Nota do blog: Parte quatro do artigo de autoria do prof. Fausto Arruda, publicado na AND nº 157, sobre o papel político de Getúlio Vargas.
Parte IV: acirramento da luta de classes e reestruturação do velho Estado
Conforme temos afirmado nos capítulos anteriores, era fato marcante, no início do século XX, a condição semicolonial do Estado brasileiro, implicando em sua sujeição completa à dominação imperialista. Quando das crises do imperialismo, aumentava-se a opressão e espoliação nacional, e, principalmente, redobrava- se a exploração das massas trabalhadoras da cidade e do campo, como forma de dar saída a elas, mantendo o lucro máximo dos seus monopólios.
A deflagração e desenvolvimento da Primeira Grande Guerra Mundial conduziu o mundo a uma nova partilha entre as potências imperialistas e condicionou o triunfo da Revolução Russa. Estes acontecimentos não só desenharam o novo mapa mundial como abriram caminho para que os anos de 1920 e 1930 fossem de grandes estremecimentos das bases da dominação colonial/imperialista britânica e possibilitassem a ascensão do USA como candidato a potência hegemônica.
A constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas estabelece uma contradição a nível mundial ao dividir o mundo entre dois sistemas: o velho e decadente mundo capitalista, em sua fase apodrecida imperialista, e o novo mundo do Socialismo em construção.
Veremos a seguir como se deram estes embates no âmbito internacional e sua repercussão no Brasil.
A SITUAÇÃO INTERNACIONAL
A Primeira Grande Guerra Mundial deixou a Europa depauperada em razão de ter sido ela seu teatro de operações, principalmente, a região fronteiriça da França e Alemanha, onde o ganho e a perda de posições cobrava um custo altíssimo de vidas humanas, de material bélico e de produção. Os efeitos destrutivos da guerra dificultavam ao observador diferenciar vencidos de vencedores. Prejuízos incalculáveis e desorientação no que fazer para sua recuperação eram a preocupação dominante, demonstrada pelo alto grau de ebulição em que se encontravam todas as classes.
A consequência mais marcante, entretanto, pode ser atribuída à perda de hegemonia da Europa no cenário mundial e, dentro dela, a decaída da Inglaterra, abrindo espaço para a ascensão do USA, do Japão e da União Soviética.
O USA já era a maior economia mundial em 1913. Entrara na guerra para salvar a combalida Inglaterra prestes a sucumbir, após perder a Rússia como aliada e diante da paz em separado desta com a Alemanha. Saíra como o maior credor, maior exportador e maior importador mundial. Se isso, aparentemente, era uma vantagem, era também uma desvantagem e uma possibilidade de crise frente a debilidade de seus alquebrados parceiros de pós-guerra. O papel decisivo que o USA desempenhou para a vitória dos aliados custou à Inglaterra a perda de influência sobre grande parte de suas colônias e semicolônias para os ianques, com destaque para a América Latina.
O Japão também entrara na guerra sem que seu território sofresse o menor dano. Seu objetivo era tomar à Alemanha partes consideráveis de sua influência na China e no restante do continente asiático. Se deu bem, aproveitando-se do enfraquecimento britânico para aumentar mais ainda seu domínio e áreas de influências na Ásia, principalmente no território chinês.
A União Soviética fora transformada em perigo principal, já que o socialismo deixara de ser um espectro para se tornar ameaça concreta a unir os reacionários de todo o mundo capitalista. Mesmo às voltas com a invasão de seu território por quatorze países, com extrema dificuldade na reconstrução econômica e edificação da nova sociedade socialista, a URSS enchia de esperança o proletariado e os oprimidos de todos os países desencadeando uma tempestade revolucionária tanto na Europa como no resto do mundo sedento de liberdade.
No interior da própria Europa, o desmantelamento do Império Austro-Húngaro deu margem ao surgimento de uma série de pequenos Estados, muitos em torno do território soviético, funcionando como “cordão sanitário” e dando novo desenho ao mapa mundial.
A breve recuperação econômica dos vencedores e perdedores foi só o prenúncio da maior crise global já vivida pelo capitalismo e que teve como expressão maior a quebra da bolsa de valores de Nova York, arrastando o mundo inteiro para uma depressão que durou quatro anos em sua fase aguda. A grande depressão veio a confirmar as previsões dos marxistas, segundo as quais a liquidação do capitalismo de livre concorrência pelo surgimento dos monopólios colocaria o mundo inteiro sob o sobressalto de periódicas crises de superprodução.
