivindicações para as mulheres como se desfiássemos mecanicamente as contas de nosso rosário. Não, segundo as exigências do momento, lutaremos ora por este objetivo, ora por aquele. E, naturalmente, tendo sempre presentes os interesses gerais do proletariado.
Cada uma dessas lutas se erguerá contra as respeitáveis relações burguesas e os seus não menos respeitáveis admiradores reformistas, que obrigaremos a lutar ao nosso lado, sob a nossa bandeira — o que eles não desejam — ou denunciaremos o que são. Além disso, finalmente, a luta desvenda as diferenças entre nós e os outros partidos, torna claro nosso comunismo. Assegura-nos a confiança das massas femininas que se sentem exploradas, submetidas, oprimidas pelo homem, pelo patrão, por toda a sociedade burguesa. Traídas e abandonadas por todos, as trabalhadoras reconhecerão que deve lutar ao nosso lado. É preciso que vos lembre novamente que a luta por nossas reivindicações a favor das mulheres deve estar ligada à finalidade de conquistar o poder e de realizar a ditadura do proletariado? Esse é hoje nosso objetivo fundamental.
Mas não basta simplesmente proclamá-lo continuamente, como se soássemos as trombetas de Jerico, para que as mulheres se sintam atraídas irresistivelmente para a nossa luta pelo poder estatal. Não; não! As mulheres devem adquirir consciência da ligação política que existe entre as nessas reivindicações e seus sofrimentos, suas necessidades, suas aspirações. Devem compreender o que significa para elas a ditadura do proletariado: completa igualdade com o homem diante da lei a na prática, na família, no Estado, na sociedade; o fim do poder da burguesia.»
«A Rússia soviética é uma prova disso,» — interrompi eu.
«Esse grande exemplo servirá para ensinar-lhes — continuou Lenin. — A Rússia soviética lança nova luz sobre nossas reivindicações em favor das mulheres. Sob a ditadura do proletariado, essas reivindicações não são objeto de luta entre o proletariado e a burguesia. Pertencem à estrutura da sociedade comunista, indicam às mulheres dos outros países a importância decisiva da tomada da poder, por parte do proletariado. É preciso que a diferença seja decididamente salientada, para que as mulheres participem da luta de classe do proletariado.
Ganhá-las para nossa causa, por meio de uma compreensão clara e de uma sólida organização básica é essencial para os partidos comunistas e para o triunfo deles. Não nos deixemos enganar, porém. Nossas seções nacionais ainda não têm uma visão clara do problema. Estão inertes, quando lhes cabe a tarefa de criar um movimento de massas sob a direção dos comunistas. Não compreendem que o desenvolvimento e a organização de tal movimento de massas é parte importante de toda a atividade do Partido; que é, na realidade, uma boa metade de todo o trabalho do Partido. O reconhecimento ocasional da necessidade e do valor de um movimento comunista forte e bem dirigido é um reconhecimento em palavras, platônico, e não um empenho e uma preocupação constante do Partido.
