Nota do blog: Parte 5 do artigo do prof. Fausto Arruda, publicado na AND nº 158, sobre o papel político de Getúlio Vargas na História do Brasil.
A situação internacional: derrota nazista, hegemonia ianque e avanço da revolução proletária
Como vimos no capítulo anterior, os vinte anos de interregno entre as duas Grandes Guerras Mundiais aprofundaram as contradições interimperialistas a um ponto tal que a mesma elevou-se à situação de principal contradição fundamental como necessidade inevitável de nova repartilha do mundo entre as principais nações imperialistas e pela hegemonia. Repartilha que implica em redesenhar o mapa mundial dividindo entre si as fontes de matérias-primas e os mercados consumidores das mercadorias de suas respectivas corporações monopolistas e para a exportação de seus capitais. Situação que conduziu à eclosão da II Grande Guerra Mundial (1938-1945), resolvida com a vitória das nações do campo Aliado (Inglaterra, França, Estados Unidos e União Soviética) sobre as nações do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Embora as contradições interimperialistas seguissem latentes, o pós-guerra fez evidenciarem-se as contradições entre o sistema socialista e o sistema capitalista e as contradições entre nações oprimidas e nações opressoras.
O IMPERIALISMO DESENCADEIA A GUERRA FRIA
Ostentando o fato de ser a única potência nuclear do planeta, demonstração feita com o bombardeio em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, e, ao perceber que o mercado mundial capitalista havia encolhido diante da expansão do mundo socialista com a incorporação da China e das repúblicas do Leste europeu, o USA assumiu todo ódio visceral do nazifascismo contra a União Soviética, atacando em várias frentes. Primeiro, desencadeou uma política de perseguição interna aos elementos progressistas da sociedade norte-americana sob o pretexto de que os mesmos seriam “agentes de Moscou”. O Macarthismo, termo inspirado no nome do senador McCarthy — propositor de uma Comissão Parlamentar no Congresso do USA para investigar e criminalizar políticos, artistas, professores, profissionais liberais, enfim pessoas progressistas e destacadas da sociedade estadunidense —, transformou-se numa verdadeira “inquisição”, provocando tamanho terror que obrigou milhares de artistas e intelectuais a migrarem do USA.
Como veremos mais adiante, este anticomunismo doentio se estenderá de forma centuplicada à América Latina e ao Brasil. A segunda frente foi o estabelecimento de uma força-tarefa comandada pela CIA (seu serviço de espionagem) para, junto com a aplicação do Plano Marshal (plano econômico de reconstrução e recuperação da Europa destruída), incrementar na mesma avassaladora onda de propaganda anticomunista, através de centros culturais, jornais, revistas, filmes e palestras, ao mesmo tempo em que desencadeava outro tanto de eventos para propagandear as “maravilhas do capitalismo” e da “América”. Uma terceira frente viria a satisfazer os anseios do complexo industrial militar, montado para fazer a guerra e que agora estava ocioso. Sua oportunidade veio através da Guerra da Coreia (1950/53), desencadeada pelo USA escudado na recém-criada ONU, a Organização das Nações Unidas.
O IMPERIALISMO É UM TIGRE DE PAPEL
Por outro lado, a União Soviética desfrutava de um prestígio mundial resultante do sucesso do Exército Vermelho com a sua retumbante vitória sobre a besta nazista. Superando toda a destruição colossal de forcas produtivas, especialmente das dezenas de milhões de vidas, o ânimo da vitória impulsionava a reconstrução, constituindo-se rapidamente em potência atômica, e animando os povos do mundo inteiro a lutar por sua libertação. A China, sob a liderança de Mao Tsetung, conclui sua Revolução de Nova Democracia e inicia a Revolução Socialista. Sob a estratégia da Guerra Popular Prolongada, alternando guerra civil e guerra de libertação nacional, o povo chinês inicia a construção da Nova China. O mesmo ânimo impulsionou a breve recuperação das repúblicas populares do Leste europeu iniciada com o desencadeamento da Revolução aAgrária, o que afastou o fantasma da fome nestes países enquanto a parte ocidental da Europa debatia-se com a escassez de produtos alimentícios.
