Nota do blog: Parte 2 do artigo de autoria do Prof. Fausto Arruda, publicado no jornal A Nova Democracia, tratando do papel político de Getúlio para o Brasil.
Parte II: a fundação do Estado brasileiro
Na segunda parte do artigo sobre Getúlio Vargas, fazemos um breve histórico sobre a formação do velho Estado semifeudal e semicolonial brasileiro. Tal digressão é necessária porque todo o desenvolvimento posterior está atado ao caráter do velho Estado, desde que o Brasil se separou de Portugal.
Conforme vimos na introdução do artigo Getúlio ou a consolidação do capitalismo burocrático no Brasil, que será publicado por partes, na definição de Engels citada por Lenin em seu livro O Estado e a revolução, o Estado é essa força, que, como produto da sociedade de classes, coloca-se por cima dela e dela se afasta cada vez mais. O Estado compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, além de uma burocracia composta por funcionários que, considerados como órgãos da sociedade, são colocados acima dela. Portanto, o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se torna a classe politicamente dominante. Como fenômeno social histórico, o Estado surge quando a sociedade se dividiu em classes.
E será com as revoluções burguesas nos séculos XVIII e XIX, no USA e principais países da Europa, que o Estado vai tomar a feição de Estado Nacional. Essa foi a condição necessária para que estes países, capitaneados pela Inglaterra, conduzindo sua revolução industrial, iniciassem um novo processo na história mundial de partilha e repartilha, dividindo cada vez mais o mundo entre um punhado de nações adiantadas dominantes e opressoras e uma imensa maioria de nações dominadas e oprimidas.
O modelo dos velhos impérios coloniais perdia cada vez mais força diante do avanço do capitalismo e, com ele, a modificação das relações entre as nações dominantes, empenhadas em guerras de conquista por mais territórios e mais colônias, para dar vazão às suas mercadorias e obter as matérias-primas necessárias ao abastecimento de sua indústria nascente. Eram tempos de capitalismo de livre concorrência.
O crescimento da produção industrial impulsionou o comércio mundial que, para tanto, necessitava de nações livres para o livre intercâmbio comercial. Assim é que a Inglaterra, usando o seu poderio militar conhecido na época como “Diplomacia das Canhoneiras”, estimulou a quebra de grande parte do sistema colonial da Espanha e de Portugal, principalmente na América Latina. É portanto, neste contexto, que surge a proclamação da independência do Brasil dando início a existência do Estado brasileiro.
A TRANSIÇÃO DE COLÔNIA PARA SEMICOLÔNIA
Do ponto de vista interno, a separação de Portugal foi resultado de um longo processo do desenvolvimento do sentimento nativista, responsável pelo surgimento de várias insurreições como a Conjuração Mineira, a Conjuração Baiana e a Insurreição Pernambucana, dentre outras de menor porte e significado. Todos estes movimentos e insurreições têm de comum entre si o fato de repercutirem os ventos liberais burgueses que vinham da Europa, com suas revoluções burguesas, e do USA, recém-libertado do domínio inglês.
Vale salientar que a direção dos movimentos independentistas já apontava para as divisões de classe com a afirmação da classe dos senhores de terras e o surgimento de uma classe de comerciantes já demarcando posições com o movimento abolicionista.
Ao analisar o período colonial, o historiador Leôncio Basbaum escreveu no primeiro volume da coleção História sincera da República: “Ao findar o século XVIII, após trezentos anos de colonização, estava a economia brasileira fundada em seus alicerces básicos. A história futura não seria mais do que o corolário natural dessa infraestrutura caracterizada pelo latifúndio, trabalho escravo, produção para exportação, ausência de indústria e de mercado interno.