Nos vinte anos de interregno das duas grandes guerras, diante do descrédito das teorias liberais, o imperialismo produziu a sua teoria política, o fascismo — com o objetivo de ajustar contas com a classe operária que ascendia com a construção do socialismo na União Soviética e na luta contra o capitalismo e o imperialismo em todo o mundo. Com o fascismo, o grande capital pôde contrapor-se aos elementos constitutivos da luta operária, como a luta de classes, a ditadura do proletariado e a violência revolucionária com o corporativismo via conciliação das classes, a ditadura do sistema financeiro e a violência contra as massas. Surgido na Itália, o fascismo recebe na Alemanha o requentado molho da superioridade racial e o ódio à URSS, a Pátria do Socialismo, nascida sob o signo da teoria científica do proletariado, o Marxismo.
As classes dominantes e os monopólios germânicos, manipulando as massas com a argumentação sobre as humilhações impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, em termos de perdas territoriais e de reparações de guerra, preparam sua reação. E para liderar este processo se servem da nefasta figura de Adolfo Hitler e seu projeto nacional-socialista, com o qual alavanca a economia e liquida o desemprego. São logros sobre os quais monta uma espetacular máquina de propaganda para, pela mistificação, levar as massas a dar sustentação ao seu projeto de dominação e supremacia ariana, cuja tarefa primordial seria a liquidação da União Soviética e o “perigo vermelho”, para, com isto, impor-se às demais potências capitalistas e escravizar os povos do mundo inteiro.
OS IMPERIALISTAS DISPUTAM O BUTIM BRASILEIRO
Nos anos de 1930, o Brasil já se via como palco de grande disputa entre as potências, enfraquecendo crescentemente o peso da Inglaterra. Para o historiador Moniz Bandeira, em seu importante livro “Presença dos Estados Unidos no Brasil”, afora o grande incremento nas relações comerciais, “as exportações americanas para o Brasil, desde 1925, registravam cifras superiores, 287% em média, às de antes da guerra imperialista. A Alemanha voltara a ocupar o segundo lugar nas exportações brasileiras. Os Estados Unidos, todavia, compravam do Brasil 198% mais que antes da guerra, suplantando a soma apresentada pelo conjunto de todos os países da Europa”. As inversões do USA assumiram proporções cada vez maiores: “A partir de 1919, após a I Grande Guerra, ‘todo o processo de penetração dos Estados Unidos (…) no Brasil’ — como acentuou Normano — ‘foi um contínuo processo de expulsão e de ocupação das posições europeias e, principalmente, britânicas’. De 1900 a 1930, conforme os dados do Banco Central do Brasil, os investimentos americanos atingiam a cifra de 10.292.331 dólares, representando 37,55% do total (27.411.711 dólares) dos capitais estrangeiros e registrados, no mesmo período. Estes números podem estar e estão muito aquém da realidade, mas indicam, sem qualquer dúvida, uma tendência, expressa pelos percentuais com maior exatidão. E para fechar o círculo da dominação ‘em apenas seis anos, isto é de 1921 a 1927, os Estados Unidos também se tornaram detentores de 35% das dívidas externas do Brasil’”.
Importante é salientar que todas estas transações eram ancoradas em acordos lesivos ao Brasil e justificados pelo USA com base em suas doutrinas imperialistas de “América para os americanos” e do “Big Stick” (“Grande Porrete”). Muitas são as estórias de como os gringos se sentiam à vontade em sua exploração sem limites da nação brasileira. Para mais exemplos desta situação basta verificar o Sindicato de Percival Farquar, a Fordlândia e as peripécias da Standard OIL.
Apesar de tudo, esta situação não assegurava ao USA a tranquilidade desejada. A Inglaterra resistia como podia a entregar os pontos e a Alemanha cercava o Brasil por todos os lados, oferecendo acordos e vantagens que o USA não oferecia. A década de 1930 será, até então, o período de luta mais encarniçada entre as nações imperialistas por fontes de matérias primas e por mercados consumidores de seus produtos. Disputa que levará a mais uma guerra pela divisão de colônias e semicolônias entre as nações imperialistas, e neste jogo o Brasil entraria como parte do butim.