O trabalho de agitação e de propaganda entre as mulheres, a difusão do espírito revolucionário entre elas, são considerados problemas ocasionais, tarefas que cabem unicamente às companheiras. Somente às companheiras se reprova e adverte se o trabalho nessa frente não caminha mais rápida e energicamente. Isso é mal, muito mal. É separatismo puro e simples, é feminismo à rebours, como dizem os franceses, feminismo às avessas! Que é que está na base dessa atitude errada de nossas seções nacionais? Em última análise, trata-se de uma subestimação da mulher e de seu trabalho. Justamente isso! Infelizmente, ainda pode dizer-se de muitos companheiros: ‘Raspa um comunista e encontrarás um filisteu!’ Evidentemente, deve-se raspar no ponto sensível, em sua concepção sobre a mulher. Pode haver prova mais condenável do que a calma aceitação dos homens diante do fato de as mulheres se consumirem no trabalho humilhante, monótono, da casa, gastando e desperdiçando energia e tempo e adquirindo uma mentalidade mesquinha e estreita, perdendo toda sensibilidade, toda vontade? Naturalmente, não me refiro às mulheres da burguesia, que descarregam sobre as empregadas a responsabilidade de todo o trabalho doméstico, inclusive a amamentação dos filhos. Refiro-me à esmagadora maioria das mulheres, às mulheres dos trabalhadores e àquelas que passam o dia numa oficina. Pouquíssimos homens — mesmo entre os proletários — se apercebem da fadiga e da dor que poupariam à mulher se dessem uma mão ‘ao trabalho da mulher’. Mas não, isto vai de encontro aos ‘direitos e à dignidade do homem’: este quer paz e comodidade. A vida doméstica de uma mulher constitui um sacrifício diário, feito por mil ninharias. A velha supremacia do homem sobrevive em segredo. A alegria do homem e sua tenacidade na luta diminuem, diante do atraso da mulher, diante de sua incompreensão dos ideais revolucionários: atraso e incompreensão que, como cupim, secretamente, lentamente mas sem salvação, roem e corroem. Conheço a vida dos trabalhadores não apenas através dos livros. Nosso trabalho de comunistas entre as mulheres, nosso trabalho político, exige uma boa dose de trabalho educativo entre os homens. Devemos varrer por completo a velha idéia do ‘patrão’, tanto no Partido, como entre as massas. É uma tarefa política nossa não menos importante que a tarefa urgente e necessária de criar um núcleo dirigente de homens e mulheres, bem preparados teórica e praticamente para desenvolver entre as mulheres uma atividade de Partido.»
Diante de minha pergunta sobre a situação na Rússia soviética, no que diz respeito a esse problema, Lênin respondeu:
«O governo da ditadura do proletariado, juntamente com o Partido Comunista e os sindicatos, naturalmente nada deixou de tentar, no esforço para eliminar o atraso dos homens e das mulheres, para destruir a velha mentalidade não comunista. A lei estabelece, naturalmente, a completa igualdade de direitos entre homens e mulheres. E o desejo sincero de traduzi-la na pratica existe em toda parte. Introduzimos a mulher na economia social, no poder legislativo e no governo. Abrimos-lhe as portas de nossas instituições educacionais para que possa aumentar sua capacidade profissional e social. Criamos cozinhas comunais e restaurantes, lavanderias, laboratórios, creches e jardins de infância, casas para crianças, institutos educativos de toda espécie.
Em resumo, estamos realizando seriamente nosso programa de transferir para a sociedade as funções educativas e econômicas do núcleo familiar. Isso significa para a mulher a libertação da velha fadiga doméstica aniquilante e do estado de submissão ao homem. Isso lhe permitirá desenvolver plenamente seu talento e suas inclinações. As crianças são criadas melhor que em suas casas, tara as trabalhadoras, temos as leis protetoras mais avançadas do mundo que os dirigentes dás organizações sindicais põem em prática. Estamos construindo maternidades, casas para as mulheres e as crianças, clínicas femininas; organizamos cursos de puericultura e exposições para ensinar às mulheres a cuidar de si próprias e dos seus filhos etc.; fazemos sérios esforços para ajudar às mulheres desocupadas e sem amparo.
Compreendemos perfeitamente que tudo isso é insuficiente, diante das necessidades das trabalhadoras, diante das condições existentes na Rússia capitalista e tzarista. Mas já é muito em comparação com os países onde ainda impera o capitalismo. É um bom início, na direção justa, e, tende certeza, nessa direção continuaremos a caminhar com toda nossa energia. Cada dia de existência do Estado soviético demonstra de fato que não podemos avançar sem as mulheres. Pensai o que significa isso, num país em que os camponeses constituem cerca de 80% da população! Pequena economia camponesa significa pequenos núcleos familiares separados, com as mulheres acorrentadas a esse sistema. Para vós, desse ponto de vista, a tarefa será mais fácil e melhor de realizar, com a condição de que vossas mulheres proletárias saibam aproveitar o memento histórico objetivo para a tomada do poder, para a revolução. Nós não desesperamos. Nessa força cresce com as dificuldades. A força das coisas impelirá a buscar novas medidas para libertar as massas femininas. A cooperação no regime soviético, fará muito. Cooperação no sentido comunista e não burguês, naturalmente, cooperação não como a pregam os reformistas, cujo entusiasmo, ao contrário de revolucionário, não é senão um fogo de palha. A iniciativa individual deve seguir passo a passo com a cooperação, a qual deve crescer e fundir-se com a atividade das comunas. Sob a ditadura do proletariado, a libertação da mulher se realizará através do desenvolvimento do comunismo, também no campo. Tenho grandes esperanças na eletrificação da indústria e da agricultura. Um trabalho imenso! E as dificuldades para pô-lo em prática são grandes, enormes! Para realizá-lo é preciso despertar a energia das massas. E a energia de milhões de mulheres nos ajudará.»