Dominava o país um pequeno grupo de famílias de senhores de engenho constituindo a nobreza feudal. Abaixo dela, algumas camadas sociais pouco numerosas, parasitárias, sem características econômicas, não produtoras, enfim, constituídas de militares, clero, funcionários e, formando-se uma pequena classe de comerciantes, nas cidades, uma pequena camada ou classe de moradores sem terra, no interior. E a sustentar tudo isso, um milhão e meio de escravos numa população de pouco mais de três milhões de habitantes. Tal era o Brasil em véspera de sua independência.”
Podemos dizer que a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1808), fugindo das invasões napoleônicas, funcionou como um processo de transição para a criação do novo Estado, uma vez que, alçado à condição de Reino Unido a Portugal, já dava os primeiros passos no sentido de sair da situação de colônia para a situação de semicolônia. A transferência da realeza impôs a criação de várias instituições como o Banco do Brasil e outras que seriam incorporadas ao futuro “Império do Brasil”. De modo que o episódio do 7 de Setembro de 1822, como ato exclusivamente de separação de reinos, e já a Inglaterra tendo expulsado os franceses de Portugal, passando-o ao seu domínio, e dado ao seu poderio militar e econômico-comercial, o Brasil tornou-se automaticamente semicolônia dos ingleses.
O ESTADO BRASILEIRO
Devido a suas características, o processo de emancipação tutelada pelo colonialismo inglês, tanto no Brasil como nas demais nações na mesma condição, não pode ser equiparado aos pioneiros Estados nacionais. Podemos, assim, afirmar que o Estado brasileiro já nasceu velho porque surge recebendo uma herança colonial da qual não conseguiu se desvencilhar.
O retorno da família real para Portugal, deixando no Brasil o príncipe regente e a posterior declaração de independência, dão início a um complicado processo de criação das instituições que irão constituir o Estado semicolonial brasileiro. A dificuldade de consolidação das instituições derivou das contradições surgidas pelo choque de interesses coloniais ingleses e, de certo modo, portugueses, em torno da abertura dos portos brasileiros ao mercado internacional, principalmente inglês, e o sentimento nativista em busca de uma afirmação nacional. Assim é que a conformação do poder Estatal, expresso num sistema monárquico constitucional exigia a elaboração de uma constituição, que prontamente revelou seu caráter de classe expresso nos interesses do colonialismo inglês, dos senhores de terra e de uma ainda frágil burguesia compradora, todos representados no interior do poder constituinte.
Da mesma forma, a organização de um corpo de funcionários se dava pela substituição de antigos funcionários dos tempos coloniais por indicações oriundas das classes dominantes escravocratas feudais e compradoras. Para completar as instituições definidoras da existência de um Estado, embora semicolonial, organiza-se um exército, a princípio baseado em mercenários estrangeiros e, pouco a pouco, conformando uma oficialidade em plena consonância com os interesses das classes dominantes locais no Estado em estruturação.
A busca de afirmação nacional vai se expressar em revoltas por todo o país, as quais se deparavam com a repressão do exército em formação, como a principal instituição do Estado monárquico feudal e semicolonial. Logo em 1824 explode no Nordeste a Confederação do Equador, congregando as províncias de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas, tentativa de se criar um novo Estado sob um regime republicano e federalista. Ao reivindicar a abolição da escravidão, o movimento, tendo como expressão maior a figura de Frei Caneca, perdeu o apoio dos grandes proprietários de terra, abrindo espaço para a violenta repressão exercida por mercenários ingleses contratados por D. Pedro I.
Após a abdicação de D. Pedro I (1831) e o estabelecimento da Regência, outras insurreições vão explodir, como no caso do Sul do Brasil com a Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha, liderada por Bento Gonçalves e Guiuseppe Garibaldi, representando uma aliança entre os estancieiros produtores de charque e setores liberais com ideais separatistas. Por mais de dez anos, a República Rio-Grandense, que proclamou sua constituição, apontou o fim do tráfico de escravos, as liberdades democráticas e a ampliação dos direitos fundamentais para o povo. Após sangrentas batalhas nas quais sucumbiram milhares de sulistas, os estancieiros entram em acordo com o Estado brasileiro na figura de Luís Alves de Lima e Silva, o barão de Caxias.