OS POVOS OPRIMIDOS ERGUEM A BANDEIRA DA LIBERTAÇÃO NACIONAL
O espólio colonial da Alemanha, Japão e Itália na África e na Ásia foi o butim obtido pelo imperialismo anglo-franco-americano, agora sob a indiscutível hegemonia ianque. Esta nova divisão do mundo não foi tão pacífica como os imperialistas esperavam, pois os povos oprimidos destas regiões, ao verem-se livres de suas cadeias anteriores, resolveram lutar por sua libertação de forma definitiva, principalmente depois do exemplo chinês. A Inglaterra avançou sobre o mundo árabe, assegurando o enclave judeu do Estado de Israel, recebendo, em contrapartida, a indignação e revolta dos palestinos e demais povos árabes usurpados em seu território. A França, de imediato, quis reconquistar a Indochina recebendo em troca o repúdio dos vietnamitas embalados desde as lutas contra o Japão. A Coreia proclama a sua independência. O sentimento da liberdade contagia as colônias africanas dos velhos impérios espanhol e português, além do norte da África, cuja expressão maior foi a guerra de libertação da Argélia. Nas Américas, a transição do domínio inglês para o domínio ianque se completara. Assim era o mundo do pós-guerra.
A SITUAÇÃO NACIONAL: NOVA ROUPAGEM PARA O ESTADO BURGUÊS-LATIFUNDIÁRIO SERVIÇAL DO IMPERIALISMO
DE OPRIMIDOS A OPRESSORES: O ITINERÁRIO DOS TENENTES
No capítulo anterior destacamos a importância do movimento tenentista e sua divisão em dois caminhos ideologicamente opostos. O minoritário, comunista, era encabeçado por Prestes, derrotado em l935, e o majoritário sob a liderança de Juarez Távora, Gois Monteiro, Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, Miguel Costa, Djalma Dutra, João Alberto e outros. Estes, optando por uma aliança com a oligarquia dissidente e conformando a Aliança Liberal, entregam a Getúlio Vargas o comando da tomada do poder político. Vale salientar que o movimento tenentista enquanto tal, embora de composição nos elementos de origem pequeno-burguesa, esboçara um programa não apenas anti-oligárquico, mas também anti-imperialista, bem em sintonia com o espírito da nascente burguesia nacional. A formação da Aliança Liberal implicará, como veremos, na conformação de grupos e tendências correspondentes aos interesses das classes dominantes em disputa pelo gerenciamento do Estado, essencialmente de sua fração burocrática.
A criação da Legião Revolucionária de São Paulo e o Clube Três de Outubro no Rio de Janeiro foram uma iniciativa de tenentes como João Alberto e Góis Monteiro com a finalidade de fazer valer o programa nacionalista do movimento. Reclamam um Estado forte para combater o latifúndio, os trustes, a quebra dos exclusivismos estaduais e o imperialismo. Propugnam o exército como espinha dorsal do novo modelo que deveria manter distância de modelos externos como o comunismo e o fascismo. Os tenentes defendiam um Direito Público brasileiro, um governo brasileiro, uma economia brasileira e uma política brasileira. Tais proclamações, entretanto, recebiam uma verdadeira artilharia de críticas vocalizadas pela imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, traduzindo a resistência não só dos latifundiários paulistas como de setores industriais e comerciais ligados aos interesses ingleses e americanos. Mas, a Aliança Liberal era mais que a vontade dos tenentes, principalmente depois da composição com a oligarquia cafeeira em 1932. Pouco a pouco os “ideais tenentistas” foram sucumbindo, seja pela força da inércia oligárquica, seja pela influência das tendências mundiais do fascismo italiano, do nazismo alemão e da democracia ianque. Do ponto de vista militar, a gradual conciliação entre os tenentes e generais da velha ordem reafirmava o exército nacional, então pretendido como partido da burguesia nacional, como tutor da nova velha ordem onde o Estado representava os interesses da semifeudalidade e da semicolonialidade. Estava, assim, definitivamente derrotada a possibilidade de o exército vir a ser a coluna vertebral de um projeto independente burguês- nacional, questão determinada pela época imperialista como fim da revolução democrático-burguesa mundial.
Os quinze anos do gerenciamento Vargas se servirá do Estado para alavancar o grande capital de modo a impulsionar e consolidar o capitalismo burocrático, que desde a metade século XIX até 1930 era hegemonizado pelos senhores de terra e compradores. Processo em que o exército, a burocracia administrativa e os órgãos legislativos e judiciários serão mobilizados para dar cobertura aos interesses do imperialismo, da grande burguesia (principalmente a financeira) e do latifúndio (ver box).