Nos últimos dez minutos haviam batido duas vezes à porta, mas Lênin continuara a falar. Nesse ponto, abriu a porta, dizendo: «Já vou.» Depois, voltando-se para mim, acrescentou sorrindo:
«Sabeis, Clara, eu me justificarei explicando que estava com uma mulher. Desculpar-me-ei pelo atraso aludindo à conhecida volubilidade feminina. De fato, desta vez foi o homem e não a mulher quem falou muito. Posso, aliás, testemunhar que sabeis escutar com seriedade. Talvez isso tenha estimulado minha eloquência.» Brincando assim, ajudou-me a vestir o capote. «Deveis abrigar-vos melhor» — disse seriamente. «Moscou não é Estocolmo. Deveis ter cuidado convosco. Não apanheis frio. Auf wiedersehen!». Apertou-me cordialmente a mão.
Duas semanas depois tive com Lênin outra conversa sobre o movimento feminino. Lênin viera procurar-me. Como de costume, sua visita inesperada, foi uma pausa improvisada, em meio ao trabalho extenuante que iria depois abater o chefe da revolução vitoriosa. Ele parecia muito cansado e preocupado. A derrota de Wrangel ainda não estava assegurada e o problema do abastecimento das grandes cidades se erguia diante do governo soviético como uma esfinge inexorável. Lênin pediu notícias sobre as diretivas ou teses. Disse-lhe que todas as companheiras dirigentes que se encontravam em Moscou se haviam reunido e exposto suas opiniões. Suas propostas eram agora examinadas por uma comissão reduzida. Lênin recomendou-me não esquecer que o III Congresso mundial deveria tratar da questão com a atenção necessária.
«Esse simples fato destruirá muitos preconceitos das companheiras. Quanto ao resto, as camaradas devem lançar-se ao trabalho e trabalhar energicamente, não murmurando, por entre os lábios, como velhas tias, mas falando em voz alta, claramente, como combatentes» — exclamou Lênin com ardor. «Um congresso não é uma sala de visitas, onde as mulheres brilham com seus encantos, como dizem os romances. É a arena onde começamos a agir como revolucionários. Demonstrai que sabeis lutar. Antes de tudo, contra o inimigo, naturalmente, mas, se é preciso, mesmo no seio do Partido. Teremos o que fazer, com milhões de mulheres. Nosso Partido russo será favorável a todas as propostas e medidas que contribuam para atraídas para nossa movimento. Se não estão conosco, a contra-revolução poderá conduzi-las contra nós. Devemos sempre pensar nisto. Devemos conquistar as massas femininas, quaisquer que sejam as dificuldades.»
Aqui, no meio da revolução, no meio daquele burburinho de atividade, com aquele rápido e forte ritmo de vida, havia eu elaborado um plano de ação internacional entre as massas de trabalhadoras.
«Minha idéia surgiu de vossos grandiosos congressos e reuniões de mulheres sem-partido. Transportaremos essa idéia do plano nacional para o internacional. É inegável que a guerra mundial e suas conseqüências golpearam profundamente todas as mulheres, das várias classes e camadas sociais. Elas têm vivido um período de fermentação e de atividade. O problema que as envolve hoje é o de conservar a vida. Como viver? A maior parte delas não havia pensado jamais que se pudesse chegar a tal ponto e somente poucas compreenderam o porquê disto. A sociedade burguesa não pode dar uma resposta satisfatória a esse problema. Somente o comunismo pode fazê-lo. Devemos levar as mulheres dos países capitalistas a compreender esse fato e precisamente por isso organizaremos um congresso internacional de mulheres, sem distinção de partido.»
