Getúlio ou a consolidação do capitalismo burocrático no Brasil – Parte I
Nota do blog: Devido a importância do debate para compreender o caráter do atual velho Estado brasileiro e também pela maneira completamente clara e científica como o autor aborda; reproduzimos o artigo, de autoria do prof. Fausto Arruda, denominado “Getúlio ou a consolidação do capitalismo burocrático no Brasil”, dividido em 6 partes e com passagens de alguns outros autores para melhor compreensão do tema: o papel de Getúlio Vargas para a história do Brasil. “Antiimperialista? Lacaio do imperialismo? Fascista ou democrata-nacionalista?” O texto esclarece com plena consciência a questão.
Publicado no jornal A NOVA DEMOCRACIA, da primeira quinzena de julho à segunda quinzena de outubro. Boa leitura!
Agosto de 2014 marcou os 60 anos da morte de Getúlio Vargas. Getúlio esteve à frente do gerenciamento do velho Estado semicolonial e semifeudal brasileiro por dois períodos, perfazendo quase 20 anos entre o golpe de Estado de 1930, com que escalou o gerenciamento do Estado por 15 anos (1930 a 1945), e o golpe de Estado que o depôs de seu mandato conquistado nas urnas com grande apoio popular (1951 a 1954). Frustrando os golpistas, respondeu com o seu suicídio, que desatou tormentosa comoção social. Com este ato, segundo asseverou em sua Carta Testamento, “deixo a vida para entrar para a História”.
Nestes sessenta anos muito se escreveu sobre o que se convencionou chamar de “a era Vargas” e mais ainda sobre a controvertida personalidade de Getúlio, depreciada por seus inimigos e exaltada por seus seguidores e admiradores.
Diferentemente de alguns de seus biógrafos, cuja exaltação chega ao ponto de colocá-lo como alguém que emoldurou a história do Brasil, analisamos seu gerenciamento à frente do Estado brasileiro e o seu legado à luz das relações sociais assentadas e reproduzidas de uma sociedade semicolonial, na qual o capital financeiro, principalmente inglês, engendrou, sobre a base semifeudal existente, o capitalismo burocrático até hoje vigente no país. Sem desprezar sua participação como indivíduo, o compreendemos e o mostramos como um personagem modelado por este condicionamento histórico, cuja base econômica, política, social e cultural, por sua essência, sobrepuja as características individuais por mais marcantes que estas tenham sido.
Para subsidiar nossa fundamentação anexamos desde já passagens de duas obras marxistas: 1) O Papel do indivíduo na história, de Guiorgui Plekhanov, pertencente à primeira geração de marxistas russos, que, antes de se tornar um oportunista “menchevique”, produziu, entre muitas importantes obras, este excelente trabalho; e 2) O Estado e a revolução, de Vladimir Lenin (ver box).
Dada a extensão do texto, o publicaremos por partes e da seguinte forma, ademais desta introdutória: “Contexto e antecedentes”; “A República Velha (situação internacional e nacional)”; “O golpe de 1930 e o Estado Novo (situação internacional e nacional)”; e “O segundo gerenciamento de Vargas (situação internacional e nacional)”.
CONTEXTO E ANTECEDENTES
O surgimento do imperialismo, como fase superior e apodrecida do capitalismo, na virada do século XIX para o século XX, modificou as contradições no cenário mundial, já dominado em sua totalidade pelas nações que realizaram sua revolução burguesa. Nestes países despontaram grupos econômicos cada vez maiores, frutos da fusão do capital industrial com o capital bancário, com base nos monopólios, cada vez mais sedentos por mercados consumidores e fontes de matérias-primas, dando origem ao capital financeiro, o qual dominou o conjunto dos capitais.
A presença dos monopólios e domínio do capital financeiro na direção da economia destes países conduziu à divisão do mundo entre um punhado de nações opressoras e possuidoras de colônias, e também uma imensa maioria de nações oprimidas e colonizadas, contradição esta que se desenvolve ao lado da contradição interimperialista na disputa por mercados e fontes de matérias-primas.
Estas contradições se constituirão na base sobre as quais as nações de capitalismo avançado, inevitável e sistematicamente, se lançam em guerras de rapina até a conflagração do conflito mundial entre 1914 e 1918, conhecido como Primeira Guerra Mundial. Guerras pela partilha e repartilha do mundo entre as nações vencedoras do embate. Estes acontecimentos conduzirão, por sua vez, ao início do desmantelamento do velho modelo colonial, no qual cabia às colônias e semicolônias o desenvolvimento de monocultura para exportação, com sua substituição pelo engendro de um tipo de capitalismo montado sobre uma base semicolonial e semifeudal, o capitalismo burocrático.
Sendo o Brasil um peão deste xadrez, é impossível analisarmos a nossa história sem levar em consideração tão ponderável condicionante. Contudo, seria erro incontornável não tomar como determinante os aspectos internos desta contradição, expressa, por um lado, pela existência de uma burguesia compradora como classe dominante em aliança com latifundiários, ainda com todos os vícios de seu domínio escravocrata-semifeudal, ambas subservientes ao imperialismo, principalmente inglês; por outro lado, a existência de um campesinato rebelado de norte a sul do país, ao lado do surgimento de um proletariado combativo gerado pela incipiente industrialização e consequente urbanização concentrada nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Será, portanto, sob a ótica da luta de classes que faremos a superposição destes dois cenários para analisarmos este período tão importante de nossa história e para entendermos como Getúlio Vargas, um oligarca da linhagem de Julio de Castilhos, Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, tornou-se um líder nacional e estadista com fabulosa influência sobre as massas urbanas.