Também o norte do país foi sacudido por revoltas, desta feita conduzidas por setores populares revoltados com a extrema miséria a que eram submetidos os negros, os índios e mestiços.
A Cabanagem foi uma revolta que levantou a população mais pobre do Pará e que em 1835 tomou a capital da província por duas vezes, sendo em ambas traída por representantes das classes dominantes e do governo central através de massacres praticados contra a população do campo e da cidade. A luta continuou ainda por vários anos sob a forma de guerra de guerrilha.
A Balaiada, na Província do Maranhão, ganhou este nome por ser liderada por Francisco dos Anjos Ferreira, um artesão que fazia balaios, um chefe quilombola e um vaqueiro. A revolta surgiu como consequência da elevação da miséria e exploração do povo pobre frente à crise da cultura do algodão. As camadas médias de São Luiz, capital da província, apoiaram os balaios. Estes revoltosos tiveram como resposta a sangrenta repressão do governo imperial pela mão de Luís Alves de Lima e Silva que, por esta e outras, seria reconhecido futuramente como patrono do exército brasileiro.
Da mesma forma se passou com a Revolução Liberal de 1942, em Minas Gerais, com os levantamentos armados liderados por Teófilo Otoni nas principais cidades e vilas diamantíferas. Na batalha de Santa Luzia, embora tenham derrotado as colunas comandadas pelo mesmo Caxias, os rebeldes foram derrotados pelas tropas comandadas pelo irmão deste.
Assim, o Estado brasileiro vai se constituindo e afirmando seu poder com base no sufocamento de levantamentos armados por todo o país, entre os quais alguns movimentos separatistas. Por sua ação de esmagar as forças rebeldes das massas pobres e chamar à concertação as classes proprietárias integrantes destes movimentos, Luiz Alves de Lima e Silva foi galardoado pelo imperador com título de o “Pacificador”. Tudo por manter inalterada as bases e características escravocrata, feudal e semicolonial. Bases estas que vão se aprofundando por todo período monárquico com suas instituições, expressando os interesses do colonialismo inglês, dos senhores de terra (latifundiários, senhores de engenho, criadores de gado e barões do café) e a burguesia compradora (os comerciantes que vão se formando nas principais cidades portuárias). Desde sua estruturação, o Estado brasileiro se caracterizou e se desenvolveu como um ferrolho genocida, responsável pela eliminação de milhões de seres humanos, seja de povos indígenas, escravos negros e o povo pobre em geral: o povo e a nação brasileiros em conformação.
Desenvolvimento capitalista e capitalismo burocrático
Reproduziremos a seguir o artigo publicado na primeira edição do AND, julho/agosto de 2002.
O sistema de sesmarias dá início ao processo de centralização e monopólio da propriedade da terra, concentradas nas mãos de nobres portugueses e de altos funcionários da burocracia colonial. Com a separação de Portugal em 1822 e a abolição da escravatura em 1888, nada na estrutura fundiária do país se alterou. As relações de propriedades de tipo feudal se agravaram consolidando no jurídico, com a Lei de Terras, de 1850, que estipulava que o acesso à terra só se realizaria através de sua compra. A manutenção e o reforçamento do caráter privado do regime jurídico de propriedade da terra, baseado no latifúndio, por si só representava o mais formidável obstáculo para o desenvolvimento capitalista, não somente no campo, mas no país como um todo, já que era no campo que se dava, essencialmente, a produção nacional. A Abolição da Escravatura e a Proclamação da República não resultaram de processos revolucionários, portanto não realizaram qualquer alteração estrutural no país, senão que foram artifícios das classes dominantes retrógradas, as oligarquias rurais semifeudais e burgueses compradores, para enfeixar mais poder e resistir às transformações democráticas burguesas que a realidade objetiva demandava. Esta é a situação na qual se encontrava o país no momento em que o capitalismo entrara na etapa superior de seu desenvolvimento, marcada por um grande salto em sua expansão mundial, através da exportação de capital e da política colonial capitalista. É sobre esta base putrefata em que o país tinha seu desenvolvimento empantanado que os capitais europeus, principalmente ingleses, inicialmente, engendrarão um desenvolvimento capitalista.