O APROFUNDAMENTO DA CRISE OLIGÁRQUICA
Com a Proclamação da República, o reinado dos barões do açúcar foi paulatinamente substituído pelo reinado dos barões do café. Estes, porém, ao adotarem uma política exclusivista de defesa de seus interesses, atropelaram as demais oligarquias e viraram as costas às demandas das classes médias urbanas e do nascente proletariado, incrementado de fora pela industrialização impulsionada pelos capitais oriundos do fim do comércio negreiro, dos ganhos na lavoura do café e, sobretudo, das inversões de capital estrangeiro. Também, o advento da Revolução Bolchevique de 1917, impulsionando a criação de Partidos Comunistas em todo o mundo, tem o seu reflexo no Brasil com a fundação do Partido Comunista do Brasil (P.C.B.) em 1922. Estava, pois, formado o caldo de cultura para potencializar a situação revolucionária em desenvolvimento surgida das crises do capitalismo e suas agressões imperialistas.
Enquanto as nações imperialistas se preparavam para uma nova guerra de partilha do mundo no intuito de aumentar a rapina sobre as nações oprimidas e exploradas, no Brasil, a disputa interimperialista já se fazia sentir pelas disputas no seio das classes dominantes entre os vários grupos de poder buscando se associar a alguma fração do imperialismo, cumprindo a triste sina de lacaios. Frente ao decadente gerenciamento da oligarquia latifundiária em aliança com a burguesia compradora, as demais classes se movimentam no sentido de buscar uma correspondência com novas contradições surgidas no plano mundial e apresentam seus projetos para a conquista do aparelho de Estado brasileiro.
O escritor Jorge Amado, em sua magnífica obra “Os subterrâneos da liberdade” — primeiro volume “Ásperos tempos” —, logo no início do romance, páginas 33 a 35 (ver box), narra a discussão entre um banqueiro e políticos representantes de latifundiários e industriais, no qual são reveladas as apreensões das classes dominantes quanto ao rumo que o mundo e o Brasil tomarão diante do “perigo vermelho”, da ascensão da Alemanha e do USA e, ainda, da decadência britânica.
GETÚLIO E A REESTRUTURAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
A agudização das contradições no país, especialmente no campo, prossegue os acontecimentos que atravessaram o século XIX, levando todas as classes a lançarem mão da luta armada para fazer valer o seu projeto. Os camponeses lutam pela terra na guerra do Contestado e no cangaço nordestino. A pequena burguesia com o tenentismo — movimento surgido no seio das forças armadas, em sua baixa oficialidade, os tenentes —, responsável pelos levantes de 1922 no Rio de Janeiro (Os 18 do Forte Copacabana), 1924 em São Paulo (Levantamento revolucionário) e pela Coluna Prestes, cuja epopeia é um marco tanto da história militar como das lutas sociais do Brasil. O tenentismo com uma pauta, a princípio, antioligárquica, foi se desenvolvendo em consonância com a luta de classes a nível mundial, fracionando-se em uma ala direita aderida parte ao fascismo e parte ao liberalismo e uma ala esquerda aderida ao comunismo. As duas frações da ala direita aliaram-se às oligarquias descontentes e formaram a Aliança Liberal, responsável pelo golpe que empalmou o poder em 1930. A ala esquerda uniu-se ao Partido Comunista e criou a Aliança Nacional Libertadora (ANL), movimento que resultou no Levante Popular de 1935. A nascente burguesia industrial compactuou com o golpe de 1930 e a oligarquia latifundiária, com a pseudorrevolução constitucionalista de 1932, promoveu sua luta armada a partir de São Paulo. Mesmo derrotada, ela consegue obter uma acomodação da fração latifundiária dentro da nova reestruturação do velho Estado.
Com a derrota do proletariado no Levante de 1935 e a tremenda repressão que se abateu sobre os comunistas e os elementos mais progressistas da sociedade, as forças do atraso ganharam mais espaço para promover uma remodelação do Estado. Porém, sem modificar a sua qualidade de um Estado semicolonial estruturado sobre uma base semifeudal de um tipo de capitalismo — capitalismo burocrático — engendrado pelo imperialismo via exportação de capitais, remessa de lucro, reserva de mercados e domínio das fontes de matérias-primas.
Getúlio Vargas, oligarca esclarecido, sintonizado com os acontecimentos mundiais e acompanhando as tendências da luta de classes ao nível nacional e internacional, foi buscar no modelo italiano, o fascismo, a inspiração para modelar o funcionamento do Estado brasileiro, exercendo um contorcionismo político frente às imposições da embaixada ianque e de seu departamento de Estado.
No próximo capítulo trataremos das pugnas entre as frações das classes dominantes pelo controle do aparelho do Estado e a consolidação do domínio ianque na política, na economia e na cultura brasileira, caracterizando o papel de Getúlio na História do Brasil.