Coube ao imperialismo ianque extrair a maior parcela do esforço da nação subjugada: o avanço da exportação de capitais em investimentos transformados cada vez mais em plataforma para a remessa de fabulosos lucros; a compra de matérias-primas como a borracha, os minérios e outros, necessários ao esforço de guerra, por preços aviltados; e, finalmente, a ocupação territorial de grande parte do litoral brasileiro com bases militares, sentando bases para a completa ingerência nos assuntos político-econômicos e domínio sobre o Estado brasileiro.
Através de instrumentos como o BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), do Banco do Brasil, do IBC (Instituto Brasileiro do Café) e do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), o Estado favorecia a grande burguesia com empréstimos subsidiados com longo prazo para pagamento, aquisição de estoques de café e açúcar nas crises de superprodução, dispensa de dívidas do latifúndio pelo Banco do Brasil e empréstimos a perder de vista aos monopólios de comunicação (ver box).
O envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater no teatro de operações dos Aliados na Itália é a conclusão de duas quedas de braço. A primeira entre Getúlio Vargas e o Departamento de Estado do USA em torno da instalação da Usina Siderúrgica em troca da ida da FEB e da cessão do litoral nordestino para instalação de bases militares ianques. A segunda em torno da divisão que reinava no seio dos remanescentes do tenentismo, divididos que estavam quanto ao apoio ao Eixo (Góis Monteiro, Felinto Müller e Eurico Dutra, conhecidos por germanófilos) e os americanófilos como Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes e outros. Atuando sob a direção direta do V Exército ianque, as tropas brasileiras, especialmente o seu comando, retornaram bastante influenciadas pelas doutrinas militares ianques. Influência que logo se prolongou com a instalação no Brasil da ESG (Escola Superior de Guerra) sob a orientação e supervisão de oficiais do exército ianque para desenvolver a “Doutrina da Segurança Nacional”, instrumento da Guerra Fria desencadeada pelo imperialismo para o combate ao comunismo e suas expressões concretas, a URSS e a China. A implantação da ESG, entregue a Cordeiro de Farias, fazia parte ainda de um acordo militar entre o Brasil e o USA assinado no segundo governo de Vargas pelo ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura.
Salvo algumas vozes como do general Stilac Leal (que chegou a presidência do Clube Militar à frente de uma chapa de militares nacionalista que ajudaram a impulsionar a campanha “O Petróleo é Nosso”), a maioria dos militares se alinhou no campo entreguista se submetendo à política de subjugação nacional imposta pelo imperialismo ianque, através da descarada atuação de sua embaixada, na propaganda anticomunista, e de empresas como a ITT e a Standard Oil, que chegaram abertamente a influenciar a Assembleia Constituinte de 1946, inserindo artigos favoráveis aos seus negócios no Brasil.
Vargas consolida o capitalismo burocrático: uma radiografia
Dentre tantos analistas que procuraram explicar as características do Estado brasileiro no período conhecido como ‘Era Vargas’ está o jurista Raimundo Faoro, do qual reproduzimos, de seu livro “Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro”, capítulo XV (Mudança e revolução) do volume dois, os seguintes trechos, bastante significativos sobre o caráter burocrático do capitalismo impulsionado na ‘Era Vargas’:
“O comando externo da produção agrícola, dos meios de transporte e da industrialização cede lugar à ação interna e oficial, com a consequente e necessária mobilização popular, vinculada ao reforço autoritário e centralizador do governo.”