As relações de produção junto às relações de propriedade que se desenvolvem no agrário, relações que se dão dentro do sistema latifundiário de monopólio e concentração da terra, relações sociais de produção entre latifundiários e camponeses, são relações de tipo semifeudal, que são, por sua vez, a base sobre a qual se assenta e desenvolve as relações capitalistas impulsionadas pelo imperialismo. Estas se reproduzem por toda a sociedade, na medida em que se constitui o fundamental das relações sociais de produção, determinando, portanto, o caráter de suas instituições políticas, jurídicas e culturais. Isto se processa por longos períodos e no recente período histórico, a partir do início do século XX, seguem evoluindo só que de forma subjacente às relações capitalistas de tipo burocrático que deu origem.
Tais fenômenos são resultantes da passagem do capitalismo à sua fase monopolista, em que três de suas características essenciais — hegemonia do capital financeiro, exportação de capitais e política colonial — moldam sua ação sobre os países atrasados numa relação de dominação; se apoia nessa base de relações pré-capitalistas — escravistas, semi-escravistas, feudais, semifeudais— e impulsiona os capitais originados destas relações. O que implica em manter e aprofundar, tanto aquelas relações arcaicas determinando um tipo particular de desenvolvimento capitalista, o burocrático, quanto um submetimento à sua dominação mais completa, impedindo que a formação da nação se complete e que esta se desenvolva de forma independente. Conformam-se assim, numa “associação” terrível de três forças reacionárias: imperialistas, grandes burgueses e latifundiários, na qual, os dois últimos são controlados e servem aos primeiros, e juntos oprimem o proletariado, o campesinato, a pequena e média burguesias.
Tal base o país herdou, e sobre ela evoluiu ao longo do século XX, sem que nenhum movimento social o rompesse até nossos dias.
Portanto, o desenvolvimento de nosso país, tal como dos demais países atrasados, se vê condicionado por fatores de grande transcendência, resultantes da passagem do capitalismo para sua fase monopolista. O advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), guerra de partilha do mundo pelas potências imperialistas e da Revolução de Outubro na Rússia (1917), modificaram completamente o curso histórico, impactando de forma extremamente nociva o seu processo de desenvolvimento. Terminava aí toda uma época das revoluções burguesas democráticas, ingressando na época do domínio dos monopólios, da época em que a burguesia perdeu por completo sua condição e papel revolucionário, passando a sua fase reacionária e de contrarrevolução geral. Ou seja, que a burguesia, em geral, não podia mais cumprir qualquer papel revolucionário como cumprira em épocas anteriores, tal como fora suas revoluções no século XVIII. A partir daí, isto fica patente nas relações das nações capitalistas desenvolvidas com as demais no mundo, nas quais se acentuaram o caráter exclusivamente de domínio, exploração e opressão crescentes.
É da essência dessa fase particular do capitalismo — monopolista — a hegemonia do capital financeiro, a exportação de capital e a posse de colônias, que entre outros aspectos, terão na guerra uma necessidade e lei do seu desenvolvimento. A burguesia que tinha realizado as revoluções democráticas liquidando praticamente toda a base feudal em seus países para impulsionar o desenvolvimento capitalista, agora, na condição de burguesias imperialistas tinha na manutenção das condições pré-capitalistas existentes dos países atrasados uma nova forma de suporte e acumulação de seus capitais. Por essa razão mesma, não as liquida, ao contrário se apoia nelas.