Lênin não respondeu logo. Com o olhar fixo, profundamente absorto, os lábios cerrados, o lábio inferior ligeiramente estendido, pesava minha sugestão. Depois disse:
«Sim, devemos fazê-lo. É um bom plano. Mas os bons planos, mesmo os melhores, de nada valem se não são bem realizados. Pensastes como realizá-lo? Qual o vosso ponto de vista a respeito disso?»
Expus-lhe os detalhes. Em primeiro lugar, devia-se organizar um comitê de companheiras dos vários países que manteria contacto estreito com as seções nacionais e preparar, elaborar, em seguida, o congresso. Restava decidir se, por razões de oportunidade, o comitê deveria começar a trabalhar logo oficialmente e publicamente. De qualquer maneira, seus membros deviam, como primeira coisa, pôr-se em contacto com as dirigentes dos movimentos sindicais e políticos, das organizações femininas burguesas de todo tipo (inclusive médicas, jornalistas, professoras etc.) e formar em cada país um comitê nacional organizador apartidário.
O comitê internacional, composto de membros dos comitês nacionais, deveria estabelecer a data, o lugar e o programa de trabalho do congresso.
O congresso, na minha opinião, deverá tratar, em primeiro lugar, do direito das mulheres ao trabalho profissional. Nesse ponto,, se poderão inscrever as questões do desemprego, do salário igual para trabalho igual, da jornada legal de oito horas, da legislação de proteção à mulher, dos sindicatos e das organizações profissionais de previdência social para a mãe e o filho, das instituições sociais para ajudar as donas de casas e as mães etc. A ordem do dia deveria portanto incluir a seguinte tema: a situação da mulher no direito matrimonial e familiar e no direito público político. Uma vez aprovadas essas propostas, sugeria que os comitês nacionais realizassem entre as mulheres ativas e trabalhadoras de todas as camadas sociais, uma campanha sistemática, por meio da imprensa e dos comícios, a fim de preparar o congresso e assegurar-lhe a presença e a cooperação de representantes de todas as organizações com as quais se houvesse tomado contacto, bem como de delegações de reuniões públicas femininas.
O congresso poderia ser uma «representação do povo», mas bem diversa do parlamento.
Naturalmente, as mulheres comunistas deveriam ser não somente a força motriz, mas também a força dirigente no trabalho de preparaçâo, na atividade do comitê internacional e no próprio congresso e, finalmente, na aplicação das decisões. No congresso deveriam ser apresentadas, sobre todos os pontos da ordem do dia, teses e resoluções comunistas inspiradas em princípios unitários e baseadas no exame científico das condições existentes. Essas teses seriam depois discutidas e aprovadas pelo Executivo da Internacional. Palavras de ordem comunistas e propostas comunistas deveriam estar no centro do trabalho do congresso, exigindo a atenção geral. Após o congresso, essas mesmas palavras de ordem deveriam ser difundidas entre as mais amplas massas femininas, a fim de impulsionar uma ação internacional de massas, por parte das mulheres. A condição indispensável para que as mulheres comunistas desenvolvessem um bom trabalho nos comitês e no congresso era manterem-se solidamente unidas, trabalhar coletiva e sistematicamente, apoiando-se em princípios claros e bem determinados. Nenhuma comunista devia sair da linha traçada. Enquanto eu falava, Lênin aprovava com sinais de cabeça ou fazia breves comentários de concordância.