“Comissões e autarquias envolvem todas as áreas significativas da economia, para a defesa da agricultura e da indústria extrativa. O Departamento Nacional do Café (1933), extinto em 1946, renasceria com o nome de Instituto Brasileiro do Café, em 1952, submetendo os produtores a uma cota de sacrifício, depois ao confisco cambial, em benefício da própria lavoura e da economia global. O açúcar, para o favorecimento da homogeneidade dos preços do mercado interno, submete-se à Comissão de Defesa da Produção do Açúcar (1931) transformada em 1933 no Instituto do Açúcar e do Álcool. O pinho, o mate, o sal e a borracha cedem a controles oficiais, com novos mecanismos burocráticos. A regulamentação do cambio está presente por intermédio do Banco do Brasil (1931) e mais tarde com a supervisão do Ministério da Fazenda, por meio de agência própria. A legislação, modificada e modernizada, segue o mesmo curso, com o estatuto das sociedades anônimas, burocratizando, não raro, todas as atividades particulares. A intervenção oficial se expande no regime dos capitais estrangeiros, assegurando a comercialização das exportações. Numa fase de reajustamento agrícola, compatível com a estrutura existente, o governo “revolucionário”[aspas nossa] cuida de libertar a lavoura de seus encargos mais urgentes, preparando o caminho para o domínio do crédito — não mais da sua coordenação, mas do agenciamento direto. A lei contra a usura, de 1933, limita os juros à taxa máxima de 12% ao ano, reduzindo-a a 8% nos contratos agrícolas, com o favorecimento de 6% para serviços, maquinismos e utensílios dedicados ao trabalho rural. Logo a seguir declara nula a estipulação de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, cortando drasticamente a dependência dos empréstimos estrangeiros dos particulares. Concomitantemente, à sequência da moratória aos lavradores, as dívidas rurais foram reduzidas 50%, arcando o poder público com a responsabilidade do favor. O ministro da Fazenda proclama que, com a medida, se operaria a abolição da escravatura agrícola do país, com o reerguimento da vida rural. Medidas estas, na verdade, tomadas para conjurar os efeitos da crise mundial. Somente em 1938, cria-se, no Banco do Brasil, a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, que será a mais poderosa mola de incremento econômico, agora direto e de teor já vinculadamente industrial.
[…]
O poder estatal já se sentia capaz de comandar a economia — num regresso patrimonialista, insista-se —, com a formação de uma comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática do que aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das classes. O primeiro passo dessa jornada será a disciplina social e jurídica do proletariado, com a fixação de seus direitos e seu capitaneamento governamental. … A sindicalização abrangia operários e patrões, com organismos próprios, para solverem os seus dissídios sob a supervisão ministerial, ampliando largamente o campo dos direitos dos trabalhadores — a lei de dois terços de trabalhadores brasileiros, oito horas de trabalho, férias, etc. A conciliação legal não valida, entretanto, os reclamos operários, reprimidos severamente, como antes, se apelassem para a greve, assimilada à violência…
…A emergência da Guerra de 1939, com barganhas e trocas astutamente aproveitadas, não consagram a nacionalização, mas o predomínio brasileiro nas empresas, com a colaboração norte-americana, cujos frutos são a Companhia Siderúrgica Nacional (1941) e a Companhia Vale do Rio Doce (1942). O esquema adotado define um tipo de economia politicamente orientado, com as indústrias de base entregues ao Estado, que delas participa majoritariamente, associado aos acionistas estrangeiro e nacional, reservando-se favores que podem chegar até o monopólio. …
… Por caminhos diferentes – no incentivo à indústria de base e ao estímulo à produção industrial menor – o Estado se torna francamente protetor da manufatura, ao ponto de consolidar suas tendências em 1937, com um estatuto político adequado aos seus propósitos. … De outro lado, o Banco do Brasil — cada vez mais, a partir de 30, instrumento obediente da política governamental — concedeu crédito aos produtores, os quais, mais tarde, no período inflacionário aberto em 1939, tornam-se verdadeiros subsídios, por desprovidos de correção monetária… Os tabelamentos de preços agrícolas, justificados pela conjuntura de guerra, operaram no mesmo sentido, subsidiando o operário industrial, cujo salario real fora cadente, a partir do índice de 1920… Nas intervenções estatais, outrora abominadas pelos empresários apenas se contrárias aos seus imediatos interesses, crescem e proliferam atividades econômicas incentivadas pelos lucros rápidos, mais jogo de azar que empresa nacional. Para que medre essa camada, ontem comercial, hoje industrial e amanhã financeira, o governo há de estar presente, atuante, armado. Dentre as classes, predomina a lucrativa, especuladora nos seus tentáculos, apta menos a produzir do que enriquecer, em consórcio indissolúvel ao estamento burocrático, este também especializado em comissões e conselhos, alheio à sociedade, desta tutor, ou, em momentos de normalidade, no exercício de discreta curatela. As classes proprietárias, o empresário industrial, racionais nos seus cálculos, se submetem aos destros manipuladores de situações. O tubaronato floresce e engorda, ensejando a suspeita que sua fortuna se deva ao favor, quando, na realidade se expande como autêntica expressão do sistema.”