O papel do indivíduo na história
Trechos do livro de Plekhanov
(…) Desse modo, as particularidades individuais das personalidades eminentes determinam o aspecto individual dos acontecimentos históricos, e o elemento casual, no sentido que indicamos, desempenha sempre certo papel no curso desses acontecimentos, cuja orientação é determinada, em última instância, pelas chamadas causas gerais, isto é, de fato, pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações mútuas entre os homens no processo econômico-social da produção que aquele determina. Os fenômenos casuais e as particularidades individuais das personalidades destacadas são, incomparavelmente, mais fáceis de perceber que as profundas causas gerais.
(…) Finalmente, a influência das causas particulares é completada pela ação das causas singulares, isto é, pela ação das particularidades individuais dos homens públicos e por outras “casualidades” graças às quais os acontecimentos adquirem, afinal, seu aspecto particular. As causas singulares não podem produzir mudanças radicais na ação das causas gerais e particulares que, por outro lado, condicionam a orientação e os limites da influência das causas singulares. Mas, não obstante, é indubitável que a História assumiria outro aspecto se as causas singulares que a influenciam fossem substituídas por outras causas da mesma ordem.
(…) O grande homem é grande não porque suas particularidades individuais imprimiam uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, mas porque é dotado de particularidades que o tornam o indivíduo mais capaz de servir às grandes necessidades sociais de sua época, surgidas sob a influência de causas gerais e particulares. (…) É, precisamente, um iniciador, porque vê mais longe que os outros e deseja mais fortemente que outros. Resolve problemas científicos colocados pelo curso anterior do desenvolvimento intelectual da sociedade, indica as novas necessidades sociais criadas pelo desenvolvimento anterior das relações sociais e toma a iniciativa de satisfazer a estas necessidades. (…) Nisto reside a sua importância e toda a sua força. Mas esta importância é colossal e esta força é prodigiosa.
(…) As relações sociais têm sua lógica: enquanto os homens se encontrarem em determinadas relações mútuas, necessariamente sentirão, pensarão e atuarão assim e não de modo diverso. Seria inútil que a personalidade eminente se empenhasse em lutar contra essa lógica: a marcha natural das coisas (isto é, a própria lógica das relações sociais) reduziria a nada seus esforços. Mas, se eu sei em que sentido as relações sociais se modificam em virtude de determinadas mudanças no processo social e econômico de produção, sei também em que sentido se modificará a psicologia social; por conseguinte, tenho a possibilidade de influir sobre ela. Influir sobre a psicologia social é influir sobre os acontecimentos históricos. Pode-se afirmar, portanto, que, em certo sentido, posso, apesar de tudo, fazer a História, e não preciso esperar que a História “se faça”.
O Estado e a revolução
Trechos do livro de Lenin
1. O Estado é um produto do antagonismo inconciliável das classes
(…) Resumindo a sua análise histórica, diz Engels:
O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, ‘a realidade da Ideia moral’, ‘a imagem e a realidade da Razão como pretende Hegel’. É um produto da sociedade numa certa fase do seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entredevorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado.
Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis. (…)
2. Força armada separada, prisões etc.
O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes… Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu. (…)
3. O Estado, instrumento de exploração da classe oprimida
Para manter um poder público separado da sociedade e situado acima dela, são necessários os impostos e uma dívida pública.
Investidos do poder público e do direito de cobrança dos impostos — escreve Engels — os funcionários, considerados como órgãos da sociedade, são colocados acima da sociedade. O respeito livre, voluntário, de que eram cercados os órgãos da sociedade patriarcal (do clã) já lhes não bastaria, mesmo que pudessem adquiri-lo.
Fazem-se leis sobre a ‘santidade’ e ‘inviolabilidade’ dos funcionários.
‘O mais insignificante agente de polícia’ tem mais ‘autoridade’ que os representantes do clã; mas, o chefe militar de um país civilizado poderia invejar um chefe de clã, que a sociedade patriarcal cercava de um respeito ‘voluntário e não imposto pelo cacete’.
Surge, agora, a questão da situação privilegiada dos funcionários como órgãos do poder público. O ponto essencial é este: que é que os coloca acima da sociedade? Veremos como esta questão teórica foi resolvida praticamente pela Comuna de Paris em 1871, e contornada por Kautsky em 1912, com o emprego de um processo reacionário.
Como o Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, no próprio conflito dessas classes, resulta, em princípio, que o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se torna a classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada. (…)
4. “Definhamento” do Estado e a revolução violenta
As palavras de Engels sobre o ‘definhamento’ do Estado gozam de tal celebridade, são tão frequentemente citadas, põem tão bem em relevo o fundo da falsificação oportunista do marxismo, que é necessário examiná-las detalhadamente. Citaremos toda a passagem de onde são extraídas:
O proletariado se apodera da força do Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado. Por esse meio, ele próprio se destrói como proletariado, abole todas as distinções e antagonismos de classes e, simultaneamente, também o Estado, como Estado. A antiga sociedade, que se movia através dos antagonismos de classe, tinha necessidade do Estado, isto é, de uma organização da classe exploradora, em cada época, para manter as suas condições exteriores de produção e, principalmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão exigidas pelo modo de produção existente (escravidão, servidão, trabalho assalariado). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a sua síntese num corpo visível, mas só o era como Estado da própria classe que representava em seu tempo toda a sociedade: Estado de cidadãos proprietários de escravos, na antiguidade; Estado da nobreza feudal, na Idade Média; e Estado da burguesia de nossos dias. Mas, quando o Estado se torna, finalmente, representante efetivo da sociedade inteira, então torna-se supérfluo. Uma vez que não haja nenhuma classe social a oprimir; uma vez que, com a soberania de classe e com a luta pela existência individual, baseada na antiga anarquia da produção, desapareçam as colisões e os excessos que daí resultavam não haverá mais nada a reprimir, e, um poder especial de repressão, um Estado, deixa de ser necessário.