Trecho de ‘Os subterrâneos da liberdade’
“Artur sorria contente:
— Tu vês, é o que eu pensava. A cada discurso de José Américo eu via que ele se enterrava mais. Não sei quem o convenceu — talvez fossem os comunistas — de que política é o povo quem faz. Essa é uma fórmula que pode servir na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Mas no Brasil quem faz política é Londres e Nova Iorque.
— Berlim também, menino, Berlim, não te esqueças. E não comeces com Londres. Ouça, Arturzinho, o que te vou dizer. Vocês também vão levar uma porrada de criar bicho para aprender que a Inglaterra é um leão que perdeu os dentes. Vocês já apanharam em 1930, em 1932 e vão apanhar agora…
Artur suspirou, tomou o copo de uísque, bebeu:
— Não vai ser tão fácil assim… Nós também temos cabeça e desde que Getúlio começou a ameaçar com o golpe, nós começamos a nos preparar também. Tu dizes que Londres não pesa mais. Pois bem, José, foi na Embaixada inglesa que me deram, detalhe por detalhe, todo o plano de Getúlio, suas conversas com os integralistas, e o conselho de nos prepararmos por nosso lado… É o que estamos fazendo; há gente boa do Exército na brincadeira, nós e o Rio Grande do Sul. Podemos voltar aos tempos de antes de 1930…
— Os ingleses estão financiando essa conspiração de vocês? Não bastou 1932 para te convencer, Arturzinho, que os dias dos ingleses no Brasil estão contados?
— Eles têm enormes capitais ainda aqui em São Paulo, nos frigoríficos do Rio Grande, um pouco por toda parte. Não penses que se trata de um plano no ar. A polícia militar do Rio Grande do Sul recebeu um grande carregamento de armas modernas, chegadas da Inglaterra, via Argentina. É um verdadeiro Exército. Aqui também estamos bem armados. E podemos pegar Getúlio de surpresa; ele pensa que estamos enterrados até o pescoço nas eleições.
Costa Vale se levantava — andava de um lado para outro, finalmente parou em frente a Artur:
— Ouça, menino, vocês estão jogando uma cartada perdida. Londres não conta mais na vida política do Brasil. Eles possuem por aí uns restos de capital, mas por quanto tempo os possuirão ainda? Há uma divisão do mundo, Arturzinho, e a América do Sul, pertence aos Estados Unidos. A Inglaterra fica pela Índia e pela Arábia; mas aí mesmo os americanos vão entrando cada vez mais. Eu te digo, menino, a coisa hoje se coloca entre os americanos e os alemães. Teu mal, Artur, é pensar que o mundo fica parado. Tu és de uma família do Império, dos tempos em que a Inglaterra mandava e desmandava aqui. És conservador, estás acostumado aos ingleses, às suas estradas de ferro, às suas minas, aos seus costumes também. Pensavas que isso era eterno, coisa vinda do Império, sagrada, uma herança de família como o teu nome. Levaste a porrada de 30, a revolução de Getúlio, e não compreendeste então que os americanos haviam tomado o lugar dos ingleses. Te lembras do que eu te disse quando vieste me falar da conspiração de 1932? E eu, que fiz eu? Tenho ganho muito dinheiro com os americanos. Há muito dinheiro a ganhar com eles… Só que eu não sei se não há mais ainda a ganhar com os alemães.
— Tu pensas que os americanos vão sustentar Getúlio se nós nos levantarmos?
— Segurissimamente… — o banqueiro separava as sílabas para dar mais força à palavra — Getúlio é o homem dos americanos, como Plínio é o homem dos alemães…
— Mas eles estão unidos; Getúlio parece agora mais fascista do que qualquer integralista. Não crês mais na possibilidade de um entendimento entre ingleses e americanos que entre americanos e alemães?
O banqueiro refletiu:
— Essa aliança de Getúlio e de Plínio é como a da raposa com o gato. Um quer comer o outro. É isso o que me preocupa, Arturzinho, só isso: quem vai ser o capataz nessa fazenda que se chama Brasil? Com quem devemos marchar? Com os americanos ou com os alemães? Quanto aos ingleses, foi um dia…
Estendia o copo a Marieta para que servisse outro uísque, novamente caminhava pela sala, falando:
— Hitler é o futuro. A guerra não tarda, Arturzinho. A guerra da Alemanha contra a Rússia. Quando Hitler tiver a Rússia, tem toda a Europa, inclusive a Inglaterra. E então a coisa vai se decidir entre ele e os americanos. O importante é saber o momento exato de apoiá-lo aqui. Talvez seja ainda cedo… Mas, de qualquer maneira, é preciso estar de olhos abertos. Sabe, os alemães fizeram-me grandes propostas de negócios. Estou estudando o assunto.”