«Parece-me, querida camarada — disse ele — que estudastes muito bem o aspecto político da questão e mesmo os problemas fundamentais de organização. Estou firmemente convencido de que neste momento um congresso semelhante pode desenvolver trabalho importante. Pode conquistar para a nossa causa, amplas massas de mulheres: massas de profissionais, de trabalhadoras na indústria, de donas-de-casa, de professoras e outras. Bem, muito bem. Pensai: em caso de graves divergências entre os grupos industriais ou de greves políticas, que aumento de força representa para o proletariado revolucionário a contribuição das mulheres, que se revoltam conscientemente. Naturalmente tudo isso sucederá se soubermos atrai-las e mantê-las em nosso movimento. A vantagem será grande, imensa. Mas existem algumas questões. É possível que as autoridades governamentais não vejam cem bons olhos os trabalhos do congresso, que tentem impedi-lo. Não creio que tentem sufocá-lo por meios brutais. O que irão fazer não vos deverá atemorizar. Mas não receais que nos comitês e no congresso as comunistas se deixem controlar pela maioria numérica dos elementos burgueses e reformistas e pela força desigual de sua routine? Finalmente, e sobretudo, tendes realmente confiança na preparação marxista das nessas camaradas a tal ponto de fazer delas um pelotão de assalto, que sairá da luta com honra?»
Respondi que indubitavelmente as autoridades não iriam recorrer à violência contra o congresso. Expedientes e medidas brutais serviriam apenas para fazer propaganda do próprio congresso. O número e o peso dos elementos não comunistas seria enfrentado por nós, comunistas, com. a força superior que deriva de uma compreensão e de uma elucidação científica dos problemas sociais, à luz do materialismo histórico, da coerência de nossas reivindicações e propostas e, por último, mas não menos importante, da vitória da revolução proletária na Rússia e de sua ação de vanguarda para a libertação da mulher. As debilidades e as deficiências das companheiras individualmente, no que se referia à sua educação e capacidade de compreender as situações, pode-riam ser superadas com o trabalho coletivo e a preparação sistemática.
Muito espero das camaradas russas, que deverão, ser o núcleo de aço de nossa falange. Com elas, ousarei muito mais que lutas congressistas. Além disso, mesmo se fôssemos derrotadas pelo voto, nossa própria luta teria lançado o comunismo em primeiro plano, com um excelente resultado propagandístico e serviria para criar novos vínculos para o nosso trabalho futuro.
Lênin riu gostosamente:
«Sempre o mesmo entusiasmo pelas mulheres revolucionárias russas! Sim, sim, o velho amor ainda não acabou. E creio que tendes razão. Mesmo a derrota, depois de uma boa luta assinalaria uma vantagem e uma preparação para êxitos futuros entre as trabalhadoras. Considerando tudo, vale a pena arriscar. Todavia, naturalmente, espero de todo o coração a vitória. Seria uma importante contribuição de força, um grande desenvolvimento e reforço de nossa frente, traria nova vida, movimento e atividade a nossas fileiras. E isso é sempre útil. Semelhante congresso acelerará a desintegração das forças contra-revolucionárias e por isso, as debilitará. Todo debilitamento das forças do inimigo representa ao mesmo tempo um reforço de nossa potência. Aprova o congresso. . .»
Desgraçadamente, o congresso fracassou, por causa da atitude das camaradas alemãs e búlgaras que, naquele tempo, constituíam o melhor movimento feminino comunista fora da Rússia. Elas repeliram a proposta de organizar o congresso. Quando eu o disse a Lênin, ele exclamou:
«Pena, uma verdadeira pena! As camaradas deixaram fugir uma esplêndida ocasião para lançar um raio de esperança às massas de trabalhadoras e de trazê-las para a luta revolucionária da classe operária. Quem sabe quando se apresentará novamente uma ocasião tão favorável? É preciso malhar o ferro enquanto está quente. A tarefa continua. Deveis encontrar o modo de unir as mulheres que o capitalismo lançou na mais pavorosa miséria. Deveis encontrado, deveis. Não nos podemos furtar a esta necessidade. Sem uma atividade organizada de massas, sob a direção dos comunistas, não se pode obter a vitória sobre o capitalismo, nem a construção do comunismo. Eis porque as mulheres terminarão por revoltar-se. . .»